Embargos culturais

Luis Rosenfield e a revolução conservadora no constitucionalismo brasileiro

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

4 de julho de 2021, 8h00

Luis Rosenfield é um jovem professor e pesquisador do Rio Grande do Sul que publicou recentemente, pela editora universitária da PUC-RS, "Revolução Conservadora- genealogia do constitucionalismo autoritário brasileiro (1030-1945)". É um livro para ser lido com lápis na mão e com a certeza de que (finalmente) há coisa nova e boa no mercado editorial do pensamento jurídico. Trata-se de pesquisa histórica que já é marco nesse modelo de empreitada intelectual.

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O autor mapeia o constitucionalismo brasileiro do período entreguerras. Transita da tradição liberal de Pedro Lessa e Rui Barbosa para a concepção de democracia autoritária, eugênica e corporativa de Oliveira Vianna e para o conservadorismo também autoritário de Francisco Campos. Explora os fundamentos dos textos constitucionais de 1891, de 1934 e de 1937. A formação do constitucionalismo antiliberal varguista é o leitmotiv desse ousado livro. Um livro de história do Direito e do pensamento jurídico que não faz concessões a simplificações e a estratégias narrativas dulcificadoras.

No pano de fundo da narrativa, a complexa relação entre os intelectuais e o poder. Para Rosenfield, "talvez uma das maiores dificuldades de se fazer história intelectual do direito passe pelo intrincado sistema de dependências mútuas entre profissionais do campo jurídico, que dependem de bons relacionamentos para ascender e se manter em evidência na carreira e-ou prosperar profissionalmente". Na literatura estrangeira esse tema foi explorado por Bernd Ruthers ("Entartetes Recht-Rechtleheren und Kronjuristen im Dritten Reih"), por Norberto Bobbio ("Intellettuali e potere nella società contemporânea") e por Richard Posner ("Public intellectuals, a study of decline"). Na relação entre os intelectuais e o antiliberalismo, tema central do livro de Rosenfield, entre nós, há os ensaios de Helena Bomeny e de Angela Castro Gomes. Esses textos se complementam.

Rosenfield argumenta contra uma perspectiva ingênua de história. Denuncia uma história do Direito que enxerga evoluções em todos os campos. Comprova-nos que Direito e História vivem relação equivocada. A história do Direito é por muitos utilizada como argumento, adereço retórico, forte no discurso de conteúdo apologético. A História é também a construção da realidade presente. Nesse sentido, pode-se hesitar em face da interpretação histórica convencional dos juristas. Essa história oficial do Direito, que toma o passado com neutralidade, afina-se com o discurso normativo dominante, também pretensamente neutro. Rosenfield comprova-nos o acerto desses postulados.

Em "Revolução Conservadora" o autor explora a engenharia jurídica do Estado varguista. Menciona a construção do Direito trabalhista, que segue roteiro muito familiar, no qual há efetiva exaltação de personagens em desfavor da luta. Tradicionalmente, a Constituição de 1934 e a CLT são apresentados como os pontos centrais dessa trajetória. A Constituição de 1934 é documento de época, com características expressivas de seu tempo, marcado por intensa polarização ideológica, revelando arranjos institucionais inovadores, a par de algumas peculiaridades. Algumas, a exemplo da representação classicista, foram de efêmera duração, outras, a propósito da Justiça Eleitoral e do mandado de segurança, persistiram, despontando como predicados característicos do constitucionalismo brasileiro.

A Constituição de 1934 foi precedida por intenso trabalho de uma comissão de notáveis, conhecida como Comissão do Itamaraty, na qual preponderaram João Mangabeira, Carlos Maximiliano, Temístocles Brandão Cavalcanti e Castro Nunes — entre outros. A Constituição de 1934 foi debatida em animada Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou texto diverso do documento da comissão; inclusive, pela extensão, e por algumas questões essenciais. No projeto da comissão não houve espaço para a representação classista na Câmara, modelo que foi adotado pela constituinte.

Os debates da Comissão do Itamaraty registram preocupações que marcavam aquele momento histórico, ainda dependente das incertezas do governo provisório de Vargas. O governo provisório de Vargas fora institucionalizado por um decreto de 11/11/1930, como ato de legalização de compromisso, acordo que foi frequentemente ressaltado, nas discussões originárias na Comissão do Itamaraty, especialmente nas intervenções de Oswaldo Aranha e de Góes Monteiro.

