Direito eleitoral

Lives eleitorais: permitidas ou proibidas para as eleições de 2022?

Autor

  • Ângelo Soares Castilhos

    é analista judiciário da área judiciária do TRE-SC (atualmente removido para o TRE-RS) especialista em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS e em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci além de membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP) e do Instituto Gaúcho de Direito Eleitoral (IGADE).

26 de julho de 2021, 8h00

1) Considerações introdutórias
A pandemia do novo coronavírus teve, como principal repercussão na seara político-eleitoral, com a EC n° 107/2020, o adiamento das eleições de 2020 em 42 dias.

É preciso destacar, pois, que somente foi possível essa mínima postergação do pleito porque a internet permitiu que tenham sido praticados atos essenciais ao processo eleitoral (por exemplo, convenções partidárias e atos de campanha política).

Nesse contexto, a utilização de meios até então ignorados pelo marketing político surgiram como grandes alternativas à mobilização e à arrecadação de recursos. Entre eles, os livemícios e as lives eleitorais adquiriram enorme importância nas campanhas.

Por isso, examinaremos aqui o RE n° 0600032-66.2020.6.21.0161, em que o Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE-RS), por quatro a três, decidiu pela impossibilidade da realização de live artística destinada a arrecadar recursos para candidatura, seu contexto e o atual estado da arte do tema na normatividade da Lei de Eleições (LE).

2) O acórdão do TRE-RS n°0600032-66.2020.6.21.0161
O acórdão ficou assim ementado:

"RECURSO. ELEIÇÃO 2020. REPRESENTAÇÃO. PROCEDENTE. PROPAGANDA ELEITORAL. PRELIMINARES EM CONTRARRAZÕES. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. APRESENTAÇÃO MUSICAL EM REDE SOCIAL. ARTISTA CONSAGRADO NACIONALMENTE. VENDA DE INGRESSOS. ARRECADAÇÃO DE RECURSOS. AFRONTA LIVEMÍCIO AO ARTIGO 39, §7º, DA LEI N° 9.504/97. EVENTUAL ABUSO DE PODER ECONÔMICO. APURAÇÃO EM AÇÃO ESPECÍFICA E EM MOMENTO PRÓPRIO. DESPROVIMENTO.
(…)
 Controvérsia sobre a possibilidade de realização de evento artístico do músico Caetano Veloso (…) com objetivo declarado de arrecadação de recursos para campanha eleitoral. Desde a edição da Lei n° 11.300/06, proibiu-se a realização de eventos com artistas, para evitar a distribuição de showmícios benesses ao eleitor como forma de angariar indevidamente votos. A tutela dirigia-se a combater o abuso do poder econômico (artigo 22 da LC n° 64/90) e, da mesma forma, assegurar a paridade de armas entre os candidatos. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao considerar a nova realidade de eventos virtuais diante da Covid-19, inseriu na categoria de 'evento assemelhado para promoção de candidatos' a proibição de
lives eleitorais (livemício). Assim, eventos gratuitos para público aberto, presenciais ou virtuais, com artistas, para promoção de candidatos, não podem ser realizados.
— O evento de arrecadação de campanha, seja com o objetivo de comercializar bens ou serviços, ou não, é uma espécie de reunião eleitoral com um objetivo específico, qual seja, a arrecadação de recursos pelas diversas formas previstas em lei, o que, portanto, não descaracteriza a sua natureza de evento eleitoral. Como tal, não há de se afastar a aplicação do disposto nos artigos 39, §7º, da Lei n° 9.504/97 e 17 da Resolução TSE n° 23.610/19, que vedam expressamente a participação de artistas como forma de animação, diversão e espetáculo, sendo ele o protagonista ou não.
 Ainda que se caracterize como um evento de arrecadação de campanha, o disposto no artigo 23, §4º, inciso V, da Lei n° 9.504/97, c/c o artigo 30 da Resolução TSE n° 23.607/19 não chancela a contratação de artistas, seja remunerada ou por meio de doação de prestação de serviços artísticos, com a finalidade eleitoral pretendida pelos recorrentes, uma vez que a legislação veda a vinculação de um evento artístico à campanha eleitoral.
 Mesmo que os tipos de eventos tenham naturezas distintas e sejam disciplinados em resoluções diversas, eventos eleitorais de arrecadação, como no caso dos autos, podem assumir um caráter de propaganda política, fazendo-se necessária a conjunção das normas. A pretensão, neste caso, é justamente mitigar os dois tipos de eventos, retirando do evento de arrecadação o protagonismo normal dos candidatos e transferindo-o ao artista, o que impõe seja feita a mitigação das normas que regulam um e outro, afastando, por sua vez, a alegação de uma interpretação extensiva da norma, mas sim restritiva à situação mitigada.
 Ainda que se caracterize como um evento de arrecadação de campanha, o disposto no artigo 23, §4º, inciso V, da Lei n° 9.504/97, c/c o artigo 30 da Resolução TSE n° 23.607/19 não chancela a contratação de artistas, seja remunerada ou por meio de doação de prestação de serviços artísticos, com a finalidade eleitoral pretendida pelos recorrentes, uma vez que a legislação veda a vinculação de um evento artístico à campanha eleitoral. (…)
 Inexistência de cerceamento das liberdades de expressão e de expressão artística, garantidas pela Constituição Federal nos incisos IV e IX do artigo 5º, posto que o artista pode perfeitamente manifestar seu apoio às campanhas que desejar, inclusive doando o cachê de seus shows presenciais, ou apresentados por meio de, em lives benefício dos(as) candidatos(as) de sua escolha, dentro dos limites legais, como já o fez em eleições anteriores.
 A finalidade da norma prevista no artigo 39, §7º, da Lei n° 9.504/97 não é vedar apenas a apresentação de artistas famosos, televisivos, celebridades ou subcelebridades, mas todo e qualquer tipo de apresentação de artistas em geral, sejam eles circenses, bandas, cantores, cozinheiros ou artistas de rua, que possam, por meio da celebração de sua arte, atrair público e eleitores que o evento eleitoral, por si só, não seria capaz de reunir.
10 
 Provimento negado".

