Opinião

Legislação de fomento à cultura: quando a norma não alcança a realidade

Autor

  • Cecilia Rabêlo

    é advogada mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

20 de junho de 2021, 6h05

A necessidade de uma lei federal que regulamente o Sistema Nacional de Cultura (SNC) está expressamente prevista no artigo 216-A da Constituição Federal desde 2012. Como bem sabemos, ela não foi criada até hoje.

Os projetos de lei para criação dessa norma, no entanto, se acumulam no Congresso Nacional. Um ponto em comum entre eles é a falta de objetividade em relação ao aspecto prático desse fomento: como repassar verbas para o setor artístico e cultural sem que os beneficiários desses recursos se tornem inadimplentes ou sejam obrigados a devolver o dinheiro daqui alguns anos? Ou sem que os gestores fiquem temerosos em relação ao futuro julgamento dos tribunais de contas em relação aos meios utilizados para que o recurso chegue até a ponta?

Dos projetos de lei aos quais tive acesso (PL 9.474/2018, PL 1.801/2019, PL 1.971/2019), nenhum deles trata dos aspectos práticos do fomento ao setor artístico e cultural. A grande maioria, na verdade, se limita a repetir, de forma mais extensa e detalhada, os princípios e objetivos já previstos no artigo 216-A da Constituição Federal, que trata do SNC.

Mesmo a lei Aldir Blanc ou o Projeto de Lei Complementar 73/2021, denominado de "Lei Paulo Gustavo", não adentram nas questões mais espinhosas do dia a dia da gestão pública de cultura. Quais instrumentos jurídicos utilizar? Prêmio e incentivo cultural são a mesma coisa? Fomento é licitação? Precisa só cumprir o objeto ou tem que prestar contas financeiras, dizendo onde gastou cada centavo (e explicando o porquê)? Tem que fazer pesquisa de mercado de cada item a ser adquirido? Afinal, pode adquirir bens com verba de fomento? De quem é a propriedade desses bens?

Claro que a Lei Aldir Blanc e a futura Lei Paulo Gustavo não têm o condão de regulamentar o SNC ou mesmo resolver as questões burocráticas da gestão pública de cultura. São normas emergenciais, que visam socorrer o setor duramente afetado pela pandemia.

Ocorre que, por não adentrarem na minúcia dos instrumentos jurídicos, das regras de aferição do cumprimento do objeto e/ou prestação de contas, sobre a prática da execução desses recursos, elas acabam por cair em uma imensa lacuna normativa onde cabe tudo: no final das contas, para executar essas normas, cada ente federado utiliza a regra que entende mais adequada, e quem sofre com isso é o próprio setor que se buscava socorrer, perdido em um emaranhado jurídico de difícil compreensão (até mesmo para os profissionais da área).

Estar em uma Assessoria Jurídica de um órgão de cultura é ter, de um lado, o Tribunal de Contas e as controladorias cobrando rigidez e controle do gestor no fomento e, do outro, o setor artístico e cultural requerendo instrumentos viáveis e condizentes com a realidade da sua prática.

É uma balança impossível de ser equilibrada sem uma legislação clara e específica para o fomento à cultura. Uma norma corajosa, capaz de se basear no caráter de direitos fundamentais que têm os direitos culturais, na competência legislativa expressamente prevista na Constituição para tratar de cultura e no dever expresso, também previsto na norma constitucional, de fomentar o setor.

É preciso coragem, mas é preciso também aprofundamento, estudo, pesquisa e conhecimento prático de quem vive a gestão pública de cultura e a realização/produção de projetos/ações culturais fomentados. Replicar princípios genéricos, objetivos extensos e metas pouco quantificáveis não nos ajudará a tornar a política de fomento à cultura realmente efetiva, sem danos tanto para o gestor quanto para a sociedade civil.

É preciso criar normas de repasse de recurso. Sim, é urgente e necessário! Mas é também urgente e necessário falar do depois, do que e como faremos com esses recursos, para evitar que ele seja repassado, controlado e executado de forma inadequada, o que gera, sem dúvidas, problemas para todos os lados.

A aplicação de instrumentos jurídicos, mecanismos de repasse e normas inadequados para o fomento ao setor artístico e cultural é, a meu ver e ao lado da escassez de recursos, o maior problema da gestão pública de cultura em nosso país.

Se não encararmos esse desafio, o recurso pode até chegar no órgão gestor de cultura e ser repassado ao setor, mas continuaremos com os mesmos problemas de inadimplência nas prestações de contas, devolução de recursos, gestores com contas reprovadas e um fomento que causa mais problemas do que soluções.

Autores

  • é advogada, presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Direito Constitucional pela Unifor e especialista em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona/ES.

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