Escritos de Mulher

É preciso pacificar a si para pacificar o meio

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16 de junho de 2021, 12h00

Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só́ pode ser encorajado. (Rubem Alves)

Nos últimos dias, entrou em vigor a Lei 14.164/21, que alterou as diretrizes e bases da educação nacional dispostas na Lei 9.394/96, instituindo a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher, que deve ocorrer anualmente no mês de março, como currículo obrigatório em todas as instituições públicas e privadas de ensino da educação básica.

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O avanço é grande. A nova legislação é um marco que abre portas para se pensar em ações pedagógicas alinhadas à cultura de paz, caminho sugerido pelo filósofo Edgar Morin, que a partir da perspectiva de sua teoria da complexidade, nos conta que "é preciso admitir que a crise do ensino é inseparável de uma crise de cultura".

No país onde crianças nascem, crescem e se tornam adultos no seio de famílias desestruturadas, a transmissão transgeracional da violência intrafamiliar é cotidiana, é cultural, é naturalizada, e muito se deve à hiper valorização dos aspectos objetivos dos seres humanos e suas relações, ao passo que as subjetividades foram sendo deixadas de lado, como se fossem aspectos irrelevantes.

A forma como educamos as crianças e os jovens faz parte dessas subjetividades que precisam ser incorporadas pela via do pensamento complexo de Morin, que se deve desenvolver para que sejam cogitadas práticas eficazes de prevenção da violência contra a mulher.

Para tanto, é preciso que a educação para a cultura de paz seja muito mais do que belas linhas que permanecem no plano das ideias, mas que seja percebida como um novo paradigma que compreende múltiplos saberes integrados com fins de cocriar novas formas de convivência pacífica.

Nos parece que, na linha do que sugere Morin, integrar os progressos científicos e o holismo, seja o caminho que deva nortear reformas legislativas e políticas públicas para a promoção da educação para a cultura de paz.

Falar em educação para a cultura de paz é falar em expansão da consciência para a percepção dos próprios conflitos internos. Se torna agente de paz em seu meio familiar e social aquele que compreendeu as origens dos próprios conflitos e traumas, para, então, promover transformações em sua comunidade, articulando a compreensão obtida a nível interno com as mudanças que deseja ver reverberar no mundo exterior.

O primeiro passo é escolher silenciar em meio ao caos de um mundo pandêmico, caminho sugerido pelo próprio período de isolamento social. A meditação é o meio pelo qual o silêncio interno se manifesta.

Programas que incentivam crianças a meditar nas escolas têm surgido aos poucos. Um deles, o Mente Viva, conta com 254 escolas associadas em todo o Brasil e em países como Espanha e Portugal. mais de 40 mil crianças, adolescentes e professores inscritos no programa de meditação.

Baseado na meditação budista que inspirou o mindfulness, as práticas incluem a repetição de frases que fazem as vezes de mantras: "eu estou em paz", 'minha família e meus amigos estão em paz", "meu bairro está em paz" e "minha cidade está em paz", são algumas das repetições que cerca de 12 mil participantes repetem diariamente ao redor do mundo.

 Ao implementar estudos como a meditação, de natureza subjetiva, os currículos escolares se abrem para a integração entre ciência e holismo. Português, matemática e química são importantes, mas não preparam seres humanos para lidar com seus conflitos e traumas, ao passo que desenvolver habilidades como a de expandir a própria consciência por meio de práticas contemplativas possibilita o desenvolvimento da compaixão consigo e com o próximo, da inteligência emocional para respeitar a si e ao meio em que se vive, além do semeio de valores humanos imprescindíveis para o convívio em sociedade.

Lembremos que políticas públicas que incentivem a educação para a paz se integram com a busca pela dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal.

 Ainda, entre os objetivos fundamentais da República previstos no artigo 3º da Carta Magna, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, se coadunam perfeitamente com políticas públicas que busquem desenvolver a cultura de paz, com reflexos positivos nos ambientes familiar e social.

Não há dúvidas de que a nova Lei 14.164/21, ao alterar as diretrizes e bases da educação nacional e instituir a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher, reforça o arcabouço de princípios, garantias e regras contidos na Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha. A lei prevê a criação de políticas públicas para proteção integral da mulher em situação de violência doméstica e familiar. A boa nova é que agora o desenvolvimento da cultura de paz no ambiente doméstico irá começar já na escola, o que constitui um marco no avanço sobre a temática.

Apenas ações que articulem o que Morin[1] chama de "qualidades da hipercomplexidade, fraternidade, amor, consciência” são “portadoras de respostas para os problemas de desunião, desintegração, degradação, desordem", apesar de, segundo o filósofo, não constituírem "uma solução".

Contudo, ainda que Morin[2] complete seu raciocínio nos alertando que "as injunções 'amemo-nos, sejamos fraternais, sejamos inteligentes, sejamos conscientes' não têm, enquanto tais, nenhum efeito, senão deplorável. Também não são fórmulas capazes de tornar ipso facto obsoletas as dominações, sujeições, poderes, estados… Estes não são tão simples excrecências parasitárias que bastaria extirpar. São constituintes essenciais dos seres societais e teremos de lidar com eles ainda durante muito tempo."

Mas apesar de estarmos distantes de alcançar a expansão da consciência que proporcione uma convivência pautada na compaixão e na fraternidade, Morin[3] considera que "mesmo então, amor fraternal, inteligência consciente, sempre que forem ativos, constituirão não só a verdadeira resistência, mas o recurso permanente na luta interminável contra a crueldade".

 Em tempos pandêmicos, que possamos ser a própria resistência para que a cultura de paz se estenda a cada vez mais seres humanos, é preciso que a comunidade esteja unida para refletir, educar, debater, fomentar políticas públicas que preparem crianças, jovens, pais, profissionais da educação e toda a sociedade. Pode parecer distante, mas sem os primeiros passos, não se pode construir a mudança que queremos ver e ser.

 


[1] MORIN, Edgar. O método 2: a vida da vida. Tradução de Marina Lobo. Porto Alegre: Sulina, 2005.

[2] Idem.

[3] Idem.

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