Anuário da Justiça, 15 anos

Em ano de crise, STJ também passa a ser alvo dos inimigos da democracia

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24 de junho de 2021, 7h40

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2021, que será lançado na próxima terça-feira, 29 de junho, às 10h30, na TV ConJur

Em fevereiro de 2021, quando o ministro Humberto Martins teve a oportunidade de, pela primeira vez, abrir o ano judicial como presidente do Superior Tribunal de Justiça, sua escolha de palavras para indicar os caminhos da corte não poderia ser mais sintomática do difícil momento que vivemos. “Para 2021, a proposta é contar ainda mais com a participação ampla de todos os ministros e ministras e servidores na construção de um dos destinos maiores da nossa corte: um Judiciário viável, produtivo e, sobretudo, respeitado.”

O discurso foi feito no início de uma sessão da Corte Especial, que reúne os 15 integrantes mais antigos entre os 33 que formam o tribunal responsável pela última palavra em matéria infraconstitucional. Martins se dirigiu a quatro ex-presidentes – João Otávio de Noronha, Felix Fischer, Francisco Falcão e Laurita Vaz –, os quais também enfrentaram crises enquanto ocuparam o cargo, mas que também contribuíram para que o STJ chegasse a 2021 em pleno funcionamento.

A primeira parte da proposta de Humberto Martins está bem encaminhada. Em tempos de restrição sanitária, o STJ é um tribunal viável e, principalmente, produtivo. Em 2020, sem contar os períodos de recesso, em janeiro, julho e dezembro, acumulou 61 dias sem poder fazer a prestação jurisdicional. Foram 47 dias logo no início da epidemia de Covid-19. As sessões presenciais foram suspensas em 19 de março e nunca mais voltaram. A primeira experiência de julgamento por videoconferência só aconteceu em 5 de maio. Depois, um ataque hacker derrubou o sistema de 4 a 17 de novembro, somando 14 dias sem julgamentos.

Ainda assim, o STJ encerrou o ano com 503 mil decisões terminativas, 373.741 delas tomadas em processos principais. Em números absolutos, recebeu, distribuiu e julgou menos do que 2019. Mas bateu a Meta 1 do Conselho Nacional de Justiça: julgar quantidade maior de processos do que os distribuídos no ano. Em dezembro, ao fechar 2020, Martins exaltou o fato de o STJ manter sua atividade intacta. “A despeito de todas as dificuldades deste ano atípico, os desafios foram superados de forma positiva”, disse.

“Nós colhemos os frutos de um investimento muito grande no processo eletrônico que fizemos na primeira década deste século e que muita gente, na época, condenou e perguntou: para que tanto dinheiro nisso?”, diz o ministro Ribeiro Dantas, presidente da 5ª Turma e um dos que teve de readequar a condução dos trabalhos. “O futuro foi antecipado”, concorda a ministra Isabel Gallotti, presidente da 2ª Seção. “Nós já estamos há muito tempo caminhando para a digitalização total, para reuniões on-line. Só não fazíamos tudo de uma vez”, acrescenta.

Este Anuário da Justiça é testemunha do esforço administrativo pela modernização do STJ. Em sua primeira edição, em 2007, o então presidente da corte, Barros Monteiro, anunciava a petição eletrônica como realidade no tribunal e fechava convênios para implantação de sistemas de processamento virtual. O Diário da Justiça Eletrônico entrou no ar em 2008. E em 2009, a promessa era de que todos os processos tramitariam em meio digital. “O STJ está a caminho de se tornar o primeiro tribunal nacional do mundo a ter todos os processos tramitando virtualmente”, previu o então presidente, Asfor Rocha.

Mais de uma década depois, em agosto de 2020, o ministro João Otávio de Noronha deixou a Presidência do STJ com o parque tecnológico atualizado, a capacidade de tráfego de informações em rede ampliada e grandes investimentos em hardware e software. “Tínhamos hardware e um sistema que possibilitaram continuar trabalhando no virtual. O resultado foi bom. Se examinar os resultados hoje, eles não perdem para o tempo em que julgávamos fisicamente. A produtividade é até melhor”, diz o ministro.

