Opinião

O cosmético direito ao silêncio eloquente

Autores

  • Oberdan Costa

    é advogado criminalista inscrito na OAB/DF e especialista em Direito Público pela AVM Faculdade Integrada.

  • Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves

    é sócio do escritório Almeida Castro Castro e Turbay Advogados Associados mestre em Direito Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pelo IDP e em Compliance e Governança pela UnB. Bacharel em Direito pela UnB.

20 de julho de 2021, 9h14

Em artigo veiculado em 24 de junho na Folha de S.Paulo [1], a professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) Eloísa Machado critica a judicialização  intensa e oscilante, a seu ver  da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, que, ao garantir direito de não comparecimento a alguns depoentes, ameaçaria o resultado útil daquela apuração política. Sob o argumento de que a comissão teria superlativa relevância em face do meio milhão de mortes que o país amarga, sustentou a necessidade de que o Supremo Tribunal Federal crie discrímen em sua jurisprudência, de forma que não fulmine a elevada missão elucidativa dos senadores. Em suas palavras, "as decisões que procuram conciliar o direito do depoente em se calar sobre alguns fatos e o dever de expor outros parecem mais adequadas ao objeto das CPIs"; do contrário, reduzir-se-ia "o escopo da CPI a um mero inquérito policial".

Fazem coro à opinião duas manifestações recentes na CPI. A presidência, na sessão de 7 de julho, ordenou a prisão em flagrante de Roberto Dias, ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, sob a acusação que segue: "Ele está preso por mentir, por perjúrio, e se eu tiver tendo abuso de autoridade, que advogada dele ou qualquer outro senador me processe, mas ele vai estar detido agora pelo Brasil, (…) pelos que morreram, pelas vítimas". Os senadores Fabiano Contarato e Alessandro Vieira, por sua vez, diante da recusa de Emanuela Medrades, diretora da Precisa Medicamentos, a responder perguntas da sessão do dia 13 de julho, sugeriram sua prisão em flagrante por crime de desobediência (artigo 330 do Código Penal). O motivo seria o de que a ordem de Habeas Corpus a ampará-la facultava o silêncio só diante de questões incriminatórias; a contrario sensu, assim, estaria ela obrigada a responder todo o resto.

Em comum, as manifestações têm a inarredável noção da funesta severidade do momento. Não se pretende aqui discordar. Entretanto, na seara penal, comumente caminha mal argumento que excepciona garantias ou rito com base na gravidade do assunto a ser apurado.    

Em novembro de 2000, o relatório final da CPI do Narcotráfico dizia que seu "poder ameaça, alicia, mata. Onde consegue chegar ao governo, destrói a democracia" [2]. Comparando emergências, a guerra às drogas parece explicar grandemente as mazelas nacionais, seja por culpa das drogas, seja por culpa do formato estatal da guerra. Números recentes do Infopen reportam que 30% dos encarcerados de nossa expressiva massa penitenciária advêm de crimes de tráfico [3]. Posterior a essa CPI, o Brasil assistiu a outras que se debruçaram sobre temas igualmente sensíveis, como a da pedofilia e a CPMI da Petrobras, embrião da famigerada "lava jato" (que, aliás, em 2014 também nasceu judicializada pela ministra Rosa Weber, MS 38.885/DF. A CPI atual não é tão exótica) [4].

Fato é que não se instaura Comissão Parlamentar de Inquérito para remexer amenidades. O argumento de que alguma delas merece vulnerar de qualquer forma direitos e garantias penais conduziria sem esforço a agigantamento pouco salutar dos poderes investigatórios de todas as outras vindouras, visto que manejadas não por magistrados togados, mas sim por representantes eleitos do povo. É dizer, agentes legitimados pela eleição, majoritária ou proporcional, cuja missão institucional não é salvaguardar contramajoritariamente garantias de "minorias" (no caso, os acusados penais).

Sobre a prisão decretada pela presidência em desfavor de Roberto Dias pelo "crime de perjúrio", relevantes alguns pontos. De saída, inexiste aqui crime de "perjúrio": não só acusados (porque só acusado "perjura") podem silenciar diante de perguntas, como doutrina e jurisprudência são majoritariamente coniventes com eventual mentira contada no intuito de se defender, em decorrência do nemo tenetur se detegere [5]. Lado outro, se o parlamentar pensou no crime de falso testemunho (artigo 342, CP), também não podemos aquiescer. Não basta ser convocado na condição formal de testemunha para que nasça a obrigação de falar toda a verdade: é o tratamento material dispensado ao inquirido que determinará, em essência, se ali está na condição de testemunha ou acusado. Roberto foi convocado porque o servidor Luís Ricardo Miranda o acusou de "pressão atípica" para liberação de importação emergencial de doses da vacina Covaxin [6]. Chamem-no pelo nomen iuris que escolherem: não é cabível prender em flagrante verdadeiro acusado por suposto cometimento de crime reservado só a quem tem obrigação legal de falar a verdade.

