Opinião

As dimensões sancionatórias do Direito Financeiro

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

18 de junho de 2021, 7h03

A moldura do ordenamento jurídico que estabelece a forma pela qual as contas públicas são submetidas ao sistema de controle, com ênfase na Lei 4.320/1964 e na Lei de Responsabilidade Fiscal, coloca o Direito Financeiro em evidência por causa do seu caráter formal.

A escrituração das contas públicas se caracteriza pela solenidade e a sua desobediência torna plausível a responsabilidade do ordenador de despesas na ritualística procedimental da prestação de contas, a exemplo do prazo para publicação do relatório resumido de execução orçamentária, previsto no artigo 165, § 3º da Constituição Federal.

O processo de prestação de contas integra o ambiente de estudo do Direito Financeiro porque sua análise probatória possui correlação com o exame de documentos atinentes à execução orçamentária.

O objeto do Direito Financeiro é estruturado em uma perspectiva tridimensional: arrecadar, gerir e aplicar os recursos públicos.

Lembra Marcus Abraham: "O Direito Financeiro é o ramo de Direito Público destinado a disciplinar a atividade financeira do Estado, ou seja, é o conjunto de normas que regula o relacionamento do Estado com o cidadão para arrecadar, gerir e aplicar os recursos financeiros de acordo com o interesse público" [1].

Por imposição do artigo 70, parágrafo único da Constituição Federal, "prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responde, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária".

Assim, a prestação de contas integra o ambiente de estudo do Direito Financeiro por causa da sua formalidade: o estudo analítico da disponibilidade financeira dos recursos públicos com observância à escrituração orçamentária.

Em outras palavras: o que não está autorizado na lei de meios não pode ser gasto.

A obrigatoriedade em relação à prestação de contas já era objeto de estudo da Filosofia do Direito na remota Grécia antiga. Àquela época, Aristóteles trazia a dimensão de um sistema de auditoria apto a monitorar e até mesmo corrigir a aplicação dos recursos públicos:

Embora nem todas as funções que acabamos de falar participem do manejo do dinheiro público, mas como algumas estão amplamente envolvidas nisso, é preciso que haja acima delas um outro magistrado que, sem que ele mesmo administre coisa alguma, faça com que os outros prestem contas de sua administração e a corrijam. Uns o chamam de auditor; outros, inspetor de contas; outros, grande procurador [2]

Para a história do direito, o marco delimitador em relação à administração do direito coletivo tem registro na história do Rei João Sem-Terra, o qual decidiu, de maneira unilateral, elevar a carga tributária.

Insurgidos contra aquela atitude arbitrária, os barões contestaram referida decisão sem qualquer fundamento técnico, o que deu origem à Magna Carta, em 1.215, recorte temporal também correlato ao devido processo legal e estudado pelo Direito Tributário como o marco do princípio da legalidade, conforme resgata Sacha Calmon [3].

No campo da teoria geral do direito, a obrigação de prestar contas possui origem na declaração universal dos direitos do homem e do cidadão, de 1.789, que em seu artigo 15 determina que "a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração".

Nesse sentido, resta incontroverso o fato de que a obrigação de prestar contas é um processo de aprimoramento normativo ao longo de séculos.

Acontece que a estrutura normativa da jurisdição constitucional estabelece formas específicas do processo de prestação de contas, que vão desde a obediência a normativos específicos sobre escrituração de contas, como também a regras processualísticas específicas, como é o caso do microssistema processual no âmbito dos tribunais de contas.

A ressonância da prestação de contas coloca o gestor público vulnerável a um cenário multidisciplinar em relação à responsabilização nos seguintes eixos: a) civil; b) criminal; c) administrativo; d) eleitoral; e) político.

A responsabilização civil guarda estreita correlação com a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), porquanto aquele diploma legal é um arcabouço de responsabilização em quatro cenários.

O ato de improbidade administrativa pode ser tipificado mediante os seguintes contextos: a) enriquecimento ilícito; b) prejuízo ao erário; c) concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário; e, d) atos que atentem contra os princípios da administração pública.

Aqueles cenários possuem topografia normativa nos artigos 9º, 10, 10-A e 11 da Lei 8.429/1992 e a sua tipificação requer a comprovação de dolo e/ou culpa, o que demanda uma análise documental sobre os atos de gestão.

