Processo Familiar

Direitos de avosidade em integração familiar intergeracional

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

25 de julho de 2021, 11h02

1. Na próxima segunda-feira (26/7) é celebrado no país (e em Portugal) o "Dia dos Avós". Razão fundante da celebração é o fato de essa data ser consagrada a Santa Ana e a São Joaquim, avós maternos de Jesus e padroeiros de todos os avós. Ana morreu quando Maria tinha apenas três anos (século 1 a.C.).

A figura dos avós é superlativa dos pais, na melhor acepção francesa ("grand- père", "grand-mère") e no direito de família tem hoje a sua merecida posição ancestral, a partir do clássico conceito de família extensa, onde a linhagem se faz predominante por descendências surgidas.

Há, sobretudo, uma estruturação familiar afetiva ampliada pela avosidade, designação trazida do direito multidisciplinar espanhol, que empreende da "abuelidad" uma análise do fenômeno relacional entre avós e netos, dinamizando a integração familiar intergeracional, notadamente no plano trigeracional.  

No cenário da família, os avós atuam com sabedoria e afeição, na representação avoenga indispensável de tratos receptivos e cuidados amorosos. A “casa do avô” é a do avô materno do poeta pernambucano Manuel Bandeira como a casa universal e intemporal, é o espaço vital de ser, em seu significado, abrigo e proteção; uma casa, enfim, que se traduz no coração de espírito livre, a assegurar um bem-estar moral e material. Nesta relação de avosidade, impende, em melhor definição, a denominada “avoternidade” que Ana Carolina Brochado Teixeira e Sofia Miranda Rabelo proclamam, como emanação do exercício parental previsto pelo art. 229 da Constituição Federal (01)

Há, também, uma nova postura de vidas avoengas no desenho da relação afetiva entre avós e netos. Os avós não mais estão, rigorosamente, em estação crepuscular, ou avós outonais, porque, nas variáveis culturais construídas, são eles (i) avós antecipados em plena idade adulta, sem estado de ancianidade ou (ii) são avós rejuvenescentes por saberem envelhecer bem e assim envelhecem menos.  Antes de mais, a velhice será somente aquela (mesmo diante do relógio do tempo), que tenha passivo de futuro. Afinal, o homem envelhece na ordem direta da vida e na ordem inversa da resistência da alma, como advertia Victor Hugo.

Os avós atuais se apresentam, portanto, com novos papéis sociais e jurídicos, em toda a dignidade existencial da relação avoenga. Importa dizer, no essencial, que as vidas avoengas se situam, por isso mesmo, no plano dos direitos existenciais, com a assunção de novos direitos.

2. Pois bem. Os direitos avoengos conferidos em lei ou por firme entendimento dos pretórios, tem sido (re)desenhados, em prol do prestígio dos avós. Estes, presentemente, situam-se no principal núcleo familiar, aderindo-lhe maior maturidade, afetos irreversíveis, experiencias ensinadas. Os avós são os capitais de iniludível felicidade.

Cumpre anotar, na linha do tempo, importantes avanços, a exemplo:

(i) a lei nº 12.398/2011, de 28 de março, acrescentou parágrafo único ao art. 1.589 do Código Civil, para assegurar que o direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança e do adolescente.

Esse avanço tem relevante expressão, mais ainda quando se sabe que, em muitos casos, os avós complementam pensão de alimentos em favor dos netos, por responsabilidade complementar e sucessiva. A tanto que essa obrigação subsidiária deve ser repartida conjuntamente entre os avós paternos e maternos (STJ – 4A. Turma, REsp. 958.513-SP,  Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 22/2/2011).

(ii) A 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, preponderando circunstância peculiar, reconheceu (23.03.2011) o direito de guarda compartilhada da avó em face dos pais separados, como medida que mais protege os interesses da infante, os quais tem primazia. O relator, desembargador André Luiz Planella Villarinho, destacou que apesar de o art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente mencionar que o dever de sustento, guarda e educação dos filhos incumbe aos pais, o instituto da guarda deve alcançar seu sentido mais amplo, em proveito da menor, atribuindo-o entre avós e pais da criança.

(iii) A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça superando que a guarda não tem como finalidade efeitos meramente previdenciários, decidiu para fins de fixação de tese jurídica, dever admitir-se, de forma excepcional (artigo 31, § 1º, primeira parte c/c § 2º, do ECA) o deferimento da guarda de menor aos seus avós que o mantêm e, nesta medida, desfrutam de melhores condições de promover-lhe a necessária assistência material e efetiva, mormente quando comprovado forte laço de carinho. (REsp. nº 1186086-RO, Rel. Ministro Massami Yueda, j. em 03.02.2011).

A propósito, é também reconhecido o direito de guarda de neto, mesmo estando seus pais vivos e vivendo juntos, quando estes, não se opondo ao pedido, já sustentam, com sacrifícios, outros filhos. (STJ – 3ª Turma, REsp. nº 686.709, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros).

