Direto do Carf

O lucro real trimestral e o ajuste anual de preços de transferência

Autor

  • Alexandre Evaristo Pinto

    é conselheiro do Carf doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela USP mestre em Direito Comercial pela USP professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis Financeiras e Atuariais (Fipecafi).

21 de julho de 2021, 20h58

Nesta semana, trataremos dos precedentes do Carf acerca da aplicação da decadência no caso de autuações decorrentes de ajuste de preços de transferência em pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real trimestral.

Spacca
As normas brasileiras de preços de transferência surgem no ordenamento jurídico brasileiro com a publicação da Lei nº 9.430/96, que trata do tema entre os seus artigos 18 e 24.

De forma extremamente didática, Luís Eduardo Schoueri aponta que o objetivo da legislação tributária de preços de transferência consiste na conversão de "valores expressos em 'reais de grupo' (assim entendidos como a moeda constante nas contas das empresas com transações não controladas) em 'reais de mercado', os quais seriam a moeda que expressa o resultado entre terceiros independentes" [1].

Para cumprimento de tal função, o legislador tributário estabeleceu a necessidade de comparação entre os preços praticados pelo contribuinte em suas operações de importação, exportação e de empréstimos com pessoas vinculadas (ou situadas em países com tributação favorecida ou regime fiscal privilegiado) com preços parâmetros calculados de acordo com métodos previstos na própria Lei nº 9.430/96.

No que tange à operacionalização do ajuste de preços de transferência na apuração do lucro, é importante destacar que as Instruções Normativas 38/97, 32/01, 243/02 e 1.312/12, emitidas pela Receita Federal do Brasil, sempre consideraram as verificações dos preços de transferência ocorreriam em períodos anuais, sendo que nas Instruções Normativas 243/02 e 1.312/12 consta de forma expressa que tais períodos anuais ocorrem em 31 de dezembro de cada ano [2].

Diante de tais previsões, o contribuinte que estiver sujeito a algum ajuste de preços de transferência efetuará uma adição na sua apuração do lucro real em 31 de dezembro de cada ano.

Ocorre que nos termos do artigo 1º da Lei nº 9.430/96, o Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) será determinado base no lucro real, presumido, ou arbitrado, por períodos de apuração trimestrais, encerrados nos dias 31 de março, 30 de junho, 30 de setembro e 31 de dezembro de cada ano-calendário [3].

Como se observa, a regra geral é o período trimestral para a tributação do lucro real. Todavia, à opção da pessoa jurídica o IRPJ pode ser apurado anualmente, hipótese na qual serão realizadas antecipações mensais do imposto devido [4].

Tal operacionalização por meio da adição do ajuste de preços de transferência em 31 de dezembro de cada ano não gera maior problemas em uma pessoa jurídica tributada pelo lucro real anual.

O mesmo não necessariamente se aplica aos contribuintes que estão no lucro real trimestral e é aqui que se vislumbra a controvérsia tratada na presente coluna.

Sob o regime do lucro real trimestral, é possível observar a ocorrência de fatos geradores trimestrais, no entanto, o ajuste decorrente de preços de transferência se dá anualmente. Logo, há uma situação anômala em que há fatos geradores trimestrais com ajuste anual, isto é, oriundo da diferença entre preços praticados ao longo de todo ano e preços parâmetros.

Tal questão ganha importância para fins de determinação de decadência ou não de lançamento tributário decorrente de ajuste de preços de transferência em contribuinte que estava no lucro real trimestral.

Por mais que o ajuste tenha sido feito somente em 31 de dezembro daquele ano, resta saber se a decadência deveria levar em conta os períodos trimestrais, já que esse é o regime de tributação, ou deveria ser contada a partir de 31 de dezembro, visto que é somente nesse momento é que poderia ser feito o ajuste de preços de transferência.

Vale notar que o Código Tributário Nacional estabelece em seu artigo 150, §4º, que se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

Em outras palavras, caso tenha havido imposto devido e recolhido há mais de cinco anos com relação aos três primeiros trimestres de pessoa jurídica no lucro real trimestral, mas ainda não tenha mais de cinco anos de imposto devido e recolhido do último trimestre do ano, período no qual houve o ajuste de preços de transferência, há ou não direito de que as autoridades fiscais efetuem lançamento complementar de ajuste de preços de transferência com relação às operações efetuadas nos três primeiros trimestres do ano sob análise.

A partir das principais considerações sobre o tema, verificaremos como tal tema vem sendo analisado no Carf.

No Acórdão 1302­003.089 (de 18/09/18), a turma entendeu, por maioria de votos, por afastar a decadência alegada pelo contribuinte com relação aos três primeiros trimestre do ano autuado.

