Diário de Classe

A influência dos EUA nos acordos penais brasileiros

Autor

  • Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos

    é advogado criminalista doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor.

3 de julho de 2021, 11h47

Nas últimas décadas, em função da crescente importância do direito processual penal norte-americano[1], construiu-se um movimento na Europa Ocidental e nos países da América latina de "americanização" do Direito. No Brasil, esta importação de ideias jurídicas do sistema common law é identificada por meio das noções de justiça penal negociada, através da introdução de formas de barganha[2] no processo penal. A influência do sistema jurídico desse país vai desde a forma teórica de abordagem — v.g., pelo pragmatismo legal, discursos de direitos e relação entre direito e economia — até a estruturação dos escritórios de advocacia e formação do profissional. Esse movimento levou alguns doutrinadores a entenderem, como expõe Langer, que algumas nações não estadunidenses estariam recriando o seu sistema jurídico fortemente influenciado pelas noções da common law norte-americana[3].

Nos Estados Unidos da América, a forma mais conhecida de justiça penal negocial é o plea bargaining, instrumento este amplamente utilizado na prática forense. Estima-se, nesse cenário, que 97% (noventa e sete por cento) dos casos criminais federais[4] naquele país são resolvidos através de acordos e, por consequência, não são levados a julgamento. Tais acordos, nesse sentido, são propostos pelo Ministério Público (prosecutor), o qual possui ampla margem de discricionariedade para propor as avenças[5]. O modelo geral norte-americano — analisado sob a ótica do instituto federal do plea bargaining (uma vez que pode variar entre os entes federativos[6]) — confere um viés pragmatista ao processo penal e visa, em última análise, a gerar eficiência na persecução criminal. Ao contrário dos países de matriz inquisitorial, o prosecutor não está vinculado ao princípio da obrigatoriedade da ação penal.

Importante destacar-se, como expõe Jed S. Rakoff, que, nos Estados Unidos da América o sistema de plea bargaining constitui, praticamente, todo o sistema de justiça criminal, o qual se resume em acordos feitos "a portas fechadas" e sem controle judicial. A discricionariedade que possui o membro do Ministério Público é bastante extensa, ao passo que o poder conferido à defesa e, inclusive, ao juiz, é diminuto[7]. É dizer que, nesse particular, reside uma diferença substancial entre os países de matriz inquisitorial e aqueles — como a nação norte-americana — de viés adversarial. Nos primeiros, há uma forte tendência à judicialização e à diminuição — especialmente pelos atores jurídicos envolvidos — dos espaços de consenso na Justiça Penal. Ao revés, a ânsia pela eficiência e rápida resposta do sistema criminal norte-americano conduz à utilização desenfreada dos acordos criminais.

A disseminação dos espaços de consenso no processo penal norte-americano tomou maior corpo após o fim da Guerra Civil. Isso porque, em função da alta taxa de criminalidade da época, optou-se por dar maior eficiência e celeridade às persecuções criminais sem correr o risco de colapsar o sistema de justiça criminal. Essa tendência foi aumentando com o passar dos anos e manteve-se "estável" até antes dos anos 60 (época em que a taxa de criminalidade nos Estados Unidos da América era relativamente baixa). Com o aumento exponencial de crimes, a partir dos anos 60, a expansão do plea bargaining foi uma constante nos anos que sucederam, fundamentalmente pelo recrudescimento das penas criminais em âmbito federal e estadual. Em 1980, a taxa de acusados que iam a julgamento era de 19%. Em 2010, tal percentual reduziu para modestos 3%. Além da motivação da alta criminalidade, o aumento dos acordos criminais deveu-se ao advento das sentencing guidelines, as quais alcançaram maior poder aos prosecutors, na medida em que imporia uma coerção ao investigado através da "projeção" de eventual pena cominada por ocasião de sentença condenatória[8].

O problema do plea bargaining, nesse cenário norte-americano – marcado pela utilização massiva do instituto —, é que a disparidade havida entre o membro da acusação pública (e a sua alargada discricionariedade) e a defesa conduz a um fenômeno em que os inocentes — a fim de evitar todo o efeito potestativo do Estado — acabam, em dadas situações, por se declarar culpados[9].  E, como referido acima, a própria metodologia da dosimetria da pena naquele país (sentencing guidelines) contribuiu para o alargamento do instituto do acordo criminal. Veja-se que até o início dos anos 70 regia, nos Estados Unidos da América, o sistema de pena indeterminada, que conferia ao magistrado prolator da sentença uma margem muito ampla de discricionariedade[10]. Tal sistemática, por conseqüência, sofreu duras críticas ao longo dos anos, desde abolicionistas até liberais, os quais pretendiam dar maior coerência à fase de aplicação de pena[11]. Nesse contexto, portanto, surgiu o sentencing guidelines, que, igualmente, operacionalizou a dosimetria da pena naquele país, marcado pela severidade das reprimendas e robustez do encarceramento[12].