Como se observa, o ano de 2011 foi um ano de novos paradigmas e ao fim e ao cabo de dez anos passados, tem-se neste 2021 a continuidade construtiva da avosidade em saudável coparticipação na família, com seus devidos efeitos jurídicos.

Demais disso, anota-se que em junho passado, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão inovadora, reconheceu a legitimidade processual ativa de netos que, após o falecimento do pai, ajuizaram ação para que fosse reconhecida a relação com o suposto avô.  Conforme a relatora, min. Nancy Andrigui, “tanto na hipótese em que se desconhecem os genitores de pai pré-morto quanto na situação em que já existe paternidade registral ou socioafetiva reconhecida, é imprescindível tutelar o direito próprio dos netos de verem reconhecida sua parentalidade avoenga biológica”. (02)

3. Lado outro, sustenta-se que à medida que os pais – infantilizados enquanto adultos porquanto desapercebidos de suas maiores responsabilidades – acarretam um déficit parental aos filhos, os avós se apresentam como os verdadeiros adultos, a atender as obrigações, inclusive alimentares.

Nesse viés, os avós como ascendentes de graus imediatos em seus direitos existenciais de afeto para com os netos se tornam, diante dos vínculos de vida, também responsáveis. A falta de exação paterna os invoca para uma responsabilidade alimentar subsidiária (secundária ou sucessiva), aliás tratada desde o Assento de 09 de abril de 1772.

O Código Civil, no seu artigo 1.698, dispõe que cada um contribuirá na proporção dos seus recursos.  Esse chamado está a exigir melhor disciplina, a saber das limitações de suplemento em face de avós anciãos, quando estes em confronto com os demais avós de faixa etária diversa, para o cotejo das reais condições. Ou seja, a questão de relevo situa-se no que diz respeito à responsabilidade sucessiva do avô quando ancião de prover os alimentos integrais.

Com a edição do Estatuto do Idoso, a doutrina tem expressado que a responsabilidade alimentar avoenga será preferencialmente acessória, ainda assim sem o comprometimento das condições do alimentante ancião. Essa posição da doutrina reclama agora melhor formulação ou adequação finalística.

É que nesse contexto avulta inevitável uma análise percuciente da circunstância de quando se tratarem os netos alimentandos diante de alimentantes idosos, ambos sob a égide do art. 227 da Constituição Federal, uns e outros legitimados a uma proteção integral e absoluta.

Diante da ponderação dos interesses em conflito, entre prestador e favorecido dos alimentos, tutelados por suas qualidades etárias, há de se considerar a responsabilidade subsidiária do avô ancião, seja ela sucessiva ou complementar à obrigação alimentar do art. 1.698 do Código Civil, proporcionalizando-se, no caso concreto, a definição do “quantum” alimentar ou até admitindo-se afastar a prestação reclamada.

4. Em boa nota dos avanços, outro tema importante é atinente à questão da legitimidade dos ascendentes para fins de adoção, frente à vedação prevista pelo art. 42 £ 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É certo que a recente jurisprudência tem mitigado a disposição legal, observando os casos concretos e as circunstâncias dos tatos.

No ponto, merece realce o julgado da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de 13 de março de 2020, figurando como Relator o Min. Luis Felipe Salomão. Ali ficaram estabelecidas premissas básicas da relativização da norma. Elenca-se, “sem descurar do relevante escopo social da norma proibitiva da chamada adoção avoenga”, o cabimento da mitigação, quando:

(i) o pretenso adotando seja menor de idade;
(ii) os avós (pretensos adotantes) exerçam, com exclusividade, as
funções de mãe e pai do neto desde o seu nascimento;
(iii) a parentalidade socioafetiva tenha sido devidamente atestada por
estudo psicossocial;
(iv) o adotando reconheça os – adotantes como seus genitores e seu pai (ou sua mãe) como irmão;
(v) inexista conflito familiar a respeito da adoção;
(vi) não se constate perigo de confusão mental e emocional a ser gerada no adotando;
(vii) não se funde a pretensão de adoção em motivos ilegítimos, a exemplo da
predominância de interesses econômicos; e
(viii) a adoção apresente reais vantagens para o adotando.

Na atualidade, onde as avós estão gerando os filhos de suas filhas estéreis, e muitas assumem os netos sob uma filiação socioafetiva, informal por natureza, à falta da presença materna, caso é de admitir-se possível a adoção avoenga, ou seja, a adoção dos netos.

Por certo, esta adoção será figura subsidiária da aplicação do princípio da permanência da criança em sua família de origem e tal tem sido clamada, diante das circunstâncias experienciadas pelas chamadas “mães do crack”. Aquelas que perdendo, por destino e desatino, os seus filhos, pela dependência química à cocaína, vem a substituí-los e de efeito, tornam-se, como avós, as mães socioafetivas dos seus netos.

