Garantias do Consumo

Da obsolescência prematura à outorga de juris de um autêntico "direito de reparação"

Autor

7 de julho de 2021, 8h01

"O tempo de vida útil de um smartphone oscila entre 25 e 232 anos.
E, na realidade, não mais de três anos dura o aparelho.
Os custos ambientais e econômicos de um tal hiato são excessivamente onerosos e incomportáveis."
European Environmental Bureau
(Gabinete Europeu do Ambiente)

Obsolescência precoce versus obsolenscência programada
"Obsolescência é a qualidade de obsolescente ou obsoleto; qualidade do que está a cair em desuso, a tornar-se antiquado."

Do latim obsolescentĭa, particípio presente neutro plural substantivado de obsolescĕre, «cair em desuso», segundo o Infopédia, Porto Editora, 2020.

A obsolescência programada é, na sua essência, a pré-determinação do ciclo de vida de um produto. Como se, ao nascer, se inscrevesse, na sua matriz, a concreta data do seu passamento, da sua morte. Como se o produto, no momento do seu lançamento no mercado, se fizesse acompanhar de uma certidão já com a data do óbito…

A obsolescência de um dado produto consiste na “desclassificação tecnológica do material industrial, motivada pela aparição de um material mais moderno”.

Constituindo o resultado natural da inovação & desenvolvimento tecnológicos (com o que de intenção nisso possa ir aparelhado), representa em si um enorme problema se se manifestar precocemente ou, o que é pior, se for de caso pensado programada, planeada.

Em qualquer das hipóteses, a desatualização (e a depreciação sob qualquer das perspectivas) dos equipamentos eletrônicos, p. e., ocorre em momento temporal anterior ao expectável em vista da vida útil normal de um tal tipo de bens de consumo.

A diferença entre obsolescência precoce e obsolescência programada radica na intencionalidade de um tal fenómeno:

  •  a obsolescência programada é, como a expressão o inculca, determinada pelos produtores ou fabricantes, como forma de promover o acesso pelos consumidores a novos produtos, mais elaborados, tecnologicamente mais avançados e, em princípio, com uma mais adequada "performance".
  • A obsolescência precoce assenta na natureza específica dos materiais empregues na produção que fenecem numa dada dimensão temporal, cuja resistência cede volvido o tempo de vida útil das matérias primas empregues…

Conquanto haja quem as equipare ou faça equivaler, o facto é que se aproximam em vista do efeito útil que se lhes reconhece.

E nos textos emanados da União Europeia figuram, tantas vezes, fundidas, ao que parece, na expressão “obsolescência prematura”.

Noções que têm de ser entendidas, é bem de ver, cum grano salis… conquanto na doutrina, em geral, outras concepções se perfilem, a saber, as de obsolescência indirecta, obsolescência por incompatibilidade, obsolescência de estilo.

Outras distinções surgem em obras dos autores, com maior ou menor variabilidade, consoante as perspectivas de que emergem, como obsolescência de função, qualidade ou desejabilidade ou obsolescência estética, social, tecnológica e econômica.

A obsolescência programada ou planeada acha-se já prevenida em algumas legislações, na Europa, de que se oferece, como exemplo, o Code de la Consommation francês que, no seu artigo L 241-2, prescreve:

"Est interdite la pratique de l'obsolescence programmée qui se définit par le recours à des techniques par lesquelles le responsable de la mise sur le marché d'un produit vise à en réduire délibérément la durée de vie pour en augmenter le taux de remplacement."

E comina com prisão e multa uma tal conduta.

E é ainda flagrantemente o caso da Lei  6/2019, de 20 de Fevereiro, da Comunidade Autónoma da Extremadura, cujo texto consagra o Estatuto das Pessoas Consumidoras  (in  Boletín Oficial del Estado de 12 de marzo de 2019).

No seu  artigo 26 se estatui, sob a epígrafe  "obsolescência programada", de modo consequente, nestes termos:

