Opinião

Por mais Chiovenda e menos Carnelutti nos recursos especiais

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10 de julho de 2021, 9h13

O republicanismo democrático dos Estados modernos não se faz apenas com Constituições. Para além da decisão política fundamental formalizada em um documento solene e rígido, o desenvolvimento da sociedade demanda uma instância política deliberativa sensível às emergências da cidadania e à dinamicidade das necessidades e desafios cotidianos. Surge, então, a atividade legislativa, encarregada de atualizar continuamente a cidadania no ordenamento jurídico, sob os auspícios das Constituições.

Numa república democrática não basta que a Constituição seja protegida. Faz-se necessário tutelar também a legislação, promovendo uniformidade de sua interpretação por todo o território nacional. Em tese, é possível que o ordenamento jurídico atribua a um só órgão deliberativo de cúpula essas duas tarefas. Esse era o caso do regime constitucional brasileiro pré-1988, no qual cabia a um só órgão, o Supremo Tribunal Federal, desincumbir-se dessas duas funções. Tanto a tutela da Constituição como a da legislação nacional eram promovidas sobretudo por meio de recursos extraordinários por um só órgão judiciário.

Porém, com o desenvolvimento do constitucionalismo e com a explosão da atividade legislativa, mostra-se conveniente do ponto de vista metodológico que haja dois órgãos diferentes, sendo um especializado na tutela da Constituição e outro especializado na tutela da legislação nacional.

Atualmente no Brasil, por força de sua opção política fundamental, a Constituição de 1988, a tutela tanto da legislação federal como a da Constituição foram atribuídas a órgãos integrantes do Judiciário. Ao STF cabe a guarda da Constituição, do pacto federativo e das instituições republicanas. E ao Superior Tribunal de Justiça foi atribuída a tutela da legislação federal, e em última instância dos valores da democracia e da cidadania. São atribuições paralelas e complementares.  

As funções do STJ e do STF correspondem a uma dialética de implicação e polaridade. Para que o STF possa se afirmar como tribunal contramajoritário, guardião da Constituição, da República e da federação, é preciso que haja um órgão como o STJ com a função de resguardar os valores sempre cambiantes da cidadania, e precisar qual seria a melhor expressão do Direito majoritário num dado momento. Paralelamente ao constitucionalismo, a higidez do tecido social demanda a existência de uma instância voltada a promover observância às escolhas políticas consagradas na legislação. Há que se buscar uma harmonização entre STF e STJ, sem que esse se confunda com aquele, mantendo-se correlacionadas e distintas as funções dos dois tribunais.

A cidadania é o resultado da atividade política, do agir em conjunto e da capacidade de mobilização como uma potência para iniciar algo novo [1]. É por meio do exercício da cidadania e da atividade legislativa que, numa democracia, o corpo social busca, a partir de debates, consensos e maiorias, soluções para os sucessivos problemas sociais e necessidades públicas.

O STJ é conhecido como Tribunal da Cidadania porque a Constituição atribuiu-lhe a função de guardião da legislação federal. Essa atribuição não se fez explicitamente, à maneira do que se disse com relação ao STF, a quem compete textualmente a "guarda da Constituição" (artigo 102, caput). O STJ é considerado o "guarda" da legislação federal porque, entre as suas várias competências, destaca-se a de julgar em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida contrariar lei federal ou negar-lhe vigência (artigo 105, III, "a", da Constituição).

O STJ afirma a sua maior razão de ser quando, nos recursos especiais, atua no sentido de reforçar a obrigatoriedade dos valores da cidadania expressos na legislação federal. Se a legislação é resultado das maiorias políticas ocasionais, é forçoso concluir que o STJ, na condição de Tribunal da Cidadania, ostenta também uma função majoritária. Ao exercer essa função, o STJ contribui arrefecer o caráter arbitrário da interpretação jurídica, de modo que o Direito aplicado pelos tribunais não seja obra de vontades personalíssimas ou sectárias.

Em recurso especial, o STJ há de se esforçar por firmar a melhor interpretação jurídica possível da legislação federal, podendo para tanto verificar qual dos sentidos da lei mais se aperfeiçoa com a Constituição. Já o STF, pela lógica da implicação e polaridade, em sede de recurso extraordinário, deve avaliar se a melhor interpretação jurídica da legislação federal consagrada pelo órgão com essa competência amolda-se aos quadrantes constitucionais.

