Opinião

Até que momento pode retroagir a norma que exige representação no estelionato?

Autores

  • André Ferreira

    é advogado criminal mestre e especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas.

  • Stephanie Carolyn Perez

    é advogada criminal doutoranda em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires (UBA – Argentina) mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professora das disciplinas de Direito Penal Direito Processual Penal e Execução Penal nos cursos de graduação e pós-graduação e autora de artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior.

19 de julho de 2021, 16h04

Introdução
A Lei nº 13.964/2019, conhecida como lei "anticrime", trouxe importantes alterações ao Código Penal. Merece destaque a inclusão do §5º no artigo 171, que passa a exigir representação do ofendido para o processamento da ação penal no crime de estelionato.

Muito se discutiu sobre a possibilidade (ou não) de aplicação retroativa do referido dispositivo aos inquéritos policiais e ações penais que já estavam em andamento quando da publicação da Lei nº 13.964/2019, que entrou em vigor em 23/1/2020.

Não há dúvidas no sentido de que essa norma deve retroagir. A dúvida existe, no entanto, com relação ao momento processual máximo em que isso poderá ocorrer, uma vez existir divergência entre os entendimentos da 1ª e 2ª Turmas do Supremo Tribunal Federal e da 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça.

A situação vivida atualmente é de uma grande insegurança entre os jurisdicionados e jurisdicionadas, Ministério Público, Poder Judiciário e defensores e defensoras criminais, na medida em que a resposta à pergunta depende do órgão, turma ou julgador que analisará o caso, ao cabo, nas cortes superiores.

Neste artigo vamos: 1) fixar as premissas teóricas da questão; 2) explicar os diferentes ângulos do problema e propor uma forma de solução; 3) atualizar o leitor acerca da recente orientação firmada pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal ao julgar o Habeas Corpus nº 180.421/SP e sobre os posicionamentos conflitantes no STF e STJ; concluir, ao final, pela necessidade de julgamento do assunto pelo Pleno do STF.

1) Premissas teóricas
Há três tipos de normas em nosso sistema jurídico penal: 1) aquelas de conteúdo exclusivamente penal, ou seja, uma norma prevista no Código Penal que define um tipo penal (exemplo: artigo 121 do CP); 2) aquelas de conteúdo exclusivamente processual, como por exemplo, uma norma que prevê o prazo para interposição de um recurso (exemplo: artigo 593, caput, do CPP); e por fim; 3) as chamadas normas mistas, ou normas processuais penais materiais, que são aquelas que, apesar de estarem no contexto do processo penal, têm forte conteúdo de Direito Penal, como normas relativas a perempção, perdão, renúncia, decadência etc.

No caso das normas penais, o artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, e o artigo 9º, do Pacto de São José da Costa Rica, são claros: se o novo conteúdo beneficiar o acusado, deve retroagir a partir de sua publicação.

Para as normas meramente processuais, aplica-se o disposto no artigo 2º do Código de Processo Penal: a lei processual penal será aplicada a partir de sua entrada em vigor. É dizer: a lei processual penal passa a valer imediatamente, aplicando-se a processos já em andamento, respeitando-se os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior.

Já para as normas processuais penais materiais ou mistas, aplica-se a seguinte regra: se a norma de algum modo beneficiar o acusado, deverá retroagir. Do contrário, a norma será aplicada a partir da data de sua entrada em vigor.

O artigo 171, §5º, embora incluído no Código Penal, traz consequências também no âmbito processual, uma vez ter como principal efeito a alteração da natureza da ação penal nos crimes de estelionato, que, como regra, passa a ser de natureza pública condicionada à representação. Fica claro que esse novo dispositivo que altera a natureza da ação penal nos crimes de estelionato é mais favorável ao acusado, pois, ao prever que o crime de estelionato somente se procede mediante representação do ofendido, cria-se uma nova causa extintiva de punibilidade que poderá beneficiar o acusado se o ofendido não a exercer dentro do prazo legal.

Trata-se, portanto, de norma mais benéfica e que deve, portanto, retroagir aos fatos ocorridos antes da entrada em vigor a Lei nº 13.964/19, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal.

2) O problema jurídico e uma proposta de solução
Parece não existir dúvidas acerca da necessidade de aplicação retroativa do artigo 171, §5º, do Código Penal para atingir os inquéritos policiais e ações penais que já estavam em andamento quando da publicação da Lei nº 13.964, em 24/12/2019. A questão é: até quando poderá retroagir a norma?

Surgem, basicamente, duas situações distintas: 1) crimes de estelionato cometidos antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, cujas denúncias ainda não tenham sido oferecidas; e 2) crimes de estelionato cometidos antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, cujas denúncias já estivessem em andamento ou que já existisse investigação policial em andamento.

