Judiciário precisa abandonar negacionismo científico na judicialização da saúde
14 de julho de 2021, 12h08
Não é novidade a alta complexidade técnica da judicialização da saúde e a necessidade de capacitação do Poder Judiciário para tomar decisões racionais no tema. Talvez seja essa uma das áreas de maior esforço do CNJ nos últimos anos [1].

Sobre a incidência das construções MBE no Direito, João Paulo Gebran Neto explica que "se para os médicos (a medicina baseada em evidência) funciona como meio para escolher a melhor assistência terapêutica, para a ciência jurídica o conhecimento da medicina baseada em evidência, por força da crescente judicialização da saúde, representa requisito informativo indispensável pra solução das questões judicialmente postas" [2].
Um dos princípios da MBE que devem orientar a análise jurídica da judicialização da saúde é o da hipótese nula [3]. Por ele, quer-se dizer que um determinado fenômeno não existe antes de ser demonstrado e comprovado. É o ceticismo científico: até que se tenha evidências científicas, preferencialmente com base em estudos duplo-cego, randomizados, revisados por pares e publicados em revistas científicas, deve-se ficar com a hipótese nula, ou seja, com o ceticismo.
Em Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, Inc., 509 U.S. 579 (1993) [4], a Suprema Corte dos Estados Unidos afastou a possibilidade de junk science influenciar decisões judiciais. Consideraram-se quatro critérios para que algo seja considerado como boa ciência. São eles: 1) falseabilidade da teoria científica; 2) percentagem de erro e cumprimento dos padrões mínimos correspondentes à técnica empregada; 3) publicação em revistas ou jornais especializados com controle por pares; 4) existência de um consenso da comunidade cientifica relacionada à técnica empregada.
No contexto discutido, chama a atenção a recente decisão colegiada da 19ª Câmera Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais do último dia 1º (AI 1.0000.21.029755-2/001). O caso envolveu um pedido de fornecimento do medicamento de alto custo ocrelizumabe para tratamento da esclerose múltipla. Houve deferimento do pedido em primeira instância contra o qual foi interposto agravo de instrumento.
A Procuradoria-Geral do Município de Belo Horizonte argumentou em seu recurso que estudos científicos demonstraram que o medicamento pretendido tinha eficácia equivalente a placebo para o tratamento pretendido. Assim, não se poderia conferir credibilidade ao relatório médico da parte que fez tal prescrição em arrepio às evidências científicas. Defendeu-se que, em termos metafóricos de uma situação que virou fato notório de junk science, o caso se assemelharia a obrigar o ente público a fornecer cloroquina para tratamento de Covid-19.
Os desembargadores Bitencourt Marcondes e Leite Praça deram provimento ao recurso demonstrando adesão aos fundamentos da MBE. Afirmaram que a unilateral prescrição do médico da parte não pode suplantar estudos científicos que falharam em comprovar a eficácia do fármaco. Portanto, não se poderia obrigar o poder público a fornecer o medicamento de alto custo no caso.
Entretanto, houve voto vencido ao argumento de que "o fármaco foi indicado por profissional que acompanha a paciente há mais tempo e, portanto, ciente de suas peculiaridades clínicas". Essa posição merece forte constrangimento por abandonar o princípio da hipótese nula e entender que opiniões e crenças poderiam superar evidências científicas.
Infelizmente, uma parte dos médicos não segue a MBE em suas prescrições. Exemplos não faltam, como a médica que fez nebulização de cloroquina em seus pacientes com Covid-19 [5]. Assim, além dos prejuízos ao sistema público de saúde que teria de custear tratamento de alto custo que não reduziria a probabilidade de um desfecho desfavorável, a rejeição ao princípio da hipótese nula ainda poderia trazer efeitos colaterais, transtornos psicológicos e danos ao paciente. Por isso, o único caminho seguro é o da ciência.
Portanto, é preciso que, no contínuo processo de capacitação desenvolvido pelo CNJ, haja maior atenção para que os conceitos multidisciplinares da medicina e da estatística sejam mais bem compreendidos pelos órgãos julgadores, pois só com a disseminação do método científico será possível impedir que o negacionismo científico prevaleça no Poder Judiciário.
[2] GEBRAN NETO, João Paulo. Direito à Saúde. Analise à luz da judicialização. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016, p. 216.
[3] CORREA, Luís Claudio Correia. Princípios da Medicina Baseada em Evidências. Disponível em http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com/2011/10/os-sete-principios-da-medicina-baseada.html.
[4] Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/509/579/.
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