Percebe-se que os julgadores debateram sobre conflito normativo inusitado: a permissão concedida pelas normas de arrecadação de recursos (artigo 23, §4º, V, da LE e artigo 30 da Resolução TSE n° 23.607/2019) versus a proibição estabelecida pelas regras de propaganda eleitoral (artigo 39, §7º, da LE e artigo 17 da Resolução TSE n° 23.610/2019).

3) O contexto que antecedeu ao julgamento do TRE-RS
Pouco antes, o TSE havia se deparado com consulta, na qual o PSOL questionava se a regra do artigo 39, §7º, da LE permitiria a realização de apresentação dos candidatos aos eleitores juntamente com atores, cantores e outros artistas por meio de shows não remunerados e realizados em plataforma digital (lives eleitorais) [1].

Por unanimidade, a CTA n° 061243-23.2020.6.00.0000 foi respondida negativamente, com a seguinte ementa:

"CONSULTA. ARTIGO 39, §7º, DA LEI 9.504/97. SHOWMÍCIOS E EVENTOS ASSEMELHADOS. HIPÓTESE DE 'LIVES ELEITORAIS'. IDÊNTICA VEDAÇÃO. RESPOSTA NEGATIVA.
(…)
2 — Nos termos do artigo 39, §7º, da Lei 9.504/97, 'é proibida a realização de showmício e de evento assemelhado para promoção de candidatos, bem como a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral'. Dispositivo introduzido pela Lei 11.300/2006 que objetiva coibir o abuso do poder econômico (artigo 22 da LC 64/90) e, de igual modo, assegurar a paridade de armas entre os candidatos.
3
— A realização de eventos com a presença de candidatos e de artistas em geral, transmitidos pela internet e assim denominados como 'lives eleitorais', equivale à própria figura do showmício, ainda que em formato distinto do presencial, tratando-se, assim, de conduta expressamente vedada pelo artigo 39, §7º, da Lei 9.504/97.
4
— A proibição compreende não apenas a hipótese de showmício, como também a de 'evento assemelhado', o que, de todo modo, albergaria as denominadas '
lives eleitorais'.
5
— Nos termos expressos da lei eleitoral, a restrição alcança os eventos dessa natureza que sejam ou não remunerados.
 O atual cenário de pandemia não autoriza transformar em lícita conduta que se afigura vedada. Ausência, na recém promulgada EC 107/2020, em que introduzidas significativas mudanças no calendário eleitoral por força da Covid-19, de qualquer ressalva da regra do artigo 39, §7º, da Lei 9.504/97.
7
— As manifestações de natureza exclusivamente artísticas, sem nenhuma relação com o pleito vindouro, permanecem válidas, conforme as garantias constitucionais insculpidas nos incisos IV e IX do artigo 5º da Constituição da República.
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— 
Consulta respondida negativamente, na linha dos pareceres da assessoria consultiva e do Ministério Público Eleitoral".