"Se prohíben las prácticas de obsolescencia programada, entendida como tales el conjunto de técnicas que introduzcan defectos, debilidades, paradas programadas, obstáculos para su reparación y limitaciones técnicas mediante las cuales un fabricante reduce de forma deliberada la durabilidad de la producción con el objeto de aumentar la tasa de reemplazo o sustitución. A tal efecto, la vida útil estimada de los bienes de naturaleza duradera se considerará una característica esencial del producto.
La información sobre la duración estimada de estos bienes en ningún caso puede entenderse como un aumento del plazo de la garantía legal. Adicionalmente, se impulsarán medidas:
a) Para que las empresas faciliten la reparación de sus productos.
b) Para que las empresas mejoren la calidad y la sostenibilidad de los productos manufacturados.
c) Para establecer un sistema que garantice una duración de vida mínima de los productos adquiridos.
d) Para el fomento, sobre todo en fase de educación, del consumo responsable, con el objetivo que las personas consumidoras tengan en cuenta el impacto sobre el medioambiente, la huella ecológica y la calidad de los productos.
e) Para fomentar la realización de proyectos I+D+i basados en el diseño ecológico de los productos, la economía circular, el residuo mínimo y la economía de la funcionalidad.
f) Para fomentar una etiqueta voluntaria que incluya, en particular, la durabilidad del producto, el diseño ecológico, la capacidad de modulación de conformidad con el progreso técnico y la posibilidad de reparación."

A obsolescência constitui magno objectivo que a União Europeia se propõe combater veementemente em vista, afinal, de uma maior durabilidade dos produtos e de uma expressiva redução de resíduos com efeitos na descarbonização do planeta.

Para tanto, surge associada a um direito à reparabilidade dos produtos com o que tal possa pressupor e demandar. E é, de resto, patente em inúmeros instrumentos editados tanto pelo Parlamento Europeu como pela Comissão Europeia, de que se fará eco nos passos subsequentes.

Novo plano da economia circular
A Comissão Europeia, em decorrência do Novo Plano da Economia Circular, que editou em 11 de Março de 2020, intenta adoptar uma  iniciativa legislativa tendente à sustentabilidade dos produtos, de molde a cumprir os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável que emergem dos Objectivos do Milénio traçados pelas Nações Unidas e de preocupações outras a que se adscrevera em razão dos seus próprios programas.

O objectivo central de uma tal iniciativa é o de alargar, com efeito, a aplicabilidade da Directiva Concepção Ecológica a produtos outros que não os que se prendem com o consumo de energia por forma a gerar resultados mais substanciais em termos de circularidade.

De entre o mais, regulamentando, entre outros, aspectos como os que de seguida se enunciam:

Potenciar a durabilidade, a possibilidade de reutilização, a capacidade de atualização e a reparabilidade dos produtos, reduzindo a presença de químicos perigosos nos próprios produtos e aumentando a sua eficiência energética e bem assim a eficiência na absorção dos recursos;
Restringir a utilização única (o comprar, usar e descartar) e combater a obsolescência prematura.
Aumentar o teor de materiais reciclados nos produtos, garantindo simultaneamente o seu desempenho e segurança;
Estimular a remanufactura e a reciclagem de alta qualidade;
Reduzir as pegadas ecológicas e de carbono;
Restringir a utilização única e combater a obsolescência prematura;
Proibir a destruição de bens duradouros não comercializados;
Incentivar o modelo de negócio «produto como um serviço» ou outros modelos em que os produtores mantêm a propriedade dos produtos ou a responsabilidade pelo desempenho dos mesmos ao longo do ciclo de vida;
Mobilizar o potencial da digitalização das informações sobre os produtos, incluindo de soluções como passaportes, etiquetagem e marcas de água digitais;
Recompensar os produtos com base no seu desempenho diferenciado em termos de sustentabilidade, nomeadamente por meio do estabelecimento de uma relação entre níveis de desempenho elevados e incentivos.

Há um sem-número de instrumentos cujo escopo se funde no propósito comum de concorrer para que o Consumo Sustentável se torne, no seio do Espaço Económico Europeu, realidade irreversível em cumprimento de um dos desígnios dos Objectivos do Milénio.

3 Pugnar contra a obsolescência
Programar a durabilidade dos produtos
Parlamento Europeu
Resolução de 4 de julho de 2017

O Parlamento Europeu por Resolução de 4 de Julho de 2017, sob a epígrafe
"Produtos com uma duração de vida mais longa:  vantagens para os consumidores e as empresas" 
instou a Comissão Europeia a promover a possibilidade de reparação dos produtos:

  • incentivando e facilitando medidas que tornem a opção de reparação mais atrativa para o consumidor,
  • através do recurso a técnicas de construção e materiais que facilitem a reparação do artigo ou a substituição dos seus componentes mais fácil e menos dispendiosa; os consumidores não devem ficar presos num ciclo interminável de reparação e manutenção de produtos defeituosos,
  • promovendo, em caso de não conformidade recorrente ou de um  período de reparação superior a um mês, a prorrogação da garantia por um período equivalente ao tempo necessário para efetuar a reparação,
  • apelando a que as partes cruciais para o funcionamento do produto sejam substituíveis e reparáveis, fazendo da capacidade de reparação do produto um dos seus elementos essenciais, quando benéfico, e desencorajando, a menos que tal se justifique por razões de segurança,

