Opinião

Poder Judiciário e OAB precisam ter atuação firme contra 'aplicativos abutres'

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24 de janeiro de 2021, 9h14

Ordinariamente, apenas as pessoas naturais são dotadas de honra subjetiva, podendo ser ofendidas em seu íntimo, sua moral, no próprio conceito que a pessoa tem de si própria. Logo, por lhes faltar a consciência no sentido humano do termo, as pessoas jurídicas não possuem honra subjetiva, detendo a chamada honra objetiva.

A honra objetiva, por sua vez, diz respeito à imagem, ao bom nome e à credibilidade das pessoas jurídicas. Quando sofrem abalo em sua reputação, a ponto de lhes causar um prejuízo financeiro, são as empresas passíveis de sofrer danos morais, como já foi reconhecido há tempos pela Súmula 227 [1] do Superior Tribunal de Justiça. Em resumo, as pessoas jurídicas possuem a chamada honra objetiva, que, uma vez ferida, enseja o recebimento de indenização.

Pretendemos, então, discutir a possibilidade de afronta à honra objetiva das empresas, especificamente em decorrência de abuso de direito de ação, no caso de se proporem ações judiciais massificadas sem fundamento relevante, por exemplo, visando ao lucro fácil, ao mesmo tempo em que sujam o bom nome de corporações.

O abuso de direito de ação, por sua vez, pode ser constatado não apenas pelo ajuizamento de uma ação judicial, muitas vezes de forma massificada, em que não se caracteriza claramente aquele direito pretendido, usando-se o Judiciário como verdadeira loteria. O claro objetivo, desde sempre, é o recebimento de danos morais, e não a resolução do problema em si.

Outra forma mais ou menos consolidada desse abuso de direito pode ser constatada nas hipóteses em que o consumidor deixa de usar os canais prévios de atendimento ao cliente, como os SACs, ou mesmo os órgãos alternativos de defesas do consumidor, como a própria ferramenta do consumidor.gov.br, preferindo o litígio simples e gratuito antes de qualquer tentativa de resolução do problema.

Aliás, a plataforma consumidor.gov.br se trata de um grande avanço tecnológico sob a supervisão da Senacon (Secretária Nacional do Consumidor), a qual permite uma interlocução direta entre consumidores e empresas, proporcionado soluções de forma totalmente online, sem a necessidade de movimentação da máquina do Poder Judiciário, evitando de forma sadia a judicialização de conflitos que podem ser facilmente resolvidos de modo consensual, dentro dos limites da prudência e da transigência.

Todavia, essa omissão em se buscar a solução consensual dos conflitos, instigando a massificação de ações frívolas ou de cabimento duvidoso, ignorando-se a possibilidade de solução consensual, tem como fim mascarado movimentar uma gigantesca indústria de reparação de danos, formada por milhões e milhões de processos, anualmente, em todo o país.

Visando a indenizações fáceis e se esquivando da pacificação dos conflitos, uma grande massa de consumidores é induzida por terceiros, que fazem uso da tecnologia de forma nociva, criando pseudoferramentas que justamente induzem à judicialização.

Ao se promover o uso massivo do Poder Judiciário, em muitos casos, abusando do direito de ação a ponto de aviltar a imagem de empresas, seu nome, sua credibilidade no mercado, as empresas que se sentirem lesadas poderão tomar medidas legais contra tais abusos, inclusive para fins de ressarcimento por danos materiais e morais.

Um exemplo desse abuso são as condutas praticadas pelos chamados "aplicativos abutres", os quais, sob a alegação de se tratarem de civictechs — estas, sim, plataformas criadas com o propósito de beneficiar os cidadãos —, praticam a captação irregular de clientes através de mídias sociais, sempre sob a promessa de lucro fácil. Esses "aplicativos abutres", inquestionavelmente, infringem o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e massificam o Poder Judiciário com milhares de demandas sem grandes critérios.

Da mesma forma, a parte que entra numa "aventura jurídica", seduzida pelos argumentos marqueteiros dos "aplicativos abutres", pode ser acusada de cometer um ato ilícito, em linhas com o artigo 187 do Código Civil [2], cuja consequência poderá ser sua condenação por litigância de má-fé. Da mesma forma, e como já tem ocorrido em diversos tribunais, o "aplicativo abutre" que ofereceu os serviços jurídicos, incitando dolosamente esse tipo de ação, também poderá ser responsabilizado, na forma do artigo 32 do Estatuto da OAB, posto que "o advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa, respondendo solidariamente com seu cliente por lides temerárias que lesam as partes contrárias".

A massificação de ações temerárias ou de conflitos que poderiam ser resolvidos pelos canais não judiciais excede os limites impostos pelo princípio constitucional de acesso à Justiça, afrontando a boa-fé e o acesso à ordem jurídica justa, pois atrapalham todos os jurisdicionados que não tiveram alternativa de se socorrerem do Poder Judiciário. Por tabela, tais ações — divulgadas aos borbotões pelos aplicativos abutres — agridem a imagem de empresas a ponto de ofender sua honra objetiva. Em linhas gerais, essa atuação mercantil e nefasta viola diversos princípios de ordem pública.

Em termos de law and economics, a busca massificada de consumidores que poderiam tentar resolver seus conflitos por meio de canais não judiciais faz com que o custo arcado por empresas de diversos tamanhos tenha de diluir tais despesas em detrimento de outros consumidores, que, ao final da linha, acabam pagando a conta. Além disso, o número absolutamente exagerado de demandas nas cortes brasileiras, sem nenhum outro similar no globo, faz com que o custo administrativo seja arcado por todos os contribuintes.

Sem dúvida, entre todos os problemas assumidos pela máquina pública brasileira, e por toda a alquebrada iniciativa privada que ainda resiste aos problemas trazidos pela pandemia da Covid-19, não é factível que os "aplicativos abutres" continuem contribuindo com a massificação de processos que poderiam ser resolvidos pelos canais administrativos, atuando em detrimento da imagem das empresas e praticando atos privativos da advocacia, de forma absolutamente ilegal e antiética, com propagandas patrocinadas em redes sociais.

Faz-se mais do que necessária uma atuação firme do próprio Poder Judiciário e da OAB contra esse tipo de aplicativos, apontados pelas empresas atingidas em sua honra objetiva, podendo e devendo estas se valerem dos meios cabíveis para, inclusive, resguardarem-se das consequências nefastas das atuações dos aplicativos, já que a busca da sustentabilidade social e econômica é um dever de todos.

 


[1] A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.

[2] Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

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