Diário de Classe

A invenção do ato institucional em 1964

Autor

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

31 de julho de 2021, 8h00

De acordo com Tocqueville, "se se estudasse atentamente o que se passou no mundo desde que os homens conservam memória dos acontecimentos, descobrir-se-ia sem esforço que em todos os países civilizados, ao lado de um déspota que manda, encontra-se quase sempre um legista que regula e coordena as vontades arbitrárias e incoerentes do primeiro. (…) Os primeiros sabem como obrigar os homens a obedecer momentaneamente; os segundos possuem a arte de forçá-los quase voluntariamente a uma obediência duradoura". A observação feita por Tocqueville é uma chave interessante de investigação sobre regimes autoritários. Afinal, o Direito foi a área de formação que mais cedeu quadros para a ditadura militar. Dos 85 ministros da ditadura, 30 tinham formação em Direito, 26 em Engenharia, sete em Medicina, seis em Economia e 16 eram militares [1]. Um aspecto importante da experiência autoritária vivenciada mais recentemente pelo Brasil e que precisa ser melhor investigado para que possamos compreender as estratégias jurídicas utilizadas pelos juristas para a institucionalização da ditadura militar.

Essa participação foi fundamental para a construção da ordem política instalada após a deposição do presidente João Goulart, momento no qual o pacto constitucional de 1946 acabou rompido pelas forças políticas e sociais que apoiaram o golpe civil-militar. O fim da República de 1946 transferiu aos juristas da ditadura a tarefa de organizar os instrumentos jurídicos responsáveis pela consolidação do regime. No lugar de uma Constituição para limitar do poder e proteger as liberdades civis, políticas e sociais, os juristas da ditadura implantaram uma engenharia jurídica fundamentada inteiramente na doutrina de segurança nacional, o que permitiu a relativização dos direitos e garantias fundamentais — protegidos pelo constitucionalismo do pós-Segunda Guerra Mundial na repressão contra os inimigos do regime.

Logo após o golpe de 1964, formou-se dentro das Forças Armadas um Comando Supremo da Revolução, representado pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Seu principal porta-voz era o marechal Arthur da Costa e Silva, que, por meio de um ato de força, se autoproclamou ministro da guerra do novo governo. A tarefa política do comando revolucionário estava voltada precipuamente para a construção da nova base jurídica do sistema político, no sentido de legitimar o poder hegemônico dos militares dentro das esferas de governo, e ao mesmo tempo servir como instrumento legal para os expurgos que deveriam afastar os "elementos indesejáveis" da Administração Pública, identificados genericamente como comunistas pela doutrina de segurança nacional.

A configuração do ato institucional como principal ato normativo da ditadura ocorreu após a apresentação de diversos projetos que buscavam demolir as franquias do constitucionalismo. É interessante destacar que, nesse momento, vários civis se apresentaram para ajudar o novo regime a formular seus mecanismos jurídicos autoritários. Para iniciar a discussão, no dia 2 de abril de 1964 o jornal Tribuna da Imprensa defendeu a imediata cassação do comando civil janguista. Em consonância com o jornal carioca, o empresário e presidente da Light, Antonio Gallotti, foi um dos primeiros a formular um projeto jurídico de suspensão do Estado de Direito, enviando sua contribuição diretamente aos cuidados do marechal Costa e Silva. Nesse mesmo sentido, Golbery do Couto e Silva já trazia consigo um projeto intitulado decreto institucional, que tinha como objetivo suspender as garantias constitucionais por seis meses, cassar os direitos políticos e banir o ex-presidente João Goulart, três governadores e uma quantidade indeterminada de deputados e senadores [2].

Na mesma ânsia de acabar com o Estado de Direito, o jornalista Julio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de São Paulo, juntamente com o jurista Vicente Rao, catedrático de Direito Civil da tradicional Faculdade de Direito da USP, formularam o primeiro projeto denominado como ato institucional. Nele, Mesquita Filho e Rao propugnaram a anulação dos mandatos de governadores e prefeitos; a dissolução do Senado, da Câmara e das Assembleias Legislativas; e a suspensão do Habeas Corpus. Já o Ministério da Aeronáutica sugeriu a imposição de uma medida capaz de expurgar não apenas civis, mas também militares simpáticos ao comunismo [3].