Não são raros, entretanto, os julgados em que o STJ, em sede de recurso especial, afasta a incidência de todas as interpretações possíveis acerca da legislação federal, criando originalmente o direito para o caso concreto, a partir de juízos extrajurídicos ou de fundo constitucional, nesse caso último caso confundindo o seu papel com o papel do STF [2].

Exemplo expressivo e recente desse padrão decisório que vai contra a razão de existir do STJ é o que se extrai do acórdão da 3ª Turma no Recurso Especial (REsp) nº 1.622.450, de 16 de março de 2021. Na ocasião, avaliava-se se acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, na parte em que estipulara que seria a ciência do dano o termo inicial da contagem do prazo da prescrição da pretensão relacionada à perda de uma chance decorrente de desídia de advogado. O recorrente buscava reformar o acórdão, com base nas disposições do artigo 189 do Código Civil (CC), que estipulam que o termo inicial da contagem é o momento da lesão ou da violação a direito, e não a ciência da lesão: "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição (…)".

Apesar de o recorrente contar a seu favor com disposição expressa de lei federal, ao concluir o julgamento a 3ª Turma houve por bem negar-lhe provimento, afastando o critério legal. Com efeito, reconheceu a turma, na esteira do artigo 189 do CC, que "na legislação civil brasileira, prevalece a noção clássica de que o termo inicial da prescrição se dá com o próprio nascimento da ação (actio nata), sendo este determinado pela violação de um direito atual, suscetível de ser reclamado em juízo". Diz-se inclusive que "em regra, o prazo prescricional começa a fluir independentemente do conhecimento da pretensão por seu titular", citando pertinente doutrina de Pontes de Miranda nesse mesmo sentido.

Porém, sem apresentar dispositivo de lei federal com disposições diferentes daquelas que constam do artigo 189 do CC, a 3ª Turma entendeu que existiriam "excepcionalíssimas situações em que possível constatar que, pela própria natureza das coisas, seria impossível ao autor, por absoluta falta de conhecimento de 'defice à sua esfera jurídica', adotar comportamento outro, que não o de inércia". Nessas situações, entendeu o órgão julgador que seria de rigor a "aplicação pontual da chamada teoria da actio nata em seu viés subjetivo, que, em síntese, confere ao conhecimento da lesão pelo titular do direito subjetivo violado a natureza de pressuposto indispensável ao início do prazo de prescrição".

Em poucas palavras: o Direito enunciado pelo STJ no julgamento do REsp nº 1.622.450 decorreu diretamente dos fatos, sem nenhuma intermediação normativa/legislativa. Criou-se uma norma que até então não existia no Direito Positivo. Trata-se de emanação concreta da teoria unitária ou monista do ordenamento jurídico defendida pelo grande processualista italiano Francesco Carnelutti, segundo a qual "antes da sentença não haveria direitos e obrigações e a missão do juiz seria acima de tudo a de completar o trabalho do legislador, produzindo a norma do caso em exame e com isso dando efetiva existência a direitos e obrigações entre as partes" [3]. Trata-se de teoria que envolve certo menoscabo da legislação, e que goza de grande trânsito pretoriano, pois transparece aposta metodológica no arbítrio dos juízes e tribunais, os quais terminam se tornando verdadeiros demiurgos.

Não se nega que seja razoável e lógico o entendimento consagrado no julgamento do REsp nº 1.622.450. O que se questiona é que tenha sido justamente o STJ o órgão judicial a afastar a incidência da lei federal por ocasião da apreciação de um recurso especial, em nome do argumento extrajurídico da "natureza das coisas".

Os argumentos manejados pela turma poderiam estimular debates legislativos muito ricos no sentido de atualizar/adaptar a legislação civil para que passasse a contar com uma regra que permitisse que em situações excepcionais a contagem do prazo prescricional iniciasse-se em momento diferente da lesão ao direito. Seria imaginável, por exemplo, a inserção na lei de um rol de situações ensejadoras da alteração do critério geral, de modo a permitir um mínimo de previsibilidade nas relações jurídicas potencialmente conflitivas. Ao deliberar sobre o melhor termo inicial para a contagem da prescrição, entre outras questões, deveria o Legislativo ter sobretudo a sensibilidade de refletir se a alteração do termo inicial ocasionaria ou não insegurança jurídica que o instituto por si busca debelar.

