Segunda Leitura

A administração judiciária e a participação da sociedade civil

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

2 de maio de 2021, 8h03

Os documentos internacionais e constantes manifestações de intenções reclamam uma nova forma de governança do Estado, na qual a sociedade civil passa de mera expectadora a ativa coadjuvante. Carlos Milani afirma que “empiricamente e no plano local, os anos 1990 corresponderam à institucionalização da consulta da população em geral, de associações, dos sindicatos, dos experts e de segmentos empresariais no processo de formulação de projetos de desenvolvimento e de políticas públicas”.[i]

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No Brasil esta participação vem se desenvolvendo, ainda que de forma lenta, uma vez que corresponde a uma forte mudança de cultura. Basicamente, “as ONGs captam as demandas sociais e o recurso público, desenvolvendo ofertas específicas para determinado público alvo, através de objetivos traçados pelo governo, baseados nas deliberações oportunizadas pela democracia participativa social”.[ii]

Bom exemplo de participação social na Segurança Pública são os Conselhos Comunitários de Segurança Pública (Conseg). Existentes em boa parte do território nacional, vinculados a uma coordenação estadual, prestam eles bons serviços à administração pública, promovendo a interligação e a cooperação entre a sociedade civil e os órgãos de segurança. No Paraná, o site do Conseg dá toda a orientação necessária à criação e ao exercício de atividades, revelando a eficiência da ação cooperativa.[iii]

Esta forma de democracia participativa, evidentemente, não se reduz às atividades do Poder Executivo, mas anseia também participar das ações do Poder Judiciário. Algumas iniciativas foram e vêm sendo tomadas em tal sentido. Por exemplo, a participação do amicus curiae[iv] já admitida no artigo 138 do Código de Processo Civil. Outra forma de atuação da sociedade civil são as audiências participativas, convocadas pelo Supremo Tribunal Federal a partir de 2007, em casos de reconhecida complexidade científica.

No Poder Judiciário as audiências exigem cautelas. Se de um lado podem auxiliar o julgador na compreensão do conflito que lhe é submetido a julgamento, por outro podem servir de palco para disputas de caráter político ou, até mesmo, para o magistrado alcançar apoio popular para uma posição que irá tomar, como alertam Vieira e Camargo.[v]

Em tais condições, impondo-se uma redobrada cautela para que iniciativa relevante como esta não se perca em mais uma forma de tumulto no processo e atraso no julgamento, é preciso verificar como e onde ela pode ser efetivada e, a partir daí, com sensatez e maturidade, implementar formas de cooperação entre a sociedade e o Estado Judiciário. E é a partir desta premissa que se cita, a título de exemplo, um caso de sucesso.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no ano de 2010, editou a Resolução 83, que criou o Fórum Interinstitucional Previdenciário na Seção Judiciária de Santa Catarina, com a finalidade de ampliar a discussão sobre o aperfeiçoamento de práticas e procedimentos nas demandas previdenciárias da Justiça Federal daquela unidade federativa, “facilitando a interlocução e fomentando a postura de colaboração entre as partes envolvidas, com vista à célere e efetiva resolução dos processos que lhe são afetos”.[vi]

Nos termos do artigo 4º, integram o Fórum todos os magistrados interessados na matéria (v.g., o juiz federal da Vara Previdenciária e um juiz de Direito) e ainda: XI – um representante da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de Santa Catarina; XII – um representante da Procuradoria-Regional Federal da 4ª Região; XIII – um representante da Procuradoria Federal Especializada do INSS na 4ª Região; XIV – um representante do Ministério Público Federal; XV – um representante da Defensoria Pública da União; XVI – um representante da Federação de Trabalhadores Aposentados e Pensionistas; XVII – um representante da Superintendência Regional do INSS. Parágrafo único. Eventuais colaboradores e participantes podem ser convidados, conforme deliberação do Fórum.

O Fórum tem previsibilidade de reuniões ordinárias trimestrais e entre os seus objetivos se encontram os de “editar recomendações, aviar projetos, apresentar subsídios para o incremento das formas alternativas de solução de conflitos, realizar estudos e audiências públicas que visem ao melhor funcionamento da Justiça Federal na matéria previdenciária e conexas” (artigo 6º).

Para a divulgação da iniciativa e fiel ao princípio da transparência, o TRF-4 criou uma página na internet para o Fórum Interinstitucional Previdenciário, nela sendo colocadas todas as reuniões e respectivas decisões.[vii]

Segundo pesquisa realizada pela juíza Luisa Hinckel Gamba, da Turma Recursal Previdenciária de SC, junto ao mestrado profissionalizante da UFSC, sob a orientação do professor Orides Mezzaroba, entre outubro de 2010 e setembro de 2019, do Fórum Interinstitucional extraíram-se 18 enunciados, 72 deliberações, 10 recomendações e 17 encaminhamentos. Todos com caráter propositivo, ou seja, com a intenção de que sejam examinados, ainda que sem caráter obrigatório.