Para Walber de Moura Agra, "na análise da ação ímproba, a demonstração do elemento subjetivo na tipificação do ato de improbidade administrativa é elemento essencial à punição, sendo o dolo exigido para os casos dos artigos 9º e 11 e o dolo ou a culpa para as hipóteses do artigo 10, todos da Lei 8.429/1992" [4].

Dessa forma, como ferramenta de investigação probatória para aferir o elemento subjetivo da conduta, a execução orçamentária, objeto de estudo específico do Direito Financeiro, é um aspecto relevante para fins de constatação de improbidade administrativa, como é o caso do procedimento da liquidação de despesa.

Até porque a despesa pública deixa marcas.

Anota Afonso Gomes de Aguiar que a liquidação de despesa "é o momento em que examinam o direito adquirido pelo credor da obrigação, a origem e o objeto que se deve pagar, a importância a ser paga, e a pessoa a quem se deve pagar para se extinguir; legalmente, a obrigação" [5].

Além disso, a liquidação de uma despesa leva em consideração a obediência da prescrição do artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal no sentido de averiguar se há prévia compatibilidade com as leis orçamentárias, o que torna incontroversa a sua vinculação com o Direito Financeiro.

Assim, em virtude do princípio da legalidade, caso o pagamento seja realizado desconforme às prescrições normativas, resta legítima a responsabilização administrativa do gestor público.

A responsabilização criminal do direito financeiro advém de uma reforma no código penal que instituiu um capítulo específico intitulado "crimes contra as finanças públicas", no final dos anos 2000.

A criminalização da ilicitude formal em relação à escrituração das contas públicas é um indicador sobre a preocupação do legislador com o controle da qualidade do gasto público.

Inclusive é preciso registrar que a possibilidade de mitigação de liberdade, um dos direitos fundamentais mais sensíveis, ao lado da vida, é um sinal de que o Direito Financeiro realmente deve ser levado a sério.

Sobre o tema é preciso diferenciar a classificação dos crimes previstos no código penal, e o crime de responsabilidade, previsto na Lei 1.079/1950, este de ordem eminentemente política.

José Maurício Conti pontua que a má gestão em relação à execução orçamentária já resultou no impedimento político da então presidente Dilma Roussef por crime de responsabilidade.

Alerta ainda sobre a aplicabilidade das normas repressivas sancionadoras decorrentes do Direito Financeiro: "Desprezo e desrespeito às normas de finanças públicas são evidentes e têm sido constantes, e os danos causados estão aí para serem vistos. Isso não pode ser aceito pelos operadores, aplicadores e intérpretes do Direito" [6].

No panorama sobre a responsabilização administrativa existe o direito administrativo sancionador intrínseco à jurisdição dos tribunais de contas, competentes para proferirem pareceres prévios em sede de contas anuais, bem como julgar contas de gestão correlatas à ordenação de despesas.

Há uma diferenciação entre aquelas naturezas jurídicas processuais que são classificadas em contas de governo e contas de gestão.

As contas de governo possuem um componente político porque embora o Tribunal de Contas faça um juízo de valor técnico sobre o balancete anual do gestor púbico, a competência pelo seu julgamento, que possui um forte componente político, é do respectivo Poder Legislativo.

Por outro lado, as contas de gestão são correlatas à jurisdição elencada especificamente aos Tribunais de Contas no artigo 71 da Constituição Federal.

Sobre a diferença entre a natureza jurídica das duas, Doris de Miranda Coutinho esclarece o seguinte:

Ora, é precisamente por reconhecer a distinção material das duas modalidades de contas que o legislador maior especificou aos Tribunais de Contas dois modos distintos de atuar: no tocante às contas governamentais, atuará o órgão de controle externo técnico como apreciador, opinando ao Legislativo o posicionamento deliberativo que reputa adequado (artigo 71, I, da CF); já no concernente às contas de gestão, a Corte de Contas exercita uma função jurisdicional (artigo 71, II, da CF) [7].

A responsabilização eleitoral diz respeito à hipótese de inelegibilidade correlata à lei da ficha limpa (Lei complementar 135/2010) e possui vinculação com a probidade administrativa estabelecida pelo artigo 14, §9º, da Constituição Federal, para quem "lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta."

A correlação que o Direito Financeiro possui com a inelegibilidade é um ponto de intersecção que ele faz com o Direito Administrativo. Também é um ponto de convergência entre a responsabilização civil e a eleitoral.

