Opinião

Os limites do chamado ativismo judicial

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1 de julho de 2021, 10h34

No dia 6 de maio, o Brasil assistiu a uma trágica operação policial na comunidade do Jacarezinho, que resultou em 28 mortes. Ante o incontestável fiasco da operação, o subsecretário Operacional da Polícia Civil do Rio de Janeiro veio a público criticar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 635, colocando-a como um caso de ativismo judicial [1] (que, aparentemente, teria minado o trabalho policial). É fato que o Supremo há muito tempo deixou de ser um mero coadjuvante da vida política nacional e é, hoje, pelo contrário, um de seus principais protagonistas. E, ademais, é absolutamente natural que, nesse contexto institucional, surjam críticas e considerações a respeito da atuação do tribunal [2]. A indagação que, porém, se revela interessante (à luz justamente destas críticas de um ativismo da corte) é até que ponto esse ativismo e o controle de constitucionalidade, exercido por uma corte como o STF, caminham juntos ou não.

Nada parece mais apropriado para responder tal questão do que começar com um brevíssimo excurso pela história das Constituições e do controle de constitucionalidade. Explico. As Constituições, tal como nós usualmente as concebemos (documentos que organizam o Estado e garantem direitos e garantias fundamentais), surgiram, na história, fortemente atreladas ao pensamento do Iluminismo, que via a figura dos juízes como membros de uma nobreza de toga, com muita desconfiança e, pode se dizer, até com bastante hostilidade [3]. Como consequência lógica dessa atitude iluminista para com os juízes — e, no arranjo de separação dos poderes, com o Poder Judiciário — nas primeiras Constituições o Judiciário foi tolhido e visto como um poder menor, desimportante [4] e até mesmo "nulo" [5], como colocou Montesquieu anos antes, em 1748. Esse arranjo original, porém, durou pouco. Em 1803, a Suprema Corte estadunidense proferiu o celebre julgado do caso Marbury vs. Madison [6] (julgado este, bom ressaltar, proferido em um contexto altamente politizado) [7], declarando a supremacia da Constituição. Quase 30 anos depois, Alexis de Tocqueville, que visitou os Estados Unidos nos anos de 1830, voltou de lá com a observação de que o Judiciário era uma instituição de grande importância política [8]. Em suma, o arranjo da democracia madinsoniana falhou [9]. O fato de que (tomando por base, evidentemente, a experiência americana, que é de onde deriva, aliás, o termo ativismo judicial) em pouco mais de 40 anos as cortes saíram de um claustro institucional no qual haviam sido confinadas, pelo iluminismo, e alcançaram importância política é, sem dúvidas, importante para entender as origens do discurso do ativismo.

É fato que o pensamento político, como visto acima, coloca limites dentro dos quais o Judiciário deveria operar. O discurso de que existe um ativismo judicial, porém, não se limita ao pensamento político e busca respostas na teoria geral do Direito. E, nessa seara, são várias as respostas. Em primeiro lugar, há quem sustente, como o faz Dworkin, que a própria ideia de ativismo judicial não faz sentido [10]; e há uma clivagem interessante — ainda que hoje praticamente superada — entre os que defendem a existência de uma corte de controle de constitucionalidade (como Kelsen) e aqueles que não a defendem (como Schmitt) [11]. Evidentemente, o interesse aqui reside nos primeiros.

É entre os primeiros, na realidade, que a questão adentra na seara da teoria geral do Direito. Explico. Uma vez que são os juízes quem exercem o controle de constitucionalidade, a própria atividade dos juízes, enquanto intérpretes do texto legal, se torna problemática. Benjamin N. Cardozo, que foi juiz da Suprema Corte estadunidense, aponta, sobre o ofício do juiz, que:

"O trabalho de decidir causas se faz diariamente em centenas de tribunais de todo o planeta. Seria de imaginar que qualquer juiz descrevesse com facilidade os procedimentos que já aplicou milhares de vezes. Nada poderia estar mais longe da verdade" [12].

A perspectiva, certamente, é desalentadora. Mas é exatamente nesse contexto que surgem as mais diversas teorias sobre a interpretação: Kelsen, autor dos mais célebres entre nós, brasileiros, aponta que os intérpretes devem conter-se dentro de uma moldura [13]; Hart fala nos casos claros (para os quais há resposta) e nos casos de penumbra (para os quais não há, necessariamente, uma resposta certa) [14]; John Hart Ely, em uma célebre monografia sobre o ativismo judicial, faz uma clivagem entre autores interpretativistas (aqueles que acreditam que as decisões da Suprema Corte devem ter um fulcro claro em legislação) e não interpretativistas (aqueles que acreditam que o Judiciário deve intervir na sociedade) [15] e tenta vencer a questão fazer uma teoria sua, defendendo que a Constituição estadunidense não defende valores, mas, sim, o processo democrático (no que é extremamente criticado) [16].