O conselheiro relator seguiu o entendimento do acórdão da DRJ, na linha de que sendo anual a apuração, o prazo para formalização do crédito tributário relativo ao ajuste de preços de transferência seria anual, ainda que o contribuinte fosse tributado pelo lucro real trimestral.

No mesmo sentido, no Acórdão 1402­003.472 (de 16/10/18), a turma decidiu, por voto de qualidade, por afastar a alegação do contribuinte de decadência dos três primeiros trimestres do ano.

No voto vencedor, o conselheiro redator designado aponta que as perguntas e respostas do ano-calendário sob análise, havia expressa orientação de que o preço de transferência é calculado em bases anuais, independentemente do período de apuração do lucro real.

A referida situação também foi enfrentada no Acórdão nº 1201-003.024 (de 17/07/19), no qual se entendeu, por maioria de votos, que as operações praticadas nos três primeiros trimestres não estariam decaídas, uma vez que não havia decadência com relação ao último trimestre do ano autuado e o ajuste de preços de transferência é necessariamente feito em bases anuais, em 31 de dezembro de cada ano.

No voto vencido, o conselheiro relator entendeu já teria havido a homologação tácita do IRPJ relativo aos três primeiros trimestres do ano autuado, já que o contribuinte era optante do lucro real trimestral.

Por outro lado, no voto vencedor, o conselheiro redator designado ponderou que: "independentemente do regime de apuração adotado (trimestral ou anual), o fato é que eventual ajuste (adição) decorrente da aplicação das regras de preços de transferência na importação deve ser feito, aos olhos da lei, em 31/12 de cada ano".

Dessa forma, para fins legais, o ajuste de preços de transferência seria necessariamente feito em 31 de dezembro, abrangendo as operações de todo aquele ano, independentemente do período de apuração do lucro real.

Diante do exposto, verifica-se que os precedentes do Carf acerca do tema têm sido no sentido de que o ajuste de preços de transferência é calculado em bases anuais, ainda que o contribuinte estivesse no regime do lucro real trimestral, de modo que não haveria decadência dos três primeiros trimestres do ano autuado se o lançamento tributário tenha sido feito antes da decadência do quarto trimestre.

 

* Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 


[1] SCHOUERI, Luís Eduardo. Preços de Transferência no Direito Tributário Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Dialética, 2013. p. 29.

[2] Instrução Normativa SRF nº 38/97: "Artigo 40 – As verificações dos preços de transferência, praticados entre empresas vinculadas, a que se refere esta Instrução Normativa, serão efetuadas por períodos anuais, exceto nas hipóteses de início e encerramento de atividades e de suspeita de fraudes".
Instrução Normativa SRF nº 32/01: "Artigo 41 – As verificações dos preços de transferência, praticados entre empresas vinculadas, a que se refere esta Instrução Normativa, serão efetuadas por períodos anuais, exceto nas hipóteses de início e encerramento de atividades e de suspeita de fraudes".
Instrução Normativa SRF nº 243/02: "Artigo 41 – As verificações dos preços de transferência, a que se referem esta Instrução Normativa, serão efetuadas por períodos anuais, em 31 de dezembro, exceto nas hipóteses de início e encerramento de atividades e de suspeita de fraude".
Instrução Normativa RFB nº 1312/12: "Artigo 54 – As verificações dos preços de transferência, a que se refere esta Instrução Normativa, serão efetuadas por períodos anuais, em 31 de dezembro, exceto nas hipóteses de início e encerramento de atividades e de suspeita de fraude".

[3] Lei nº 9.430/96: “Art. 1º A partir do ano-calendário de 1997, o imposto de renda das pessoas jurídicas será determinado com base no lucro real, presumido, ou arbitrado, por períodos de apuração trimestrais, encerrados nos dias 31 de março, 30 de junho, 30 de setembro e 31 de dezembro de cada ano-calendário, observada a legislação vigente, com as alterações desta Lei”.

[4] Lei nº 9.430/96: "Artigo 2º – A pessoa jurídica sujeita a tributação com base no lucro real poderá optar pela pagamento do imposto, em cada mês, determinado sobre base de cálculo estimada, mediante a aplicação dos percentuais de que trata o art. 15 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, sobre a receita bruta definida pela art. 12 do Decreto-Lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977, auferida mensalmente, deduzida das devoluções, vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos, observado o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 29 e nos arts. 30, 32, 34 e 35 da Lei no 8.981, de 20 de janeiro de 1995. (…)
§3º. A pessoa jurídica que optar pela pagamento do imposto na forma deste artigo deverá apurar o lucro real em 31 de dezembro de cada ano, exceto nas hipóteses de que tratam os §§ 1º e 2º do artigo anterior.".

Autores

  • é conselheiro titular da Câmara Superior de Recursos Fiscais da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro titular da 2ª Seção do Carf, doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, mestre em Direito Comercial pela USP e professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e do mestrado profissional em Controladoria e Finanças da Fipecafi.

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