Isso porque uma das hipóteses de inelegibilidade pela Lei da Ficha Limpa é a rejeição das contas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa por decisão irrecorrível de órgão competente (artigo 1º, inciso I, alínea "g")

Embora os Tribunais de Contas não tenham legitimidade para decretar a suspensão dos direitos políticos de um agente público, a apreciação do seu parecer prévio, já tratado no rol da responsabilidade administrativa, compete ao respectivo Poder Legislativo.

O entendimento pacificado do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário 729.744/MG, é de que "o parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso de prazo".

No âmbito da jurisdição dos tribunais de contas, tanto o parecer prévio como o julgamento das contas de gestão podem resultar em inelegibilidade com fundamento na Lei da Ficha Limpa.

Sobre o tema já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, que:

"Para fins do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64, de 18/5/1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4/6/2010, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores" (RE 848.826. Relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. Relator para o Acórdão: ministro Ricardo Lewandowski. Data do Julgamento: 10/8/2016. Data da Publicação: 24/8/2017).

Por fim, a responsabilidade política guarda pertinência temática com a ideia de Estado democrático de direito porque através do exercício do sufrágio, constitucionalizado no artigo 14, caput, da Constituição Federal, o representante do povo está acessível ao controle popular por intermédio do voto.

Pelas eleições diretas a sociedade eleitoral escolhe a melhor proposta para administrar o interesse coletivo, o que, em outras palavras, significa: em um ambiente democrático se escolhe a forma de conduzir a república.

Assim, alerta Flávio Garcia Cabral que "os pilares principais que sustentam a prestação de contas pelo Estado são a representação política e a forma de governo republicana" [8].

Dessa maneira, é necessária prudência ao gestor público em relação à despesa que ordena porque o Direito Financeiro, por ter uma característica eminentemente formal, é um celeiro de acervo probatório que pode ensejar um processo e respectiva condenação com base na teoria da responsabilidade fiscal.

Por isso, não basta saber o porquê. É preciso saber como prestar contas, sob pena de responsabilização.

Referências bibliográficas
ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro. Editora Forense. Rio de Janeiro/RJ: 2018

AGRA, Walber de Moura. Comentários sobre a Lei de Improbidade Administrativa. 2ª edição. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2019

AGUIAR. Afonso Gomes. Lei 4.320 comentada ao alcance de todos. 3ª edição. 2ª reimpressão. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2008

ARISTÓTELES, A política. Editora Martin Claret. 5ª reimpressão. São Paulo/SP: 2008

CABRAL, Flávio Garcia. Os fundamentos políticos da prestação de contas estatal. Revista de Direito Administrativo. RDA, Rio de Janeiro, v. 270, set./dez. 2015

Coelho, Sacha Calmon Navarro Coelho. Curso de Direito Tributário. 15ª edição. Editora Forense. Rio de Janeiro/RJ: 2016

CONTI, José Maurício. Agressões ao Direito Financeiro dão razões para o impeachment. Revista Digital Consultor Jurídico. 05 de Abril de 2016

COUTINHO, Doris de Miranda. Prestação de Contas de governo. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2020

 


[1] ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro. Editora Forense. Rio de Janeiro/RJ: 2018, p. 30.

[2] ARISTÓTELES, A política. Editora Martin Claret. 5ª reimpressão. São Paulo/SP: 2008.

[3] Coelho, Sacha Calmon Navarro Coelho. Curso de Direito Tributário. 15ª edição. Editora Forense. Rio de Janeiro/RJ: 2016, p .173.

[4] AGRA, Walber de Moura. Comentários sobre a Lei de Improbidade Administrativa. 2ª edição. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2019, p.137.

[5] AGUIAR. Afonso Gomes. Lei 4.320 comentada ao alcance de todos. 3ª edição. 2ª reimpressão. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2008, p. 352.

[6] CONTI, José Maurício. Agressões ao Direito Financeiro dão razões para o impeachment. Revista Digital Consultor Jurídico. 05 de Abril de 2016. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-abr-05/contas-vista-agressoes-direito-financeiro-dao-razoes-impeachment acesso em 31/05/2021

[7] COUTINHO, Doris de Miranda. Prestação de Contas de governo. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2020, p. 193.

[8] CABRAL, Flávio Garcia. Os fundamentos políticos da prestação de contas estatal. Revista de Direito Administrativo. RDA, Rio de Janeiro, v. 270, p. 147-169, set./dez. 2015. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/58740 acesso em 31/05/2021

Autores

  • é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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