Esse apanhado teórico pode parecer desinteressante, mas é ele que revela a natureza do problema do chamado ativismo judicial: os limites da interpretação. Uma vez que é praticamente pacífico, hoje, que são os juízes quem devem realizar o controle de constitucionalidade, o limite da atuação dos juízes enquanto intérpretes das normas jurídicas torna-se um problema típico de teoria geral do Direito, afastando-se gradativamente da seara do Direito Constitucional. É verdade, por outro lado, que o conteúdo das normas às quais, por exemplo, Kelsen aponta que os juízes devem se conter (sua moldura) são dadas pelo sistema político, mas isso é apenas uma parte da equação. É na violação da moldura posta pelas normas (para os que acreditam que existe tal moldura) que o ativismo reside, e esse ativismo não é restrito às normas e molduras da Constituição, mas pode dizer respeito a qualquer norma. Isso, em suma, significa que para alguém criticar uma decisão do STF como ativista, é necessário que esse indivíduo veja qualquer norma como capaz de colocar uma moldura e qualquer juiz como capaz de ir além de tal moldura, não somente o STF. Caso contrário, tal crítica perde coerência interna e, sem essa coerência, falar em ativismo não passa de um modo de desqualificar (em pseudojuridiquês) uma decisão com a qual o crítico não concorda. Ou, respondendo a questão inicialmente posta, ativismo judicial e controle de constitucionalidade não estão inexoravelmente ligados.

 


[1] GRELLET, Fábio, Entenda como foi a ação policial que resultou em 25 mortes no Jacarezinho, Estadão, 2021.

[2] É necessário pontuar, porém, que há uma evidente diferença entre a crítica e a discordância em relação a certos posicionamentos e os ataques à instituição, como, exempli gratia, um caso extremo, lançar fogos contra o prédio, tentando imitar um bombardeio. Ver OLIVEIRA, Sandy; RODRIGUES, Eduardo, Grupo dispara fogos contra prédio do STF; Toffoli fala de estímulo de integrantes do próprio Estado, Estadão, 2020.

[3] Ver SECONDAT, Charles-Louis de, De l’esprit des lois, Paris: Éditions Gallimard, 1995. Ver também, o Tratado sobre a tolerância, de Voltaire, amplamente hostil aos juízes: AROUET, François-Marie, Tratado sobre a tolerância: por ocasião da morte de Jean Calas (1763), Porto Alegre: LP&M, 2017. Ademais, ver BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016. pp. 87-93 v. 2; e ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Formação do Estado e Civilização. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

[4] O próprio Alexander Hamilton declarou que: Whoever attentively considers the different departments of power must perceive, that, in a government in which they are separated from each other, the judiciary, from the nature of its functions, will always be the least dangerous to the political rights of the Constitution […] . The judiciary, on the contrary, has no influence over either the sword or the purse; no direction either of the strength or of the wealth of the society; and can take no active resolution whatever. It may truly be said to have neither FORCE nor WILL, but merely judgment; and must ultimately depend upon the aid of the executive arm even for the efficacy of its judgments. Vide: HAMILTON, Alexander, NO. 78: The Judiciary Department, in: The Federalist Papers, Mineola, New York: Dover Thrift Editions, 2014, p. 379.

[5] Ver SECONDAT, Charles-Louis de, De l’esprit des lois, Paris: Éditions Gallimard, 1995, p. 114.

[6] Ver CORNELL LAW SCHOOL, WILLIAM MARBURY v. JAMES MADISON, Secretary of State of the United States., Legal Information Institute, disponível em: <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/5/137>. acesso em: 24 jun. 2021.

[7] Ver TUSHNET, Mark V., Constitutional Hardball, The John Marshall Law Review, v. 37, n. 2, p. 523–553, 2004, p. 538–543.

[8] Ver TOCQUEVILLE, Alexis de, Da democracia na América, Campinas: VIDE Editorial, 2919.p. 119.

[9] O termo deriva da obra de Dahl, ver DAHL, Robert A., A Preface to Democratic Theory, Chicago: University of Chicago Press, 2006. 

[10] Ver DWORKIN, Ronald, Levando os direitos a sério, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 205–234. Ver também DWORKIN, Ronald, No Right Answer, New York University Law Review, v. 53, p. 1, 1978.

[11] Ver, trabalho clássico de Schmitt defendendo que o Direito repousa em uma decisão: SCHMITT, Carl, Teologia Política, Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

[12] Ver CARDOZO, Benjamin N., A natureza do processo judicial, São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 1. Alf Ross, um autor do realismo jurídico escandinavo, coloca os juízes em uma posição central, no que tange as fontes do Direito. Vide: Alf, Direito e justiça, 2. ed. Bauru: Edipro, 2007. p. 102. 

[13] Ver KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, São Paulo: Martins Fontes, 1987. pp. 366-367.

[14] Ver HART, Herbert Lionel Adolphus, O Conceito de Direito, São Paulo: Martins Fontes, 2009, cap. VII.

[15] Ver ELY, John Hart, Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review, Cambridge, Massachusetts; London: Harvard University Press, 1980. pp. 1-7.

[16] TRIBE, L. The Puzzling Persistence of Process-Based Constitutional Theories. Yale Law Journal, v. 89, n. 6, 1 jan. 1980; POSNER, R. A. Democracy and Distrust Revisited. Virginia Law Review, v. 77, n. 4, p. 641, May 1991; TUSHNET, M. Darkness on the Edge of Town: The Contributions of John Hart Ely to Constitutional Theory. Yale Law Journal, v. 89, n. 6, 1 jan. 1980.

Autores

  • é graduando em Direito pela Universidade de São Paulo, com dupla-titulação pela Université Lumière Lyon 2, foi bolsista do CNPq e atualmente é estagiário plantonista do Departamento Jurídico XI de Agosto.

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