É perceptível, pois, que o TRE-RS pareceu, por sua maioria, estar tão somente seguindo o posicionamento aqui externado pela corte superior, que, à época, era um precedente contemporâneo e congênere ao caso julgado nos autos do RE n° 0600032-66.2020.6.21.0161.

4) Legislação e doutrina sobre o tema
Inequivocamente, nem o artigo 23, §4º, V, nem o artigo 39, §7º, ambos da LE, quando redigidos, cogitavam tratar de realização de uma live de arrecadação de valores por artista de renome nacional e internacional. Édson de Resende Castro exemplifica que a regra do artigo 23 foi pensada para eventos de cunho mais trivial:

"Permitida, ainda, a comercialização de bens ou serviços e a realização de eventos, conforme §4º, inciso V, do artigo 23, da Lei n° 9.504/97, incluído pela Lei n° 13.488/2017. Os candidatos e os partidos políticos podem, v.gr., promover almoços, jantares, etc., com venda de convites a preços superiores ao que seria razoável e ao custo total da sua realização, para que o lucro seja depositado na conta da campanha" [2].

José Jairo Gomes, por sua vez, ao tratar da temática dos showmícios, revela uma interpretação que, prima facie, vai ao encontro da maioria formada no julgamento do TRE-RS: 

"Showmício  a teor do §7º do artigo 39 da LE, é proibida a realização de showmício e de evento assemelhado para promoção de candidatos, bem como a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral. Estrangeirismo à parte, lamentavelmente, o legislador deixou à doutrina e jurisprudência a tarefa de dizer o que se deve compreender por 'showmício' e 'evento assemelhado'. Deve-se considerar como tal o evento em que haja divertimento, entretenimento, recreação ou mero deleite dos presentes" [3].

Da mesma forma, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, ao cuidar do tópico, externa idêntica opinião:

"Na campanha eleitoral não se permite a realização de espetáculo musical com o objetivo de obter a simpatia dos eleitores e divulgar propostas políticas (showmício, no terrível anglicismo e neologismo cometido pela Lei 9.504/97) e de evento assemelhado para promoção de candidatos, bem como a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral (Lei 9.504/97, artigo 39, §7º)" [4].

Portanto, resta evidente que o tema das apresentações artísticas é espinhoso, devendo ser pensado e tratado pela doutrina tanto para suas formas virtual, tal como a controvérsia gerada pela live do cantor Caetano Veloso, quanto para a presencial, que muito provavelmente voltará à tona nas campanhas de 2022.

5. Os rumos do processo no TSE
Em liminar proferida pelo Plenário do TSE nos autos da TutCautAnt n° 0601600-03.2020.6.00.0000, evento acabou sendo liberado. Destacou-se, porém, que nele não poderia haver pedido expresso de votos [5].