O número de teses fixadas em repetitivo comprova. Com a virtualização dos julgamentos, todas as seções represaram esses julgamentos, por demandarem debate mais aprofundado e ampla
participação da sociedade. Esperava-se, inicialmente, que a crise sanitária duraria alguns meses. Os ministros foram levando repetitivos a julgamento pouco a pouco. Mesmo assim, o STJ aumentou em 66% o número de teses fixadas em relação a 2019.

Foram 30 teses firmadas, mais seis revisadas e outras 41 matérias afetadas. Dessas, 31 foram identificadas pelo sistema Athos, que usa inteligência artificial para mapear demandas repetitivas. Em 2020, o sistema gerou 101 sugestões ao Núcleo de Admissibilidade e Recursos Repetitivos (Narer). “Estamos recebendo aproximadamente metade daquilo que receberíamos se não tivéssemos montado essa estrutura para o enfrentamento das demandas repetitivas”, explica o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, presidente da Comissão Gestora de Precedentes do STJ.

A avaliação na corte é que, apesar da falta de contato presencial entre ministros, assessores do gabinete e advogados, a mudança tecnológica desencadeada pela epidemia do novo coronavírus em nada prejudicou o trabalho. Até melhorou. Os advogados hoje não precisam mais se dirigir a Brasília para sustentar oralmente ou fazer audiência, ressalta Sebastião Reis Júnior. Houve redução de gastos com energia, papel, água, combustível e outros insumos, destaca Og Fernandes. “Não foi fácil, podendo a tarefa ser comparada a trocar peças de um avião em pleno voo”, reconhece.

O tribunal também ampliou parcerias institucionais visando à desjudicialização. Um único acordo de cooperação técnica com a Advocacia-Geral da União gerou economia de 170 mil recursos que não subiram ao STJ, além da desistência em 630 processos que já tramitavam em instância especial. Houve também acordo para dar rapidez às ações sobre o auxílio emergencial pago pelo governo durante a epidemia de Covid-19. Já em 2021, o presidente Humberto Martins criou o Núcleo de Ações Coletivas (NAC), para reforçar o monitoramento dos julgamentos das ações coletivas.

O problema é que ser viável e produtivo pode não ser suficiente para o STJ – ou para o Judiciário como um todo. A corte não escapou dos recentes ataques que buscam o descrédito institucional dos julgadores, cenário em que se inclui a invasão hacker que derrubou os sistemas. O STJ foi pego de surpresa, e durante os primeiros dias não se sabia se os criminosos estavam de posse das informações de milhares de processos em tramitação, que teriam sido criptografadas por um vírus. Isso criou temor entre os ministros e exigiu reforço da segurança nos gabinetes.

A comunidade jurídica considerou o episódio grave, e o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, criou um comitê no Conselho Nacional de Justiça para evitar novos ataques cibernéticos à Justiça. “O STJ recebeu o apoio de diversas instituições para o enfrentamento da crise, o que nos permitiu manter o funcionamento. Foram adotados procedimentos e realizados investimentos para fortalecer os mecanismos de segurança cibernéticas do Tribunal”, diz Martins.

No ar: sessões telepresenciais são transmitidas ao vivo pelo canal do STJ no YouTube

Julgamentos criminais envolvendo autoridades nacionalmente conhecidas também ajudaram a arrastar a corte para o olho do furacão da política brasileira. Foi a corte que afastou, com uma canetada, o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. E também julgou casos envolvendo o ex-presidente Lula, o senador Flávio Bolsonaro e outros. Também precisou ponderar sobre a necessidade de encarceramento durante a epidemia, diante da situação crítica vivida pelo sistema prisional. O STJ julgou diversos pedidos de Habeas Corpus coletivos, enquanto os segmentos punitivistas da sociedade pregavam medo diante da possível soltura generalizada de criminosos.

A avaliação dos integrantes das turmas criminais é de que, de fato, as decisões ousaram em posicionamentos menos repreensivos que, em tempos de normalidade, não vingariam. “Passamos a ter uma flexibilização, uma boa vontade maior, inclusive para atender à Recomendação 62 do CNJ, que foi um grande avanço”, diz o ministro Rogerio Schietti. “O Judiciário tem agido com prudência e equilíbrio, sabendo harmonizar os direitos fundamentais na hora de prestar a jurisdição criminal”, elogia o ministro Joel Paciornik. Ele integra a 5ª Turma, a responsável pelos julgamentos da “lava jato” e o alvo preferido dos reacionários.

