Opinião

O e-commerce e o direito de arrependimento nos produtos médicos

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27 de julho de 2021, 21h35

Inicialmente importa conceituar que o direito de arrependimento, o qual se pretende analisar neste artigo, também conhecido como "prazo de reflexão", é assegurado pelo Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/1.990, em seu artigo 49 [1], tendo como base o pressuposto de que o consumidor final poderá desistir de qualquer contratação e fornecimento de produtos e serviços realizados fora do estabelecimento comercial respeitado o prazo de sete dias indicado na lei, a contar da assinatura do contrato ou do ato de recebimento do produto ou serviço.

A ideia de um prazo de "reflexão" pressupõe, nas palavras de Rizzato Nunes, "(…) o fato de que, como o consumidor não esteve em contato real com o produto ou serviço, isto é, como ainda não ‘tocou’ concretamente o produto ou ‘testou’ o serviço, pode querer desistir do negócio depois que o avaliar melhor. Ou, em outros termos, a lei dá oportunidade para que o consumidor, uma vez tendo recebido o produto ou avaliado melhor o serviço, possa, no prazo de 7 dias, desistir da aquisição feita" [2]. Trata-se de um direito potestativo do consumidor, razão pela qual não se faz necessária qualquer justificativa ou motivação a respeito do arrependimento na compra, sendo requisito, apenas, a contratação fora do estabelecimento comercial (v. artigo 49 — Código de Defesa do Consumidor).

Com o decorrer dos anos, especialmente no último decênio, em razão do avanço da internet e da facilitação de seu acesso à população, o comércio eletrônico, que nada mais é do que um modelo de comércio que utiliza como base plataformas eletrônicas, passou a, certamente, ocupar o lugar de maior destaque para a finalidade do que prevê o instituto do direito de arrependimento.

Tal lugar de destaque deve ser considerado especialmente pelas facilidades atreladas ao e-commerce [3], como: 1) possibilidade de venda online sete dias na semana e durante 24 horas por dia, aumentando significativamente o alcance das vendas das empresas criadas a luz do comércio físico e presencial; 2) criação de empresas exclusivamente com a finalidade de comércio eletrônico que atuam tanto como intermediárias (à exemplo, mercado livre, e-bay) como o representativo aumento de empresas voltadas a venda de seus produtos exclusivamente pelo comercio online; e 3) a facilidade do consumidor em não precisar se deslocar, tendo acesso a quase que a integralidade de serviços e produtos pelo formato do comércio eletrônico.

Partindo desse parâmetro, vale a pena refletirmos sobre o exercício do direito de arrependimento nas compras de produtos médico-hospitalares descartáveis realizadas através do comércio eletrônico, e-commerce, graças ao movimento econômico enfrentado e as novas necessidades surgidas em decorrência da pandemia nos últimos tempos.

Isso porque, somado ao crescimento deste formato de venda tão atrativo a todos os envolvidos, no início de 2020 o mundo passou a conviver com o vírus da Covid-19, que motivou a pandemia que ainda assola gravemente nossa sociedade, tornando-se essencial a utilização de equipamentos de proteção individuais, que antes eram limitados a um grupo específico de profissionais, como adiante será explicado.

Por conta desse cenário, com fechamento de lojas físicas tendo como finalidade a contenção da contaminação, o e-commerce foi um dos pilares da economia em que mais houve crescimento, em razão de todas as facilidades já implícitas a sua operação, sendo apurado por meio de relatório emitido pela Mastercard SpendingPulse [4] o crescimento de 75%.

E, segundo André Dias, diretor executivo da Compre&Confie, empresa que monitora vendas de mais de 80% do varejo digital brasileiro, o crescimento nas compras online de referidos produtos, nomeados como da categoria "área da saúde", apontou crescimento de 128,5% entre os dias 24/2 e 25/3/2020 [5].

Consequentemente, o crescimento demonstrado em tal categoria, como dito, engloba os produtos determinados como imprescindíveis para a circulação das pessoas uma vez que essenciais a proteção pessoal e contra a disseminação da Covid-19, tais como: luvas descartáveis, álcool em gel e máscaras tanto de uso descartável quanto de uso perene.