O Parlamento Europeu, no ensejo, instou ainda a Comissão Europeia a

  • propor, em concertação com as organizações de consumidores, de produtores e outros partícipes, uma definição, a nível da UE, de obsolescência programada para bens tangíveis e software;
  • analisar, em cooperação com as autoridades de supervisão do mercado, a possibilidade de criar um sistema independente que consiga testar e detectar obsolescência incorporada nos produtos; apela, neste sentido, a uma melhor protecção jurídica dos chamados «denunciantes» e a medidas dissuasivas adequadas para os produtores;

Considerando que a possibilidade de actualização dos produtos é susceptível de abrandar a obsolescência dos produtos e reduzir o seu impacto ambiental e os custos para os utilizadores, propõe-se proteger ainda os consumidores da obsolescência  dos programas informáticos, apelando a uma maior transparência no tocante à capacidade de actualização, às actualizações de segurança e à durabilidade, aspectos em si necessários para o bom funcionamento tanto do software como do hardware;

Daí que entenda ser de estudar a necessidade de facilitar uma maior cooperação entre empresas; e a

– Incentivar a transparência por parte dos fornecedores e dos fabricantes através de estipulações, nos contratos de produtos, sobre o período mínimo durante o qual as actualizações de segurança nos sistemas operativos estarão disponíveis; propondo se elabore uma definição de um prazo razoável de utilização;

– Salienta, além disso, a necessidade de o fornecedor do produto assegurar o fornecimento das actualizações de segurança, caso este produto disponha de sistemas operativos incorporados;

Instar os fabricantes a fornecerem informações claras sobre a compatibilidade das actualizações do software e das actualizações com sistemas operativos fornecidos aos consumidores;

– Apelar a que as atualizações de software indispensável sejam reversíveis e acompanhadas de informações sobre as consequências para o funcionamento de um aparelho e a que o novo software indispensável seja compatível com software das gerações anteriores;

– Promover a modularidade das peças, incluindo do processador, mediante uma abordagem de normalização, que permita garantir que os bens não fiquem desatualizados.

A longevidade dos produtos abarca tantos os bens tangíveis como o software, de molde a que eventuais reajustamentos dos modelos de marca não lancem para o cesto das inutilidades milhões de equipamentos, como ainda recentemente ocorreu com a Apple, que pelo facto foi condenada em França a 25 milhões de € (iPhones 6, 7 e SE que se tornaram demasiado lentos após a actualização do sistema operacional para versões 10.2.1 e 11.2.).

Parlamento Europeu
Resolução de 25 de novembro de 2020
O Parlamento Europeu adaptou, porém, em 25 de novembro do ano transacto, uma outra RESOLUÇÃO sob a consigna "Rumo a um Mercado Único mais Sustentável para Empresas e Consumidores".

Aí confere particular relevo ao "Direito à Reparação dos Produtos" (intentando uma estratégia fulcral em matéria de reparação de bens de consumo).

Emitiu, nesse sentido, um sem-número de recomendações que visam, com efeito, dar forma a um Mercado Interior Sustentável (delimitado pelas fronteiras exteriores do denominado Espaço Económico Europeu), como convém e constitui, nos tempos que correm, imperativo indeclinável de uma qualquer política europeia de consumidores com reflexos no plano global.

E enumera um amplo leque de medidas que há que trasladar para a lei e se compendiam como segue:

 A outorga (ex novo) de um «direito de reparação» aos consumidores que se imbrica necessariamente numa extensão temporal da garantia legal dos bens de consumo

 A promoção da reparação em vez da substituição

 A normalização das peças sobresselentes susceptível de promover a interoperabilidade e a inovação

 O acesso gratuito às informações necessárias para a reparação e a manutenção

 Um leque de informações que aos produtores incumbe em matéria de disponibilidade de peças sobresselentes, actualizações de «software» e a faculdade de reparação de um produto, nomeadamente acerca de:

  • o período estimado de disponibilidade a partir da data da compra,
  • o preço médio das peças sobresselentes no momento da compra,
  • o prazos aproximados recomendados de entrega e reparação e
  • informações sobre os serviços de reparação e manutenção

 O período mínimo obrigatório para o fornecimento de peças sobresselentes e consonância com a duração de vida estimada do produto após a colocação no mercado da última unidade

 A garantia de preço razoável para as peças sobresselentes

 A garantia legal para as peças substituídas por um reparador profissional quando os produtos já não estiverem cobertos pela garantia legal ou comercial

 A criação de incentivos, como o «bónus do artesão», susceptíveis de promover as reparações, em particular após o fim da garantia legal.