Com relação à primeira situação, o artigo 171, §5º, do Código Penal deve retroagir, pelas razões que já foram expostas. Com relação à segunda situação, em que já existe denúncia oferecida ou que há investigação em andamento, há quem entenda que a denúncia oferecida é ato jurídico perfeito e que, portanto, não pode ser afetado pela mudança legislativa [1]. Com tal posição, contudo, não concordamos. No silêncio da lei no sentido de dispor acerca de qual deve ser o tratamento adotado para os casos que já estavam em andamento, entendemos ser necessária a intimação do ofendido para que, querendo, ofereça a representação. Essa é também a posição defendida pelo Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e União e pelo Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal, que editou o Enunciado 4 para dispor que nas investigações e processos em curso, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecer representação no prazo de 30 dias, sob pena de decadência, conforme entendimento sedimentado no Enunciado 4 [2].

Esse é o entendimento que defendemos. Para os casos em que já houve denúncia oferecida e recebida e, portanto, já existe ação penal em andamento ou ainda para os casos em que já existia investigação policial em andamento quando da publicação da Lei nº 13.964/19, deve ser aplicado de forma retroativa o artigo 171, §5º do Código Penal, devendo a autoridade competente proceder com a intimação do ofendido ou de seu representante legal para o oferecimento de representação, sob pena de decadência.

3) A divergência jurisprudencial
No último dia 22, ao julgar o Habeas Corpus nº 180.421, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal firmou entendimento — por maioria — no sentido de que a norma deve retroagir até o trânsito em julgado. O acórdão está pendente de publicação, no entanto já é possível conhecer a tira de julgamento:

"A turma, por maioria, negou provimento ao agravo regimental, mas concedeu o habeas corpus, de ofício, e trancou a ação penal, com a aplicação retroativa, até o trânsito em julgado, do disposto no artigo 171, § 5º, do CP, com a alteração introduzida pela Lei n. 13.964/2019, nos termos do voto do Relator, vencido, em parte, o Ministro Ricardo Lewandowski, que dava provimento ao recurso para conceder a ordem e trancar a ação penal" (grifo dos autores).

O entendimento sustentado pela 2ª Turma é diferente, no entanto, daquele sustentado pela 1ª Turma do mesmo tribunal, que defende que a retroatividade da exigência de representação da vítima no crime de estelionato não deve ser aplicada nos casos em que o Ministério Público ofereceu a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019 [3]. É diferente também dos entendimentos da 5ª e 6ª Turmas do STJ. Enquanto a 5ª Turma [4] afasta a aplicação retroativa para as ações penais já instauradas, a 6ª Turma [5] entende pela necessidade de abertura de prazo para representação da vítima, mesmo nos casos em que ações penais já estivessem instauradas quando da entrada em vigor da lei "anticrime", desde que não tenha ocorrido o trânsito em julgado.

Em que pese tratar-se de questão nova no ordenamento jurídico pátrio, os entendimentos conflitantes e divergentes das principais cortes superiores trazem na prática enorme insegurança jurídica aos advogados e principalmente ao jurisdicionado. Não bastasse o conflito existente entre STF e STJ, há ainda conflito interno entre as próprias turmas de cada tribunal, o que faz com que o direito vire uma "loteria" e o acusado tenha que torcer para ter o seu caso apreciado por uma determinada turma, o que não pode ser admitido sequer vislumbrado dentro de um Estado democrático de Direito.

Para muito além da interpretação dada pelos tribunais, o Direito é a norma posta, escrita e codificada. Não se pode conviver com essa incerteza jurisprudencial, quando a questão pode e deve ser facilmente solucionada pela simples leitura do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

Defendemos, portanto, que a nova redação do artigo 171, §5º, do Código Penal deve retroagir e ser aplicada aos inquéritos policiais e ações penais que já estavam em andamento quando da publicação da Lei nº13.964/19, para o fim de que o ofendido ou seu representante legal sejam intimados para oferecer representação, sob pena de decadência, por se tratar de norma mais benéfica ao investigado/acusado e que deve, portanto, retroagir aos fatos ocorridos antes de 23/1/2020, data em que entrou em vigor a Lei nº 13.964/19, conforme dispõe a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XL.

4) Conclusão
A amplitude dos efeitos do §5º do artigo 171 do Código Penal ainda não conta com um posicionamento consolidado na doutrina e na jurisprudência, de modo que será necessário acompanhar como a questão será tratada pelos tribunais superiores. É fundamental que a questão seja analisada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, para que se firme um entendimento jurisprudencial capaz de trazer maior segurança jurídica ao tema e uniformidade no tratamento dos jurisdicionados.

 


[1] HC 610.201/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/03/2021, DJe 08/04/2021.

[3] HC 187341, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-263  DIVULG 03-11-2020  PUBLIC 04-11-2020.

[4] RHC 139.715/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 02/02/2021, DJe 04/02/2021.

[5] Por todos: AgRg no RHC 140.917/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe 26/02/2021.

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