Cumpre pontuar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é o órgão público responsável [6] pela regulamentação e classificação do material médico-hospitalar, nos termos do regulamento técnico constante da RDC nº 185 de 22/10/2001. Sob essa análise, é certo que esses produtos, alguns deles considerados equipamentos de proteção individual (EPIs), obedecem às normas elaboradas pela Anvisa [7] que estabelecem regras e padrões para a garantia da qualidade e segurança dos produtos, no que tange, por exemplo, à/ao registro, fabricação, controle, fiscalização, riscos, monitoramento etc. nos mais diversos setores de atuação da área da saúde.

Ainda mais, os produtos médicos de uso único e descartáveis, como o próprio nome sugere, são aqueles destinados a curta durabilidade, ou seja, de utilização única. À vista disso, a definição constante no item 13.4 da RDC nº 185 de 22/10/2001 da Anvisa: "Produto médico de uso único: Qualquer produto médico destinado a ser usado na prevenção, diagnóstico, terapia, reabilitação ou anticoncepção, utilizável somente uma vez, segundo especificado pelo fabricante".

E, como anteriormente pontuado, se prestam como exemplo desse tipo de produto, comprados por consumidores finais, as máscaras [8] nas modalidades cirúrgicas [9] e respiradores [10], bem como as luvas cirúrgicas [11].

Nesse sentido, o novo nicho surgido com a aquisição desses produtos médicos de uso único pelos consumidores finais via e-commerce, com aumento significativo nesse período da pandemia, nos leva à reflexão a respeito da limitação ao exercício do direito de arrependimento, haja vista o risco de contaminação a que esses produtos estão expostos a partir de sua devolução ao fornecedor e posterior revenda.

Por certo que o consumidor pode exercer o seu direito de arrependimento em relação a esse nicho de produtos. O que se questiona é a amplitude desse direito, de modo que o consumidor possa "abrir", "testar" e "usar" os referidos produtos durante o período de reflexão.

Sob essa análise, se a integridade do produto estiver comprometida, nos parece razoável que o fornecedor recuse a devolução do produto, pois entendemos que, por se tratarem de produtos que obedecem rigorosa legislação sanitária e, principalmente, por envolver questão de saúde pública, tais produtos seriam destinados ao descarte, haja vista o risco implícito ao seu eventual reaproveitamento no mercado.

Aliás, vale observar que até mesmo nas compras ditas presenciais o consumidor também não poderá "testar" tais produtos, pois, afinal, a violação da embalagem também prejudicaria a qualidade e, consequentemente, a comercialização para outras pessoas. Apenas, no nosso entendimento, estamos seguindo a mesma linha de raciocínio para o e-commerce.

Da atual redação do dispositivo que regula o direito de arrependimento [12], nada se fala a respeito de uma limitação [13] ao exercício desse direito. Todavia, ao que parece, haverá num futuro próximo a necessidade de definir legalmente esses limites para certos produtos adquiridos à distância, graças a expansão do e-commerce.

Vale registrar que uma orientação da Anvisa para testar o produto (no caso, os respiradores) é solicitar uma amostra para o fornecedor a fim de averiguar as suas exatas especificações. Nesse sentido: "Quando possível, solicite amostras do produto antes de fazer a compra e realize a verificação de vedação do respirador em alguns profissionais, de forma a assegurar que o produto é capaz de causar uma vedação estanque" [14]. Com a amostra, o consumidor poderá ter a certeza da qualidade do produto, evitando, assim, sua devolução e inutilização pelo fornecedor.

Sobre isso, vale mencionar decisão proferida pela juíza de Direito Michelle Fabiola Dittert Pupulim: "O direito de arrependimento é verdadeiro prazo de reflexão. Tem por objetivo proteger o consumidor de práticas comerciais agressivas e do fato de desconhecer o produto que foi adquirido. Todavia, prazo de reflexão não se confunde com a possibilidade de teste de produto" [15].

