Opinião

Todas as formas de amor são válidas: a poliafetividade como entidade familiar

Autor

  • Danielle Corrêa

    é advogada pós-graduada em Direito de Família e Sucessões e membro da OAB-SP e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).

4 de julho de 2021, 15h14

No campo do Direito de Família, muitas vezes a legislação se torna estática diante da velocidade com que a sociedade vai se atualizando. O conceito de família, por exemplo, passou por diversas transformações e vem evoluindo ao longo do tempo. Hoje, a concepção do tema é muito mais ampla do que há 20, 30 ou 50 anos, quando apenas interpretamos como possíveis partes integrantes da família o pai, a mãe e os filhos, sendo ainda que o poder familiar ficava nas mãos do homem, que era visto como o representante daquele grupo e incubido da guarda e dos cuidados dos familiares.

Hoje, devido à maior liberdade para fazer escolhas pessoais, compreendemos os conceitos de amor e afetividade com outra profundidade. Em razão disso, criou-se uma maior flexibilidade na definição de família e já consideramos várias outras composições como entidades familiares. Por exemplo, a própria monoparentalidade, que tempos atrás era considerada um fenômeno involuntário, geralmente decorrente de uma situação imposta, como a viuvez, hoje parte muito mais de uma opção da pessoa, como no caso do divórcio ou de mães e pais que querem ter filhos sozinhos. Vale a pena até mesmo mencionar os casamentos homoafetivos, reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal apenas em 2014, que na antiguidade foram tratados por muitos, inclusive, como doença.

Enfim, o conceito de família, por si, vai se amoldando às novas realidades que o ser humano vai vivendo, experienciando, tanto é que atualmente surge mais uma nova concepção de família, no que tange à poliafetividade. A poliafetividade, ou poliamor, como muitos gostam de chamar, é um grupo familiar, formado por três ou mais pessoas que se interessam por constituir um vínculo familiar, de amor, respeito e cuidado mútuo para com os seus companheiros ou companheiras. Essa forma familiar existe há muito tempo, mas somente na atualidade, vem tomando forma para ganhar seu espaço no mundo jurídico.

Quando falamos em família, devemos levar em consideração o seguinte aspecto: o laço que une todos os integrantes é a afetividade. Tanto que, nas demais modalidades reconhecidas, não se usam termos como, por exemplo, "casais homossexuais", e, sim, "casais homoafetivos". Utiliza-se a palavra afetividade para descrever essas relações, porque o que de fato une esses casais é o amor, o cuidado recíproco, a vontade mútua de construir uma união estável e duradoura. A relação de família é muito mais complexa e dinâmica do que apenas considerar o sexo e a quantidade das pessoas envolvidas.

Em tese, no Brasil, poliamoristas poderiam se casar, pois não há um impedimento próprio na legislação que impeça essa união, lembrando sempre que no Brasil o que não é proibido pela lei é permitido. Em 2012, surgiu o primeiro registro de união poliafetiva no país, na cidade de Tupã, interior de São Paulo. A partir daí aconteceram outros registros em outras localidades, porém, em 2016, a Corregedoria Nacional de Justiça lançou um comunicado para os Cartórios de Registro Civil e recomendou a não escrituração das uniões estáveis poliafetivas. Apesar de os cartórios não serem obrigados a seguir a recomendação, infelizmente acataram esse parecer.

Então, de 2016 para cá, não vemos mais registros de uniões estáveis feitas diretamente nos cartórios e até hoje não foi criada nenhuma lei que discipline as relações de poliafetividade. Entretanto, muitos são os trisais e grupos que não se acanham diante da falta de norma e vão ao Judiciário requerendo seus direitos, lutando para serem reconhecidos como família e terem todos os direitos que os demais casais têm, inclusive os sucessórios. E o Judiciário reconhece essas famílias, já é possível encontrar várias decisões espalhadas pelos tribunais dos estados reconhecendo essas uniões e garantindo todos os direitos.

Um caso famosíssimo é o do cantor, já falecido, MC Catra, que partilhava a vida com três esposas, todas residiam no mesmo lar e levavam a vida em família. O cantor, inclusive, não escondia de ninguém o modo como vivia, pelo contrário, espalhava aos quatro ventos como era possível ser muito feliz em uma relação poliafetiva. Com a morte do cantor, as três esposas  assim como muitas outras mulheres e homens que vivem nessa situação  viram-se desamparadas pelo Direito e também precisaram recorrer ao Judiciário para ter seus direitos assegurados.

Não há como negar a necessidade de criação de normas que regulamentem essa relação. Mas, enquanto isso não acontece, pessoas que vivem esse tipo de relação e partilham uma vida com três ou mais pessoas, baseadas numa relação de poliamor, não devem deixar de buscar judicialmente seus direitos, pois o caminho para ser reconhecido está aberto. Ainda que não pelos cartórios, mas, sim, pela Justiça. Por meio do Judiciário é possível exigir não só a regularização jurídica da relação, mas todos os direitos dela decorrentes, como filiação, sucessão, herança e muitos outros, assim como todos os direitos garantidos a um casal heretossexual, homossexual ou qualquer que seja a modalidade familiar.

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