A Constituição de 1934 tratou de várias matérias de natureza não constitucional, propiciando texto analítico — no que foi criticada por Carlos Maximiliano — realçando uma tradição do constitucionalismo brasileiro, pródigo em Constituições extensas e abundantes em pormenor. Trata-se de ambiente constitucional de inovações úteis ou inevitáveis, na precisa expressão de Afonso Arinos de Mello Franco, em biografia sobre seu pai, Afrânio de Mello Franco, presidente de comissão que preparou um anteprojeto que foi discutido por uma Assembleia Nacional Constituinte. A Constituição de 1934 ensaia um Estado de bem-estar social que irá permear os arranjos constitucionais futuros, a exemplo de alguns excertos da própria Constituição de 1988.

Para Rosenfield, pelo que entendi, a discussão de 1934 deu-se como uma antessala para as fórmulas autoritárias de 1937. Em 1934, pontificou, penso, Oliveira Vianna. Esse pensador estudou no Pedro II (formando-se em 1900) e bacharelou-se em Direito (na antiga Faculdade Nacional, no Rio de Janeiro, turma de 1905). Sempre engatado em um cargo público, foi um dos principais nomes do Ministério do Trabalho, dirigido por Lindolfo Collor, no início da Era Vargas. Deve-se lembrar que Vianna é um dos pais fundadores de nosso Direito do Trabalho, inclusive do Direito Sindical. Em 1937, assumiu cadeira na Academia Brasileira de Letras. Católico, ligado à Legião do Sagrado Coração de Jesus, Viana deixou-nos uma intensa obra de investigação da realidade brasileira. Foi ministro do Tribunal de Contas da União.

Foi um crítico de Rui Barbosa. Rui resumia o Direito a uma tecnologia, desprezando a normatividade como uma ciência social. Segundo Viana, o que interessava a Rui era o texto legal, que confrontava com outro texto legal, em face dos quais mostrava reverência que lembrava os teólogos para com os versículos bíblicos. Rui dominava esses textos, que expunha com uma erudição incomparável, esmagando adversários no foro e seus opositores na política. Citava centenas de autores, sobre qualquer ponto ou assunto, por mais específico que fosse. Rui trabalhava com uma metodologia escolástica e formalista que, no juízo de Viana, era indicativo desse alegado "marginalismo". O "marginalismo" jurídico, segundo Viana, consistia em uma técnica de adaptação de um modelo jurídico e institucional estranho à nossa nacionalidade.  Rosenfield retomou — com muita clareza — essa crítica, que os tradicionais abominam. Eu já fui criticado só por ter lembrado que Oliveira Vianna tinha muitas reservas para com Rui Barbosa.

Francisco Campos é um dos pontos centrais do livro de Rosenfield. O mineiro Francisco Campos foi figura importante do regime de Vargas. Constitucionalista, exuberantemente culto, foi a Francisco Campos a quem se incumbiu o desenho institucional do regime varguista. Segundo Rubem Braga, toda vez que o senhor Francisco Campos acendia a luz, "tinha-se um curto circuito nas instituições democráticas". Rosenfield enfatiza as ideias centrais do pensamento de Francisco Campos, que Jarbas Medeiros havia também tratado. Campos era um apocalíptico, fazia uma apologia do papel das elites e entendia que a sociedade moderna é, de fato, uma sociedade de massas. Demanda, por isso, arranjos institucionais também de massa.

Há no livro de Rosenfield um mérito metodológico insuperável. Estudou uma época específica, com autores dessa época, sem concessões para comentaristas que contam com o benefício do retrospecto. No livro de Rosenfield desfilam nomes fundamentais da cultura política e jurídica brasileira. Entre esses autores, Sampaio Dória, Viveiros de Castro, Levi Carneiro, Afrânio de Melo Franco, Pontes de Miranda, Castro Nunes, Themístocles Brandão Calvalcanti. Rosenfield também conhece os autores contemporâneos, como Michael Stolleis (recentemente falecido), Mortom Horwitz, José Reinaldo de Lima Lopes, Aírton Seelander, que já são hoje canônicos. Antenado, lembrou também a recente biografia de Filinto Muller, de autoria de R. S. Rose, recentemente lançada.

Há alguma referência a estudos de Direito Comparado. O antiformalismo de Vianna e de Campos de certa forma está também no realismo jurídico norte-americano, especialmente na versão de Jerome Frank, aspecto pouco lembrado, e que Rosenfield explicou com clareza. Roberto Rosas me havia falado desse livro, o que já o referendava com força de quem conhece do assunto. O constitucionalista alemão Dieter Grimm apresenta o livro. Nosso colega Anderson Vichinkeski Teixeira, que fez doutorado em Florença, prefaciou o livro. É o livro que todo estudioso do assunto gostará de ler. É o livro que todo estudioso do assunto gostaria de ter escrito.

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