Especialmente sobre os produtos da categoria de saúde aqui narrados e mais ainda aos que são identificados como descartáveis de uso único (como dito, luvas e máscaras, por exemplo), é certo que deverá a jurisprudência analisar com zelo e cuidado o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor, bem como o prejuízo que poderá ser acarretado ao fornecedor dos referidos materiais, caso as caixas ou cartuchos sejam violados.

Subentende-se pela existência dos princípios de boa-fé e das boas práticas comerciais por parte do consumidor, que poderá se valer de seu direito de arrependimento quando de fato quiser desistir de tal compra, respeitada a integridade da qualidade do produto, antes de devolvê-lo ao fornecedor, de modo a garantir o equilíbrio e a harmonia [16] entre os referidos polos participantes da relação consumerista.

Por outro lado, o fornecedor também deve cumprir todos os deveres que se relacionam diretamente com o comércio eletrônico à luz do Código de Defesa do Consumidor, regulamentado pelo Decreto nº 7.962/2.013, que está pautado, basicamente, em três grandes pilares: 1) informações claras a respeito do produto, serviço e do fornecedor; 2) atendimento facilitado ao consumidor; e 3) respeito ao direito de arrependimento (artigo 1º). Em relação ao último item, é importante que os sítios eletrônicos contenham detalhadamente (em respeito ao direito à informação do consumidor [17]) informações referentes à política de venda do produto e orientações claras e ostensivas a respeito das condições quanto ao exercício do direito de arrependimento.

Ainda nesse aspecto, há de se considerar que a aplicação do direito de arrependimento no cenário proposto pelo legislador deverá se adaptar à vertente e às peculiaridades referentes aos produtos "da categoria da saúde", tendo em vista que, mesmo que haja o risco do negócio pelo fornecedor, é certo que para comercializar tais itens estes foram submetidos a diversas testagens com a consequente aprovação dos órgãos sanitários responsáveis, como anteriormente detalhado.

Analogamente podemos mencionar o entendimento de parte da doutrina sobre impossibilidade de aplicação do direito de arrependimento em produtos personalizados, como se observa nas palavras de Alexandre Junqueira Gomide [18]: "Arrepender de uma compra feita sob encomenda parece uma injustiça ao fornecedor, não podendo tal situação ser encarada como risco inerente ao negócio, abrindo caminho para abuso de direito pelo consumidor".

Todavia, em linha contrária, há de se verificar que a posição da jurisprudência no que tange à aplicabilidade do direito de arrependimento é de que "o direito de arrependimento não está condicionado à natureza do produto ou serviço oferecido" (TJ-DF – ACJ: 20150810010313, relator: João Luis Fischer Dias, data de julgamento: 1/12/2015; TJ-PR – 0005579-35.2017.8.16.0058 (acórdão), relatora: juíza Vanessa Bassani, data de julgamento: 7/6/2018)

Tendo em vista todo o apontado, o que se busca com este artigo é que seja levada a discussão e realizada uma nova análise, um pouco mais especificada, tendo em vista o surgimento desse novo nicho de comércio direcionado ao consumidor final, qual seja, produtos da "categoria saúde", pelo que deverão os operadores do Direito analisar pontualmente e identificar qual a forma mais segura para a aplicação do direito de arrependimento garantido pela legislação, sem que haja o surgimento de prejuízo à revelia dos fornecedores e a má utilização do instituto.

 


[1] "Artigo 49 – O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.
Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados".

[2] NUNES, Rizzato. A lei 14.010 de 10/06/20 e o artigo 49 do CDC. Migalhas. Disponível em: :https://www.migalhas.com.br/coluna/abc-do-cdc/329174/a-lei-14-010-de-10-6-20-e-o-art–49-do-cdc. Acesso em 14 mai. 2.021.

[3] A abreviação em inglês de eletronic commerce, que significa "comércio eletrônico" em português.

[4] VILELA, Luiza. E-commerce: o setor que cresceu 75% em meio à pandemia. Consumidor Moderno. Disponível em: https://www.consumidormoderno.com.br/2021/02/19/e-commerce-setor-cresceu-75-crise-coronavirus/. Acesso em 14 mai. 2.021.

