Opinião

Por que os direitos humanos não engajam?

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23 de julho de 2021, 12h07

Os direitos humanos e aqueles que os defendem estão na ordem do dia  e no alvo da opinião pública  há algum tempo. Em certo sentido, pode-se imaginar que tão obsessivo interesse daqueles que a eles se opõem deriva justamente da importância do papel desenvolvido nas últimas décadas, de modo que toda atuação sob essa bandeira deve ser digna de apoio de instituições e de pessoas que acreditam na possibilidade de um futuro mais solidário. Sob outra perspectiva, no entanto, é preciso reconhecer que, para boa parte da sociedade, os discursos advindos da gramática dos direitos humanos não engajam e não atraem simpatia.

As razões que orientam a resposta à provocativa pergunta inicial são, sem dúvidas, multifatoriais e demandam cuidadosa reflexão, de modo a se evitarem respostas simplistas para questões complexas. Certamente, há um papel desinformador dos meios de comunicação de massa, que cotidianamente martelam vieses equivocados a respeito de tais atuações, bem como existe uma evidente resistência por expressiva parcela das classes médias e altas brasileiras a discursos de igualdade — afinal, como muitos episódios contemporâneos nos revelam, segue muito presente um prestígio a dinâmicas próprias da relação do tipo "casa grande e senzala" [1].

Mas não se pode perder de vista as críticas construtivas, entre as quais merece destaque aquela extraída de escritos do Sul global, segundo a qual o reduzido engajamento social a tais discursos se deve à sua pouca relação com as vivências e interesses imediatos das classes populares, não obstante a retórica pretensamente universalista dos direitos humanos. Como bem pontua Issa Shivji, "a liberdade de expressão pouco significa para uma pessoa esfomeada para quem a liberdade de ser explorada é a mais real" [2].

Nesse caminho, pensando a partir de meu lugar de fala, enquanto defensor público estadual, percebo que há espaços para tornar os direitos humanos um artefato mais democrático e, em certo sentido, menos colonial.

Uma possibilidade de concretização da proposta acima veiculada se abre a partir da ressignificação do Direito das Famílias, processo que evidentemente já está em curso dentro e fora da Defensoria Pública. Passemos a um singelo exemplo.

Sob o vulgar e tão desprezado rótulo de "ação de alimentos", tem-se uma das pretensões mais nobres, inclusive a partir da lógica dos discursos hegemônicos dos direitos humanos. Por essa simples pretensão, normalmente veiculada sem relevante esforço argumentativo fático ou jurídico, pretende-se obter acesso a expressões das mais importantes dentro do catálogo universal, tais como alimentação, moradia, saúde, enfim, o "mínimo existencial" [3].

Convém perguntar, entretanto: alguém no meio jurídico pensa na defesa de direitos humanos quando recebe uma petição de alimentos? Quem enxerga nos defensores públicos que militam na área de família um defensor dos direitos humanos?

Ou seja, não se trata de desvincular as atuações de direitos humanos dos campos aos quis são habitualmente conectados  prisional, violência estatal etc. , mas, sim, de incluir discursivamente outras abordagens que possuam a mesma afinidade ontológica com os pressupostos que balizam a composição de seus róis.

Para não ficarmos restritos ao Direito das Famílias, podemos fazer raciocínios semelhantes no que diz respeito às atuações ligadas à garantia do direito à educação, sobretudo infantil, ou, ainda, nas inúmeras iniciativas que dizem respeito à defesa da saúde de crianças, jovens, adultos e idosos.

O que se defende, portanto, é a necessária rearticulação dos significados que perpassam o conceito de direitos humanos prestigiando, entre eles, temas de interesse habitual da população brasileira especialmente vulnerável, o que é viável de ser diagnosticado inclusive a partir da catalogação de pretensões levadas ao sistema de Justiça (como alimentos, paternidade, creche, medicamentos, leitos de internação, entre outros).

 


[1] FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006.

[2] SHIVJI, Issa G. Direitos humanos e desenvolvimento: um discurso fragmentado. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília MacDowell; MARTINS, Bruno Sena (Org.). Quem precisa dos direitos humanos? Precariedades, Diferenças, Interculturalidades. Coimbra: Almedina, 2019.

[3] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo: à luz do novo Código Civil Brasileiro e da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

Autores

  • é defensor público no Rio Grande do Sul, diretor de ensino da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do RS e doutor em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (com e.i. na Universidade de Coimbra).

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