Opinião

Aplicativos ou empresas 'abutres'?

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31 de janeiro de 2021, 11h14

Começamos 2021 vivendo uma grande revisão de consciência, seja pelo ritmo questionador de uma juventude com cada vez mais voz, seja pelas mudanças por que o mundo passou — e está passando — em razão da Covid-19. Apesar disso, ainda presenciamos pessoas e argumentos que, negando tudo o que acontece no seu entorno, estão presos no passado, de uma era sem informação e sem direito a voz, como tocos de pau-brasil que, por não terem sido arrancados, acreditam estar ainda nos tempos de capitanias hereditárias.

Recentemente, li nesta ConJur um artigo que, usando a expressão criada com uma companhia aérea em benefício próprio, chama alguns aplicativos de "abutres". Esses aplicativos visariam ao "lucro fácil, ao mesmo tempo em que sujam o bom nome de corporações". Seria engraçado. Mas não é.

O que esses aplicativos, em verdade, fazem: 1) eles promovem a defesa do direito dos consumidores, na medida em que informam aos cidadãos que, uma vez lesados em seus direitos, eles podem — e, na minha opinião, devem — propor ações judiciais sempre que seus direitos forem violados; e 2) oferecem a possibilidade de esses consumidores realizarem a cessão desse possível crédito para uma empresa. Ou seja, a sociedade passa a contar com uma opção para realizar a antecipação de um recebível judicial, tal qual ela faz com verbas de 13º salário.

A cessão de créditos judiciais, como se sabe, é uma prática legal, comum, rotineira, prevista no Código Civil e, como todos sabem, existente no Brasil há muitos anos.

Mas um espírito mesquinho é como um microscópio: aumenta as pequenas coisas e o impede de ver as grandes. Acreditar que a raiz de todos os males, a razão do número de processos enfrentados por companhias aéreas, empresas de telefonia, bancos e seguradoras é decorrente do surgimento e/ou crescimento desses aplicativos é ingenuidade ou simplesmente má-fé. É repetir um discurso negacionista que tenta apontar como a raiz dos problemas não a prática indevida de determinadas empresas, mas do consumidor, que reclama por seus direitos. Se esse consumidor resolver antecipar ou não um crédito que lhe é devido, isso não muda em nada a dinâmica da relação entre empresa e consumidor.

Perceba que o exercício que se faz — de forma reiterada, registre-se — não é uma autoanálise para melhoria dos problemas. Tanto é que em nenhum momento se diz que as ações judiciais não possuem lastro com a realidade; que as ações judiciais são indevidas, ilegais ou mentirosas. Não! Do que se reclama é o número de processos oriundos de queixas legítimas!!

Por ilação, vamos culpar agora os doentes por procurarem os hospitais e vamos esquecer a falta de leitos ou a pandemia que está aí fora. Começo a desacreditar da hipótese da ingenuidade.

A função social do advogado é velar pelos direitos e pelas garantias dos cidadãos, participando de forma ativa na construção de uma sociedade mais igualitária e livre. Defender fora dos autos uma ou mais empresas que, de forma reiterada, desrespeitam os direitos dos cidadãos é deixar de cumprir essa função social. É usar o microscópio para enxergar o próprio contracheque, a despeito de milhares de pessoas terem sua bagagem extraviada, seu acesso a saúde negado indevidamente por planos de saúde ou o serviço não prestado por empresas de telefonia. Quando um advogado escreve ou defende essa bandeira, é um sinal de alerta, pois aquele que deveria zelar pelo bom cumprimento da lei, por uma sociedade justa, democrática e por ajudar os mais fracos corrompeu-se por 30 moedas de prata.

Estatisticamente, menos de 2% das pessoas afetadas por uma prática danosa de uma companhia aérea, como extravio de bagagem, não reembolso do valor pago, atraso de voo superior a quatro horas, entre outros motivos, processam as empresas. E esse percentual, graças ao maior nível de informação disponível hoje em dia, tende a aumentar.

Problemas e soluções que deveriam estar sendo debatidos: qual volume de investimentos feito na redução das queixas dos consumidores? A companhia pode, de forma proativa, indenizar seus clientes quando algo errado acontece? Não seria ótimo receber um SMS com um voucher da companhia como forma de desculpas pelo incidente? Essas demandas deveriam ser tratadas no Judiciário ou a companhia poderia resolvê-las de forma proativa, reduzindo o número de processos (são mais de 80 milhões)? Companhias com queixas repetitivas deveriam pagar multas maiores de forma a inibir um comportamento reiterado que prejudica a sociedade e o bom funcionamento do Poder Judiciário?

O número de processos nada mais é do que o fracasso das empresas em tratarem de forma correta seus clientes e consumidores. Ninguém gosta de entrar com processos judiciais, tanto pela burocracia, quanto pela demora. Mais de 76% da população brasileira avalia o Poder Judiciário como regular, ruim ou péssimo. Na Região Sudeste, esse número chega a 80% [1]. E é esse brasileiro que acorda um dia sedento por uma ação judicial nova? Com certeza não.

Práticas reiteradas de descumprimento da lei, seja por empresas privadas ou pelo poder público, lotam o Poder Judiciário, que, apesar de contar com mais de 18 mil juízes e um custo anual que supera a grotesca marca de R$ 100 bilhões [2], se mostra lento e ineficiente. Tentar culpar o consumidor e não melhorar as práticas só atrasa o processo de melhoria como um todo. Em outras palavras, atacar os sintomas da doença, como o número de processos judiciais, sem atacar a causa é querer tapar o sol com a peneira durante um verão carioca.

Por outro lado, esse tipo de reação de determinadas empresas é natural. A prática de desrespeitar a lei é algo que todos nós, brasileiros, vivenciamos em nosso cotidiano, seja com planos de saúde, companhias telefônicas, companhias aéreas, banco, entre outros setores — das dez empresas com mais queixas dos consumidores, sete são do setor financeiro e de telefonia.

Desesperados e despreparados ("sempre fizemos assim", "sempre deu certo"), ao invés de melhorar as práticas, tentam achar culpados. Como sabemos, cinco fases universais do luto são a negação, a raiva, a depressão, a negociação e aceitação.

O consolo de todos nós é saber que, após a fase da negação (fingir que o problema não existe), da raiva (os errados são os outros, os "abutres"), da depressão (ao perceber que o número de processos não vai diminuir em razão do latido de vira-latas raivosos), chegará o momento da negociação e da aceitação. As empresas, a sociedade e a Justiça aguardam por esse momento ansiosamente.

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