Pois bem, o que interessa agora é saber qual o resultado de tais iniciativas. Sim, porque não teria o menor sentido a realização das reuniões e a comunicação das conclusões, sem que se saiba se tiveram efetividade.

Vejamos um exemplo. Em 19 de junho de 2012 o Fórum editou a “DELIBERAÇÃO 9: O Fórum delibera que seja encaminhado ofício ao Presidente do Conselho Regional de Medicina solicitando a participação de um representante da Entidade, na próxima reunião, para tratar de tema relativo às perícias médicas”. Qual o resultado desta recomendação? E das outras tantas? E é exatamente isto que a mestranda está investigando.

De qualquer forma, o Fórum criado em 2010 rendeu bons frutos. Na mesma região foram criados outros dois semelhantes, um para o Paraná[viii] e outro para o Rio Grande do Sul.[ix] Na 1ª Região o TRF criou Fóruns no Distrito Federal, Pará e outros estados, o TRF5 implantou um Fórum em Alagoas. Segundo registros do Conselho Nacional de Justiça, em 10 de novembro de 2020, o projeto reduziu em mais de 95% o atraso na implantação de benefícios pelo INSS na região Sul.[x]

A busca do Poder Judiciário nas ações previdenciárias é um fenômeno antigo e tipicamente brasileiro. Salta aos olhos que os custos de um sistema que tem uma enorme estrutura no Poder Executivo para avaliar os benefícios e que depois renova a discussão perante o Poder Judiciário, está longe de ser o ideal. Mas, se esta é a realidade e não se vislumbra nenhuma mudança a médio prazo, o que se tem a fazer é dar efetividade ao sistema.

Com efeito, o Judiciário não é o único interessado na boa e ágil solução das causas previdenciárias, outros órgãos e instituições ganham espaço, no Fórum, para exteriorizar as suas agruras. A discussão democrática, que obviamente não avança no mérito de qualquer decisão judicial, é a melhor via para a busca de soluções. Assim, o pioneiro Fórum Interinstitucional catarinense foi um importante passo neste sentido e constitui-se uma prova de que uma iniciativa tomada com o objetivo de aproximar o Judiciário da sociedade é perfeitamente possível.

Resta agora estender o exemplo a outras matérias. Alimentar o conflito, obrigando as partes a percorrer quatro instâncias e depois submeter–se a um processo de execução que toma mais um bom espaço de tempo, evidentemente não é uma solução razoável. O estudo de medidas que reduzam os conflitos ao mínimo inevitável pode evitar a demora atual.

Finalmente, neste processo de mudança é preciso que se confie mais nas pessoas e instituições. A prática de em tudo e em todos enxergar uma má intenção acaba criando obstáculos formais e burocratização, com grande prejuízo aos que buscam solução para os seus problemas.

[i] MILANI, Carlos R. S. O princípio da participação social na gestão de políticas públicas locais: uma análise de experiências latino-americanas e europeias. Revista de Administração Pública vol. 42, n. 3, Maio/Junho de 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122008000300006. Acesso em 30/4/2021.

[ii] MARQUES, Marcelo de S. PEREIRA, Pedro H. M. Sociedade Civil e Participação: a influência das ONGs na democracia brasileira. 2011. Apud: Chaussê, Araci Angélica et alli. O papel da sociedade civil organizada na gestão das políticas públicas no Brasil. Disponível em: http://siga.faculdadedeilheus.com.br/DireitoEmRevista/Artigo/Download/6, p. 11. Acesso em 30/4/2021.

[iii] CONSEG – Conselho Estadual dos Conselhos Comunitários de Segurança. Disponível em: http://www.conseg.pr.gov.br/. Acesso em 30/4/2021.

[iv] Pessoa especialista em determinada matéria, de reconhecida idoneidade e que, convocada pelo juiz, dispõe-se a auxiliar com seu depoimento na qualidade da decisão.

[v] VIEIRA, José Ribas. CAMARGO, Margarida Lacombe. Insight Inteligência, “O STF e as dúvidas nas audiências públicas”. Disponível em: https://inteligencia.insightnet.com.br/o-stf-e-as-duvidas-nas-audiencias-publicas/. Acesso em 30/4/2021.

[vi] Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/hcd_Res832010.pdf. Acesso em 30/4/2021.

[vii] Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=cojef_enunciados_forum_prev_SC. Acesso em 30/4/2021.

[viii] Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=cojef_forum_prev_PR. Acesso em 30/4/2021.

[ix] Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=cojef_forum_prev_RS. Acesso em 30/4/2021.

[x] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/projeto-reduz-em-mais-de-95-atraso-na-implantacao-de-beneficios-pelo-inss/. Acesso em 30/4/2021.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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