O resultado é que seus membros sofreram, ao longo dos últimos anos, tentativas de intimidação por procuradores do Ministério Público Federal, evidenciadas pelas revelações de diálogos hackeados entre os que atuavam na finada força-tarefa e o ex-juiz Sergio Moro. Há indícios de que integrantes do STJ foram ilegalmente investigados. Por conta disso, Humberto Martins instaurou inquérito, em fevereiro de 2021, no mesmo formato das investigações em curso no STF, contra atos antidemocráticos e uso de fake news para atacar ministros. Ele o definiu como “medidas pertinentes e que reputamos necessárias para garantir a independência da corte e de seus membros”. O procedimento acabou suspenso por decisão da ministra Rosa Weber em 30 de março de 2021.

“Nós passamos por muita incompreensão”, afirma o ministro Ribeiro Dantas, um dos que os lavajatistas tentaram acuar. Ele afirma que a velocidade do processo não é a mesma da dos fatos noticiados pela imprensa, o que cria distorções na maneira como o Judiciário é visto. “As pessoas não aceitam, às vezes, determinados resultados e acham que tem que prender todo mundo. Mas nós somos juízes ou somos carrascos?”, indaga.

A crise sanitária inaugurou para o STJ a era das transmissões de julgamento, que até então só ocorriam para o Supremo, com a TV Justiça. Agora, está tudo no YouTube, sempre ao vivo. “A corte hoje cumpre sua missão. O que temos é a transparência das decisões, na medida em que, pelo sistema de videoconferência, todo mundo pode assistir. É comum ter sessão de julgamento com 500, 800 pessoas acompanhando. Depende do tema. Hoje, o Judiciário tem maior transparência”, aprova João Otávio de Noronha, que estreou como juiz criminal depois de deixar a Presidência da corte.

Ao dar posse a Humberto Martins, Noronha elogiou o caráter agregador e pacifista do sucessor. “Dialogar é fundamental para conhecer os problemas. Ao mesmo tempo, dá transparência à gestão”, apontou. Martins segue a mesma premissa, mas com mais delegação de poderes. Ao assumir o cargo, expôs a ideia de uma gestão compartilhada e criou seis comitês de orientação, compostos por cinco ministros cada. Eles cuidam de: gestão; saúde e segurança; transporte; tecnologia da informação; assuntos legislativos; e orçamento e finanças.

“Acredito que todas as decisões adotadas pela presidência repercutem diretamente no dia a dia de todos os ministros que integram esse tribunal. Decisões cujos efeitos muitas vezes ultrapassam o mandato presidencial e se prolongam pelas gestões futuras. Nada mais natural que todos os ministros estejam cientes”, destacou. A avaliação dos colegas é muito positiva. Os integrantes da corte relataram ao Anuário da Justiça o sentimento de engajamento e prestígio.

Um ótimo exemplo do efeito positivo dessa estratégia de gestão foi a escolha dos desembargadores convocados para atuar em substituição aos dois ministros que recentemente se aposentaram – Napoleão Nunes Maia, na 1ª Seção, e Nefi Cordeiro, na 3ª Seção. Humberto Martins, a quem caberia a escolha, pediu indicação de possíveis nomes aos integrantes desses colegiados. E em ambos os casos se chegou a um consenso: Manoel Erhardt, do TRF-5, e Olindo Menezes, do TRF-1, respectivamente.

Sempre que pode, o presidente do STJ faz questão de estender a mão também aos demais poderes da República – justamente os responsáveis por, em meio às suas crises, gerar o protagonismo do Judiciário. Não à toa, Martins trabalha há muitos anos com um mote: magistratura forte, cidadania respeitada. “A nossa missão é continuar gerando confiança e segurança jurídica. Esse é o nosso objetivo. Tempos difíceis exigem união de esforços. Instituições fortes e respeitadas são essenciais para o Estado Democrático de Direito”, afirma o presidente da corte.

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