Por maioria, considerou-se que não cabe à Justiça Eleitoral realizar censura prévia, nem avaliar a legalidade de evento que ainda não ocorreu e que não é vedado por lei. No voto, o relator, ministro Luis Felipe Salomão, destacou que não entraria no mérito da discussão, ou seja, não avaliaria se o evento se enquadra como "showmício". Ele ressaltou, no entanto, que não cabe à Justiça Eleitoral exercer qualquer tipo de censura a um evento, organizado por candidato, que busca arrecadar verbas para a sua campanha, o que é autorizado pelo artigo 23 da LE. Ele entendeu ainda que não suspender a decisão do TRE gaúcho, até que haja a análise do mérito do caso, causaria evidente prejuízo para a candidata, já que a live fechada estava prevista para ocorrer dois dias depois.

No entanto, o relator destacou que o deferimento do efeito suspensivo, permitindo-se a realização do evento, não impediria o controle jurisdicional posterior pela Justiça Eleitoral.

Contudo, o ministro Mauro Campbell Marques divergiu, afirmando que, na linha do próprio TSE ao responder à consulta feita pelo PSOL, não seria possível a participação de artistas em atos eleitorais virtuais, por estes se assemelharem, justamente, a "showmícios". Ele descartou a hipótese de censura prévia exercida pela Justiça Eleitoral, proibida pela CF, já que o evento era "confessadamente organizado" por candidata à prefeitura de Porto Alegre, mostrando-se, assim, uma propaganda eleitoral ilícita, vedada pelo §7º do artigo 39 da LE.

Infelizmente, essa importante discussão acabou por ter lugar, perante o TSE, somente no julgamento de âmbito cautelar, visto que, no processo principal (REspe n° 0600032-66.2020.6.21.0161), o relator, ministro Luis Felipe Salomão, considerou o recurso prejudicado:

"Decisão
(…)
Anoto, em preliminar, que os autores da representação, ora recorridos, objetivam no caso a procedência do pedido unicamente para 'seja proibida a realização da
livemício de Caetano Veloso, com ou sem arrecadação de recursos' (ID 48.698.388).
Assim, e considerando que o evento já foi realizado em virtude do deferimento de tutela de urgência por esta Corte Superior na sessão de 5/11/2020 (TutCautAnt 0601600-03), impõe-se reconhecer a prejudicialidade do recurso especial e da própria demanda.
(…)

Ante o exposto, julgo prejudicado o recurso especial, nos termos do artigo 36, §6º, do RI-TSE".

Desse modo, apesar da liberação para sua realização no caso concreto, não houve, por parte da corte superior, uma resposta definitiva em relação ao mérito da demanda original.

6) Considerações finais
Ao final do presente estudo, percebe-se que ainda há mais questionamentos do que respostas em relação às lives de arrecadação de recursos para campanhas eleitorais, quando consistirem em apresentações artísticas.

Daqui para frente, podem ser vislumbradas duas perspectivas:

1) Ou o Congresso Nacional toma para si essa atribuição, legislando sobre a temática;

2) Ou haverá novas discussões nos tribunais eleitorais na campanha das eleições de 2022, inclusive no que tange a eventos presenciais.

Como fato consolidado, pois, têm-se unicamente que o acórdão do TRE-RS nos autos do RE n° 0600032-66.2020.6.21.0161 configura-se como o mais representativo precedente nacional sobre o mérito dessa intrincada controvérsia.

 


[1] TSE: candidatos não podem participar de lives de artistas para promover campanhas. Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Agosto/tse-candidatos-nao-podem-participar-de-lives-de-artistas-para-promover-campanhas. Acesso em: 19 jul. 2021.

[2] Curso de Direito Eleitoral. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018, p. 527.

[3] Direito Eleitoral. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2020, pp. 752-753.

[4] Direito Eleitoral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 366.

[5] TSE libera realização de ‘live’ com artista para arrecadar recursos para campanha. Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Novembro/tse-libera-realizacao-de-2018live2019-com-artista-para-arredacar-recursos-para-campanha. Acesso em: 19 jul. 2021.

Autores

  • é analista judiciário da área judiciária do TRE-SC (atualmente removido para o TRE-RS) e chefe da Seção de Estudos Eleitorais da Escola Judiciária Eleitoral do Rio Grande do Sul. É bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS e em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci, além de membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

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