Por fim, quanto à ameaça de prisão em flagrante por crime de desobediência dirigida a Emanuela Medrades, ocorreu quando a depoente não respondeu que vínculo mantinha com a empresa Precisa; no que o senador Renan Calheiros asseverou que não fez nem faria qualquer pergunta que a incriminasse. A depoente, então, se negou a responder se possuía fontes de renda alternativas. Nesse momento, o senador Fabiano Contarato alegou que Emanuela estaria em estado flagrancial do crime de desobediência por se negar a responder até mesmo "o elementar", em vez de calar apenas sobre o que a incriminaria.

A fala dos senadores carrega a premissa oculta de que o juízo acerca do que são perguntas incriminatórias ou não compete ao inquiridor, não ao inquirido, de forma que àquele cabe, em última análise, delimitar o escopo do que o acusado pode calar. Premissa questionável. Como asseverou há pouco o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay: "A defesa técnica, e somente ela, é que pode decidir o que deve ser respondido" [7].

Quem vivenciou os fatos em apuração foi o inquirido, não o inquiridor. Soubesse o inquiridor quais perguntas incriminariam o depoente, saberia também o que de fato teve lugar na realidade e, assim, tem-se que investigação e processo penal seriam de todo inúteis. Ora, se seria por meio deles que o Estado buscaria saber a "verdade", bastar-nos-ia, no lugar da persecução penal, ter o tal inquiridor-onisciente, visto que já entra em cena sabendo o que incrimina ou não o inquirido. Acusados, ademais, não prestam testemunho, mas são interrogados; o interrogatório, diferentemente do testemunho, é meio de defesa além de meio de prova. Se é direito, quem o titulariza  e manuseia  é o acusado.

A escolha de não responder a absolutamente nada também defenderia a depoente de desarrazoada interpretação dada por parte da doutrina criminal ao chamado "silêncio vertical parcial", que é quando o agente cala sobre parte do interrogatório e fala sobre as outras partes que escolheu [8]. Hidejalma Muccio e Pedro Jorge Nascimento, por exemplo, dizem que porque o acusado se converteu em meio de prova voluntariamente (falou de certos acontecimentos), não haveria como não sopesar negativamente silêncios seletivos, à luz da livre valoração probatória [9]. O direito ao silêncio, assim, não seria exercido pergunta a pergunta [10].

A interpretação de que o investigador decide o que é incriminatório, além disso, conduz a perplexidades lógicas e situações limítrofes que esvaziariam o direito ao silêncio. Esgarçada ao máximo a visão pugnada pelos senadores, a pergunta incriminatória seria somente a que envolve o verbo típico de uma figura delitiva. A título de exemplo, numa CPI que investiga solicitações de propina para fraudar licitações, o acusado, que é funcionário público, teria de narrar pormenorizadamente seu dia inteiro até o momento em que, hipoteticamente, solicitou ou não vantagem indevida, cometendo assim corrupção passiva. Teria de narrar que carro dirigiu, a que repartição pública compareceu, com quem conversou. Seu direito de calar estaria adstrito somente a não responder se solicitou algo ao agente que encontrou dentro de uma sala da repartição. Fácil perceber a que descalabros se chega se for essa a leitura prevalente do Direito.

Em tempos de CPI, é comum que a natureza política da investigação possa causar heterodoxias em sua condução. O Judiciário é que não pode compactuar com o esvaziamento de prerrogativas constitucionais que dão rosto ao Estado democrático de Direito. Se hoje televisionarmos interrogatório em que se prende livremente acusado que se nega a falar, amanhã teremos, em cadeia, o mesmo acontecendo nas delegacias de cada rincão do Brasil.

 


[5] GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2008. P. 106.

[8] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Editora Juspodivm, 2021. Pág. 68.

[9] COSTA, Pedro Jorge Nascimento. A prova no enfrentamento à macrocriminalidade. Juspodivm, 2015, p. 168.

[10] MUCCIO, Hidejalma. Curso de processo penal. 2ª Ed. São Paulo. Método. 2011.

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