Opinião

Os cargos de liderança e assessoramento na reforma administrativa

Autor

  • Marinês Restelatto Dotti

    é advogada da União especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora da obra "Governança nas contratações públicas: aplicação efetiva de diretrizes responsabilidade e transparência".

1 de julho de 2021, 7h14

Com a redemocratização do país e com a exigência precípua de atingir a qualidade esperada pela sociedade como prestador de serviços e empregador, percebeu-se que era preciso dotar o Estado de um quadro permanente de servidores concursados, não sujeitos às ingerências políticas, cujo princípio do mérito fosse o critério basilar para que os cidadãos fossem investidos em cargos públicos. Estabeleceu, assim, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, inciso II, que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. Preleciona, ainda, a Constituição Federal que as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento (artigo 37, inciso V). No âmbito das organizações públicas, pois, existem as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo. Os cargos em comissão devem ser ocupados por um percentual mínimo legal de servidores de carreira, podendo-se preencher as vagas restantes por pessoas sem vínculo definitivo com a Administração Pública, ou seja, sem concurso público (são os chamados CCs), mas só para o exercício de atribuições de direção, chefia e assessoramento e nos limites fixado em lei.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32/2020, também denominada de PEC da Reforma Administrativa, que visa a alterar disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa, apresenta, como ponto central das mudanças, a forma de ingresso de novos servidores nas atividades estatais. São propostos cinco tipos de vínculo com o Estado: vínculo de experiência, por prazo determinado, cargo com vínculo por prazo indeterminado, cargo típico de Estado e cargos de liderança e assessoramento.

Referidos cargos de liderança e assessoramento corresponderão aos atuais cargos em comissão e funções de confiança previstos no inciso V do artigo 37 da Constituição Federal, e também a outras posições que justifiquem a criação de um posto de trabalho específico com atribuições "estratégicas", "gerenciais" ou "técnicas", visando, segundo a PEC nº 32/2020, a "convergir práticas da administração pública com a realidade do Brasil e do mundo contemporâneo". O desempenho de atividade "técnica" ou "estratégica" em órgão ou entidade pública deve atrair a seleção dos candidatos mais aptos a firmarem a relação jurídica estatutária ou laboral conforme o vínculo a ser encetado, o que se faz por meio de um criterioso procedimento seletivo prévio, e não por escolhas pessoais. Ainda, existindo tais cargos "técnicos" ou "estratégicos" na estrutura do órgão ou entidade pública, há de se cuidar para que o seu exercício por pessoa nomeada sem concurso público, como pretende a PEC nº 32/2020, não caracterize usurpação de função pública exercida por servidor efetivo cuja habilitação exigida para o exercício do cargo e as atribuições correspondentes foram definidas em edital de concurso público, configurando desvio de função e produzindo ônus para o Estado. É que, apesar de o cargo de liderança ou assessoramento não poder ser promovido ou reenquadrado no cargo que ocupa em desvio de função, terá ele direito a receber diferença salarial pelo desempenho das funções exercidas. É o que estabelece a Súmula 378 do Superior Tribunal de Justiça, cujo teor reproduz-se: "Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes".

No texto atual da Constituição Federal, a ocupação de cargos em comissão (preenchidos por pessoas sem concurso público) depende de lei, a qual estabelecerá as condições e os percentuais mínimos de cargos. Mas não é só. A lei que cria cargos em comissão, segundo o Supremo Tribunal Federal [1], deve observar o princípio da proporcionalidade, pois deve ser guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, sendo inconstitucional a criação de número excessivo de cargos comissionados em face do número de cargos efetivos providos.

O Tribunal de Contas da União (TCU) realizou mapeamento de riscos na contratação de cargos em comissão no âmbito dos três poderes [2], concluindo pela necessidade de enxugamento dessas funções e busca incessante de um ideal de profissionalização da Administração Pública, descomprometida de acomodações partidárias e de escolhas baseadas em relações de parentesco. De acordo com a corte de contas federal, enquanto o Poder Legislativo tem 97% de servidores sem vínculo com a Administração Pública, o Judiciário e o Executivo têm a maioria dos cargos ocupados por servidores do próprio quadro.