Em outro giro, tenha-se ainda o registro de caso emblemático a indicar a conveniência de a adoção, como instituto humanitário, não se pautar em modelos fechados. Vejamos: uma criança de doze anos, vítima de estupro pelo padrasto, veio dar à luz a sua filha, estando ambas em abrigo enquanto não dirimida a questão referente à perda do poder familiar dos seus pais.

Na hipótese positiva de extinção, destituídos os pais, estarão disponíveis à adoção a mãe-adolescente e sua filha recém-nascida, acertado que (i) a primeira sem possuir capacidade civil não dispõe de poder familiar sobre esta, e (ii) eventuais interessados à adoção, não poderiam recepcioná-las, em conjunto, como filhas adotivas, uma vez que por ficção legal tornar-se-iam elas irmãs. Em outra vertente, porém, adoções isoladas estariam a romper laços familiares que não devem ser desfeitos, máxime que a criança tornada mãe não poderá ser penalizada com a separação da filha. Em situação da espécie, a adoção da primeira implicará, por corolário lógico, e em simultâneo, a adoção avoenga pelos pais adotantes da filha de sua filha adotada. Como visto, a pauta das adoções deve ser compreendida com medidas proativas que guarneçam, prioritariamente, o melhor interesse da criança.

Situação parelha recolhe-se do julgado em 21/10/2014, no REsp 1.448.969-SC. O Rel. Min. Moura Ribeiro assinalou, à ocasião, que:

"é necessário buscar subsídios em diversas áreas, levando-se em conta aspectos individuais de cada situação e os direitos de 3ª Geração. Dessa maneira, não cabe mais ao Judiciário fechar os olhos à realidade e fazer da letra do § 1º do art. 42 do ECA tábula rasa à realidade, de modo a perpetuar interpretação restrita do referido dispositivo, aplicando-o, por consequência, de forma estrábica e, dessa forma, pactuando com a injustiça." (03).

De fato, na justiça do caso concreto, o humanismo triunfa; mais do que uma adoção de neto por avós, prevalece a regularização de uma filiação socioafetiva. Nada melhor, a tanto, que um julgador humanista.

5. Em latitude outra, retenha-se, por igual, que as relações avoengas precisam ser protegidas, com maior clarificação pela lei. Se ao tempo do art. 2º da Lei n 12.318, de 26.08.2010, que trata da Alienação Parental, os avós podem ser havidos na mesma posição dos genitores alienadores, impõe-se perceber que esses poderão também ser vítimas de uma Alienação Parental derivada, quando são eles subtraídos de uma convivência saudável com os seus netos.

O direito de pertencimento entre avós e netos é um direito inalienável de ambos, em permanente litisconsórcio afetivo. Antes de mais, “a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão” (04) e em ser assim, o convívio com os avós reclama a interação necessária para a consolidação da própria família, não dispensando deles em seus papéis de integração e solidez.

A avosidade é uma nova categoria jurídica, nos seus efeitos jurídico-parentais. Quando hoje a multiparentalidade é admitida por seu fenômeno de realização afetiva, a parentalidade socioafetiva ganha foros de concretude, de forma autônoma, e o melhor interesse da criança resulta consagrado em todas as hipóteses, os avós são o melhor suprimento das relações da dignidade familiar em favor dos afetos.

Não há negar que avulta uma inevitável presença e valoração dos avós. Eles são coresponsáveis na vida dos netos, para além de qualquer normativismo legal. Sejam por vínculos ancestrais (biológicos) sejam por afinidade (afeto). em figura mais velha que os pais, são eles, efetivamente, os grandes-pais.

Atualmente, quando a população dos avós é superior a dos netos, diante de proles não mais numerosas, renova-se a certeza de que as vidas avoengas serão sempre feitas de uma profunda afeição. A casa do avô de Bandeira será sempre impregnada de eternidade e, sem dúvida, um dos primeiros alumbramentos.

Afinal, os avós, em bom rigor cordiano, tem a etimologia do coração: são eles sempre constituídos como os pais socioafetivos dos seus netos.

Referências:
(01) TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. RABELO, Sofia Miranda. Avosidade & Avoternidade: A Coparticipação parental dos avós no direito brasileiro. In: PERIERA, Tânia da Silva. COLTRO, Antonio Carlos Mathias. RABELO, Sofia Miranda. LEAL, Livia Teixeira. Avosidade. Relação Jurídica entre avós e netos. Indaiatuba (SP): Ed. Foco, 2021, pp. 43-96
(02) ConJur – Consultor Jurídico – Web: https://www.conjur.com.br/2021-jun-14/netos-direito-pedir-reconhecimento-paternidade-avo
(03) GOMES, Marcelo Winter. Adoção avoenga: A primazia do afeto sobre a formalidade. Web: https://rj.consumidorvencedor.mp.br/documents/221399/353479/Adoao_Avoenga_Marcelo_Winter_Caderno_IEP_MPRJ_Junho_2018.pdf
(04) “Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças” (1989).

Autores

  • é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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