No Brasil, as tendências de "simplificação" do direito processual por intermédio da introdução da justiça penal negociada não é uma novidade. Em 1995, a Lei 9.099 introduziu a possibilidade de oferecimento de transação penal (artigo 72) para crimes de menor potencial ofensivo e a suspensão condicional do processo (artigo 89). A diferença havida, no que diz respeito à comparação com o plea bargaining norte-americano, é a desnecessidade de se considerar culpado[13]. Cuida-se, nessa senda, de um instrumento que pode ser reconhecido mais como um benefício processual do que propriamente um acordo para evitar uma ação penal.

Recentemente, através da Lei nº 13.964/2019, foi introduzido ao Código de Processo Penal brasileiro o artigo 28-A, o qual prevê a possibilidade de formulação de Acordo de Não Persecução Penal entre o Ministério Público e o acusado em crimes cujas penas mínimas sejam até 04 (quatro) anos e que observem outros requisitos (v.g., a ausência de habitualidade delitiva). Tal influência da justiça penal negociada dos Estados Unidos da América, por certo, não é nova, a contar pelas inserções de espécies de relativização do princípio da obrigatoriedade da ação penal na Lei n.º 9.099/95.

À base desse contexto, é inegável que os mecanismos processuais penais do sistema norte-americano têm alcançado significativa influência na forma de estruturação das matrizes brasileiras. A ideia de criação de espaços de consenso no Brasil tem se fortalecido desde a introdução da Lei n.º 9.099/95 — ainda que de forma tímida — e, de modo mais contundente, por meio da utilização excessiva da colaboração premiada (fundamentalmente pela recente operação "lava jato") e através da inserção do Acordo de Não Persecução Penal. Apesar disso — e aqui reside uma significativa diferença — parece-nos que no sistema adversarial dos Estados Unidos da América, a discricionariedade recai sobre o membro da Acusação Pública — e não sobre o juiz —, ao contrário do que ocorre no Brasil, em que ainda não há uma superação dos positivismos novecentistas que, até hoje, exercem forte influência nas decisões judiciais, além da prevalência de certa espécie heterodoxa de Realismo Jurídico no intérprete brasileiro[14].


[1] LANGER, Maximo. Dos transplantes jurídicos às traduções jurídicas: a globalização do plea bargaining e a tese da americanização do processo penal. Delictae, vol. 2., n.º 3, jul-dez/2017.

[2] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015.

[3] LANGER, Maximo. Dos transplantes jurídicos às traduções jurídicas: a globalização do plea bargaining e a tese da americanização do processo penal. Delictae, vol. 2., n.º 3, jul-dez/2017.

[4] RAKOFF, Jed S. Why innocent people plead guilty. The New York Review of Books, nov/14. Disponível em: https://www.nybooks.com/articles/2014/11/20/why-innocent-people-plead-guilty/; Acesso em: 10.08.2020.

[5] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015.

[6] Ibidem.

[7] RAKOFF, Jed S. Why innocent people plead guilty. The New York Review of Books, nov/14. Disponível em: https://www.nybooks.com/articles/2014/11/20/why-innocent-people-plead-guilty/; Acesso em: 10.08.2020.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] QUIRÓS, Diego Zysman. Castigo e Determinação da Pena nos E.U.A.: um estudo sobre as United States Sentencing Guidelines. Trad. Prof. Dr. Jacson Zilio. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 87.

[11] TORNY, Michael H.. Thinking about Punishment: penal policy across space, time and discipline. Ashgate Publishing, 2009, p. 336.

[12] Tomando por exemplo as sentencing guidelines do Estado de Minnesota dos anos 80, um roubo simples geraria ao infrator uma pena de 18 (dezoito) meses de cadeia, porém, em caso de prática do mesmo crime por três vezes (three strikes), o apenamento seria aplicado entre 29 (vinte e nove) a 31 (trinta e um) meses. Veja-se: MINNESOTA SENTENCING GUIDELINES GRID. 1980. Disponível em: https://mn.gov/sentencing-guidelines/assets/1980-Standard%20Grid_tcm30-31016.pdf

[13] A par dessa conjuntura, valiosa a crítica de Vasconcellos no que diz respeitos aos “acordos” nos processos criminais de médio e pequeno potencial ofensivo: “Certamente, os dois últimos mecanismos citados são aqueles que aderem cristalinamente ao desenho conceitual da justiça criminal negocial, já que se caracterizam por pressupor a concordância do réu em aceitar a acusação (embora, formalmente, não haja confissão ou reconhecimento de responsabilidade) e, assim, consentir com a realização de obrigações acordadas, sem o transcorrer normal do processo para determinação da culpa por meio de produção de provas”.  VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. 2 ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 29.

[14] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020.

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