Sem se afastar dessa linha política, importantes nomes do liberalismo brasileiro também apresentaram sua proposta de dissolução dos direitos e das garantias fundamentais de políticos pertencentes ao governo deposto. A ideia geral era realizar um expurgo do corpo político, pelo qual os opositores do golpe deveriam perder seus poderes políticos por 15 anos. Algo que o cardeal do Rio de Janeiro, dom Jaime de Barros Câmara, sustentou como consequência do sentimento cristão que determina que "punir os que erram é uma obra de misericórdia" [4]. Entre os signatários do projeto liberal apresentado ao marechal Costa e Silva, encontravam-se os seguintes parlamentares: Daniel Krieger, Adauto Lúcio Cardoso, Ulysses Guimarães, Martins Rodrigues, Bilac Pinto, Paulo Sarasate, Pedro Aleixo e João Agripino [5].

Depois de todas essas formulações apresentadas por juristas, empresários, jornalistas e políticos interessados em organizar as primeiras medidas do Estado de exceção, acabou prevalecendo o projeto oferecido pelos juristas Francisco Campos e Carlos Medeiros Silva. Ambos já haviam trabalhado para a ditadura do Estado Novo em 1937, quando Campos formulou e Medeiros Silva datilografou a Constituição outorgada por Getúlio Vargas. Dessa vez não seria diferente. Unidos pela aversão à democracia, Medeiros Silva escreveu todos os dispositivos previstos nos 11 artigos do Ato Institucional nº 1, enquanto Campos apresentou um preâmbulo contendo o fundamento ideológico para todos os instrumentos jurídicos outorgados pelos militares ao longo de 21 anos, ao afirmar que a ditadura se investia como poder constituinte e que, portanto, sua legitimidade provinha de si mesma. Dessa maneira ficava definida a base jurídica necessária para a institucionalização da ditadura militar.

Mas, diante de um ato de força que destituiu o presidente da República, qual seria a razão de legalizar a ditadura? Nas palavras do historiador Marcos Napolitano, o regime militar criou o Ato Institucional para "rotinizar a autocracia e despersonalizar o poder" [6]. Uma ditadura que se baseava no poder hegemônico dos militares não poderia sobreviver sem um grau de racionalidade jurídica que permitisse o funcionamento de seu sistema político. Permitir que a disputa política entre os quadros das Forças Armadas ocorresse sem qualquer ordem jurídica, com a propagação de facções dentro de suas tropas, poderia desencadear situações de instabilidade para o regime. Nesse sentido, os atos institucionais serviram para consolidar um processo de "normatização autoritária", que, ainda segundo Napolitano, "(…) eram fundamentais para a afirmação do caráter tutelar do Estado, estruturado a partir de um regime autoritário que não queria personalizar o exercício do poder político, sob o risco de perder o seu caráter propriamente militar" [7].

A partir do golpe, muitos juristas colaboraram com o esfacelamento da Constituição de 1946 e colocaram o Direito na condição de mero instrumento do poder. O ato institucional foi o principal instrumento normativo da ditadura militar, sendo que, na hierarquia da ordem jurídica, ele foi colocado acima da própria Constituição, ao ponto de negar a tradicional noção jurídica de que um pacto constitucional deve funcionar como a lei suprema de uma ordem política. Assim teve início a irracionalidade jurídica que colocou num mesmo plano duas situações inconciliáveis: a defesa da normalidade institucional e a imposição de uma legalidade ad hoc representada principalmente pelos atos institucionais. O Direito, desse modo, não serviu como espaço de definição e proteção das liberdades, mas, sim, como uma racionalidade instrumental à disposição dos donos do poder.

 


[1] NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do Regime Militar brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2014, pp. 72-73.

[2] GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. 2ª ed., Rio de Janeiro: Intrínseca, v. 1, 2014, pp. 122-123.

[3] GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. 2ª ed., Rio de Janeiro: Intrínseca, v. 1, 2014, p. 123.

[4] GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. 2ª ed., Rio de Janeiro: Intrínseca, v. 1, 2014, p. 123.

[5] GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. 2ª ed., Rio de Janeiro: Intrínseca, v. 1, 2014, p. 123-124.

[6] NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2014, p. 80.

[7] NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2014, p. 80.

Autores

  • é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar), doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica e do grupo Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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