Este cacharolete de medidas tende a conferir uma particular consistência ao "direito de reparação" que surge como credencial de uma longa vida ao produto como óbice à subsistente obsolescência prematura que é prenúncio de excesso de resíduos e de afrontamento aos equilíbrios ambientais.

4 – A inversão do paradigma
Reparar que não substituir

Vantagens & desvantagens
Os dados estão lançados: dar mais vida aos produtos; prover à reparação em vez de se enveredar pela sua substituição.

Há já medidas tendentes à sua concretização em determinados segmentos por mor das directivas de execução da Comissão Europeia.

A Espanha acaba de alargar a garantia das coisas móveis de consumo para três anos e a durabilidade média dos produtos em geral por dez anos com o arsenal de sobresselentes e acessórios que a medida naturalmente reclamará.

A aprovação de regras que estendessem, por exemplo, a longevidade de alguns dos dispositivos nos smartphones por cinco anos, que seja, representaria, no Espaço Económico Europeu,

  • uma diminuição de 12 milhões de toneladas anuais de equivalente-CO2, o que
  • significaria retirar de circulação 15 milhões de veículos movidos a combustíveis fósseis…

O desenho de um novo "direito de reparação" visa conferir mais vida aos produtos.

O direito de reparação, como tal concebido, é susceptível de fazer renascer mesteres, entretanto, extintos.

Mas as interrogações acodem ao nosso espírito: é mais fácil substituir que reparar?

Reparar… por forma a que seja mais acessível manter o produto que substituí-lo?

Ou será mais oneroso reparar pelas repercussões do valor da mão-de-obra, remunerada aos preços correntes de mercado? Claro que tal dependerá obviamente da categoria dos produtos e da sua peculiar concepção…

Trata-se, na realidade, de uma autêntica revolução a que ora se esboça.

Será que a inversão do paradigma não constituirá obstáculo à "Inovação & Desenvolvimento"?

Não haverá que curar de um equilíbrio ponderado de molde a evitar que o progresso se estanque, se paralise por mor da estagnação dos produtos e da sua desuetude?

Um tal exercício demandará decerto uma dose apreciável de "engenho & arte" e não se solucionará, obviamente, de uma penada só…

Ou será que a evolução de novos modelos inteiramente recicláveis (e de acesso universal, ao alcance de qualquer bolsa…, como se proclama e ponto é que o seja deveras!) não configurará o cenário preferível?

O mote para o debate está dado… e nele há que fazer participar a comunidade em todos os seus estamentos.

Importante é que esquadrinhemos os ângulos sob que se perspectivam as novas realidades, envolvendo na discussão os partícipes, todos os partícipes por inteiro [Universidades, Centros Tecnológicos & de Investigação, indústria, serviços, distribuição (associações de interesse económico), consumidores…] para que soluções mais adequadas e convenientes se logrem e imponham no interesse geral.

Porque é indispensável dar com firmeza passos na senda da sustentabilidade.

Porque força é "dar mais vida aos produtos para que a vida se prolongue": eis o lema de uma estratégia convertida em nova política de consumidores que deve ser perfilhada “urbi et orbi”!

"Dar mais vida aos bens para que se dê, como nos habituamos a  proclamar, mais vida à vida"!

Mário Frota

 

  • Antigo Professor da Universidade de Paris d’Est
  • Director do CEDC – Centro de Estudos de Direito do Consumo de Coimbra
  • Fundador e primeiro presidente da AIDC – Associação Internacional de Direito do Consumo

 

_________________________________________________________________

Bibliografia:

 

J. Guiltinan: 'Creative Destruction and Destructive Creations: Environmental Ethics and Planned Obsolescence', 2008.

Longer Lasting Products, edited by T. Cooper, GOWER, 2010.

Étude sur la durée de vie des équipements électriques et électroniques, ADEME, 2012.

Scoping study to identify potential circular economy actions, priority sectors, material flows and value chains, European Commission, 2014.

The Durability of Products, European Commission, 2015

The Influence of Lifespan Labelling on Consumers, Study commissioned by the European Economic and Social Committee, 2016.

European Parliament, Planned obsolescence: Exploring the issue, Briefing, May, 2016

Planos Europeus em domínios como: Economia Circular, Resoluções do Parlamento Europeu, Nova Agenda do Consumidor Europeu (2021/25).

Autores

  • é antigo professor da Universidade de Paris d’Est, director do CEDC (Centro de Estudos de Direito do Consumo de Coimbra) e fundador e primeiro presidente da AIDC (Associação Internacional de Direito do Consumo).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!