[5] VILLELA, Carlos. Quarenta aumenta vendas por e-commerce. Jornal do Comércio.. Disponível em: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/especiais/coronavirus/2020/03/731946-quarentena-aumenta-vendas-por-e-commerce.html. Acesso em 14 mai. 2.021.

[6] Conforme previsão da Lei nº 6.360/1.976.

[7] A Anvisa disponibiliza um manual denominado "Biblioteca de Produtos para a Saúde" que possibilita consultar a legislação do setor. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/regulamentacao/legislacao/bibliotecas-tematicas/arquivos/produtos. Acesso em 06 mai. 2.021.

[8] A Anvisa divide as espécies de máscaras em três: máscaras de proteção de uso não profissional, máscaras cirúrgicas e equipamentos de proteção respiratória (também chamados de respiradores). As máscaras cirúrgicas e os respiradores utilizados por profissionais de saúde são considerados produtos para a saúde, devendo atender normas técnicas e sanitárias em relação aos processos de fabricação, distribuição, comercialização e uso. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/Covid-19-tudo-sobre-mascaras-faciais-de-protecao. Acesso em 14 mai. 2.021.

[9] As máscaras cirúrgicas são consideradas descartáveis e são testadas e aprovadas conforme a norma ABNT NBR 15052, mencionada pela RDC nº 356/2020 da Anvisa. De acordo com a Nota Técnica 4/2020 da Anvisa, "as máscaras cirúrgicas são descartáveis e não podem ser limpas ou desinfectadas para uso posterior e quando úmidas, pois perdem a sua capacidade de filtração". Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04_2020-25-02-para-o-site.pdf. Acesso em 14 mai. 2.021.

[10] Os respiradores são equipamentos de proteção individual (EPIs) que cobrem o nariz e a boca, proporcionando uma vedação adequada sobre a face do usuário, nos termos da ABNT NBR 13698 ou normas técnicas equivalentes de padrão internacional, como a EM 149, conforme RDC nº 356/2020 da Anvisa. Os respiradores descartáveis apresentam vida útil relativamente curta e são conhecidos pela sigla PFF, de Peça Semifacial Filtrante. Os respiradores de baixa manutenção são reutilizáveis, têm filtros especiais para reposição e costumam ser mais duráveis. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/Covid-19-tudo-sobre-mascaras-faciais-de-protecao. Acesso em 14 mai. 2.021.

[11] Conforme RDC nº 55/2011 da Anvisa que estabelece os requisitos mínimos de identidade e qualidade para as luvas cirúrgicas e luvas para procedimentos não cirúrgicos. A Resolução-RE nº 2605/2006 da Anvisa estabelece a lista de produtos médicos enquadrados como de uso único proibidos de serem reprocessados, dentre eles, as luvas cirúrgicas.

[12] O projeto de Lei nº 3.514/2.015 que tramita atualmente na Câmera dos Deputados sugere alterações no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor com o acréscimo de nove parágrafos, sendo o quarto: "§4º. A desistência formalizada dentro do prazo previsto no caput implica a devolução do produto, com todos os acessórios recebidos pelo consumidor e a nota fiscal." Porém, o projeto não prevê a forma pelo qual esse produto deve ser devolvido ao consumidor. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1408274&filename=PL+3514/2015. Acesso em 14 mai. 2.021.

[13] O projeto de Lei nº 3.514/2.015 que iniciou no Senado Federal sob nº 281/2012 tentou limitar o direito de arrependimento através da Emenda nº 26, na qual não foi aprovada. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4182269&disposition=inline. Acesso em 14 mai. 2.021.

[15] Conforme decisão no Processo nº 0007297-59.2017.8.26.0003, Juizado Especial Cível do Foro Regional de Jabaquara-SP, proferida em 27/02/2018.

[16] Conforme princípio destacado no artigo 4º, III do Código de Defesa do Consumidor ao tratar da Política Nacional das Relações de Consumo: "harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (artigo 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores".

[17] Conforme artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor.

[18] Gomide, Alexandre Junqueira. Direito de Arrependimento nos contratos de consumo. São Paulo: Almedina, 2014, p. 127.

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