A PEC nº 32/2020, na forma como apresentada, proporcionará que pessoas exerçam funções de liderança e assessoramento na Administração Pública, cujo ingresso efetivar-se-á sem um procedimento seletivo prévio que assegure ampla participação dos cidadãos, em igualdade de condições (ato de cada chefe de poder disporá sobre os critérios mínimos de acesso a esses cargos), procedimento este que visa a afastar os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as instituições, num espetáculo de protecionismo de políticos e gestores que se alçam e se mantém no poder leiloando cargos públicos. Tais cargos (de liderança e assessoramento) poderão guardar o propósito de servir o político ou gestor nomeante, tornando-os manipuláveis à vontade de seus superiores, de cuja boa vontade depende sua permanência, pelo que geralmente são proclives a satisfazer-lhes as vontades, ainda quando incorretas. Ademais, como serão avaliados esses cargos? Pelos próprios políticos ou gestores nomeantes? Eleva-se a propensão a que venham a atender menos ao interesse público e mais ao do nomeante, sob pena de exoneração.

A finalidade que motivou e motiva a possibilidade de que pessoas sem vínculo com a Administração, ou seja, sem concurso público, exerçam atividades no âmbito da Administração Pública por meio de cargos em comissão (Emenda Constitucional nº 19, de 1998) ou cargos de liderança e assessoramento (PEC 32/2020) é a de estabelecer um elo entre esses agentes e os cargos providos por meio de concurso público para o aperfeiçoamento e profissionalização da Administração Pública, para o alcance de resultados ótimos, para o cumprimento dos princípios insculpidos no cabeça do artigo 37 da Constituição Federal e, ao fim, para a satisfação da sociedade. Devem, por isso, ser próprios de uma elite administrativa apta a inovar em nível gerencial e estratégico, ou seja, tais cargos devem ser dotados de excepcionais capacidades técnica e gerencial, de habilidades incomuns, superiores aos encontrados na instituição, requisitos esses que poderão, por ingerências políticas, não ser aferidos pelos nomeantes e encontrados em seus nomeados.

Ouve-se que os servidores públicos são pouco operosos e que dificilmente perdem seus cargos, razão pela qual os cargos de liderança e assessoramento, de livre nomeação e exoneração, previstos na PEC nº 32/2020, trarão energia nova e compromisso. Em verdade, a perspectiva de "carregar o piano" para o júbilo do líder ou assessor recém-chegado e que, via de regra, pouco ou nada conhece da rotina do trabalho que lhe cabe liderar ou assessorar, constitui um dos principais fatores de desmotivação dos servidores públicos concursados, conhecedores das regras e rotinas operacionais, dotados de memória institucional e desejosos em progredir na carreira.

No âmbito da governança de organizações, sem distinguir-se a natureza do órgão ou entidade pública e nem sua finalidade institucional, o ideal de profissionalização, diferentemente do proposto na PEC nº 32/2020, deve encontrar supedâneo nas seguintes medidas: a) prestação de atividades finalísticas exclusivamente por pessoas selecionadas por meio de concurso público; b) preenchimento de todos os cargos de liderança, chefia, gerência ou direção por agentes ocupantes de cargos efetivos e pertencentes à organização; c) identificação de potenciais agentes públicos vocacionados ao exercício desses cargos pelo mapeamento das competências existentes; d) criação de banco de talentos que facilite a identificação desses candidatos; e) modelo de recrutamento em perfis de competências baseados no exame da qualificação técnica, experiência, titulação, comprometimento, habilidade para motivar, integridade, disposição para compartilhar e iniciativa; f) rotatividade (alternância) periódica desses cargos, conferindo-se oportunidades a todos os agentes da instituição que preencham o modelo de recrutamento; g) gestão compartilhada, por meio da formação de grupos setorizados e capacitados, coordenados por tais cargos, definindo-se as atribuições, responsabilidades e metas para o grupo, em interação com as atribuições e responsabilidades de outros grupos afins; h) avaliação periódica dos grupos, por meio de indicadores de avaliação do cumprimento de metas individuais, associadas a metas institucionais, de modo a desenvolver cultura orientada a resultados; e i) contínua capacitação e aperfeiçoamento de agentes públicos, tanto para o desenvolvimento e qualificação de lideranças, como para funções estratégicas e do corpo técnico.

 


[1] (RE 365.368 AgR, Ricardo Lewandowski, j. 22-5-2007, 1ª T, DJ 29-6-2007; ADI 4.125, Cármen Lúcia, j. 10-6-2010, Pleno, DJE 15-2-2011; RE 1.041.210 RG, Dias Toffoli, j. 27-9-2018, Pleno, DJE 22-5-2019, Tema 1010).

Autores

  • é advogada da União, especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora da obra "Governança nas contratações públicas: aplicação efetiva de diretrizes, responsabilidade e transparência".

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