A ciência da lesão seria um critério muito vago ou de difícil comprovação prática? Como o beneficiário da prescrição poderia demonstrar que a ciência ocorreu nesse ou naquele dia? A ciência da lesão não tornaria letra morta a prescrição como matéria de defesa, na medida em que os autores sempre poderiam argumentar em torno da própria ignorância? A ciência da lesão como critério não seria um fator que estimula a desídia e a falta de vigilância sobre direitos e interesses? Quando o legislador estipula prazos prescricionais já não estaria implicitamente computando o período necessário para a tomada de ciência da lesão pelo interessado? Para contornar situações excepcionais, nas quais a ciência da lesão ocorre em momento bastante posterior, não seria mais adequado distender o prazo prescricional, ampliando-o, digamos, de cinco para dez anos, mantendo-se o critério objetivo e universal da lesão como termo inicial da prescrição? Ou seria mais interessante tecnicamente estipular causas que impedem o fluxo do prazo prescricional? Esses e outros debates poderiam proficuamente ser produzidos no âmbito do devido processo legislativo, ao final do qual, por meio da política e do exercício da cidadania, teríamos democraticamente a criação de uma norma jurídica mais bem informada.

Olvidamos às vezes que recursos especiais não se confundem com simples apelações. A fundamentação dos recursos especiais não é livre. Cabe ao recorrente se esmerar em demonstrar que o acórdão recorrido incorreu em uma das situações enumeradas nas letras do inciso III do artigo 105 da Constituição, sob pena de não conhecimento. Assim como se exige daqueles que interpõem recurso especial o apego a certa técnica de peticionamento, não bastando singelamente postular a reforma do julgado com base na "natureza das coisas" ou como medida de simples "justiça", exige-se do STJ também uma técnica específica de julgamento que é inteiramente incompatível com a teoria unitária do ordenamento jurídico defendida por Carnelutti.

Ainda que em geral juízos e tribunais possam utilizar com frequência a teoria de Carnelutti, ao menos o STJ, em sede de recurso especial, precisa seguir necessariamente a teoria dualista do ordenamento jurídico defendida por outro grande processualista italiano: Giuseppe Chiovenda. A atividade jurisdicional, para Chiovenda, ostenta natureza essencialmente declaratória de direitos [4], de modo que juízes não podem inventar soluções ou criá-las do nada, cabendo-lhes grande deferência às normas jurídicas preexistentes. Não cabe ao julgador o papel de demiurgo. Segundo a teoria defendida por Chiovenda, cabe-lhe, sim, perceber que "os direitos e obrigações preexistem à sentença, sendo por ela revelados com vista à concreta realização prática determinada pela norma também preexistente" [5].

O STJ precisa seguir mais Chiovenda e menos Carnelutti. Como recursos especiais não se confundem com apelações, o STJ deve se abster de, ao apreciá-los, criar o direito diretamente dos fatos, da natureza ou da lógica. Exige-se do um acatamento invulgar da legislação. Constatando o STJ que o tribunal recorrido violou a lei federal, não pode concluir ilogicamente pelo desprovimento do recurso especial. Se o fizer, deixará de cumprir o disposto no inciso III do artigo 105 da Constituição, tornando-se menos merecedor da alcunha de Tribunal da Cidadania e do título de guardião do princípio majoritário consagrado na legislação federal.

 


[1] ACEDO, Caio Sperandeo de. Cidadania à luz da concepção de Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3921, 27 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27206. Acesso em: 2 jul. 2021.

[2] Ao longo do artigo "É preciso reconstruir o controle de constitucionalidade no Brasil", publicado em 25 de agosto de 2018, defendi ideia semelhante a partir do resultado do julgamento dos REsp nº 1.720.805 e 1.648.305. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/e-preciso-reconstruir-o-controle-de-constitucionalidade-no-brasil/. Acesso em 5 de julho de 2021.

[3] Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. 1. 6ª ed. Malheiros: 2009, p. 130.

[4] "A terceira e última característica essencial da jurisdição é sua natureza declaratória. É que através da jurisdição o Estado não cria direitos subjetivos, mas reconhece direitos preexistentes. Este é ponto relevante: ninguém vai ao Judiciário em busca de um direito que lhe seja atribuído pelo juiz. Busca-se o reconhecimento e a atuação prática de um direito que já se tem, mas não foi reconhecido" (CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 35).

[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. 1. 6ª ed. Malheiros: 2009, p. 130.

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