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Kamala Harris inaugura um projeto de paz e justiça

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18 de janeiro de 2021, 8h01

“Primavera
capaz de lótus
florir"
(Beatriz H. R. Amaral, "Primeira Lua")

A eleição presidencial norte-americana realizada em 3 de novembro de 2020 assinala um momento de inegável importância na história do país, na história da civilização ocidental e na história política das democracias, inscrevendo e inaugurando uma página de igualdade de gênero, de igualdade de etnias e de revalorização da justiça, dos direitos humanos e do próprio Direito no núcleo central do governo.

Evidentemente, a presença de Kamala Harris como vice-presidente de Joe Biden é o principal fator desse marco, reconhecido e mencionado em todo o mundo, quer nos setores feministas, quer nos setores acadêmicos, na América, na Europa, na Ásia, na África e nos países da Oceania.

Uma rara conexão de fatores positivos alicerçam essa conquista, atestando-lhe a relevância. A primeira mulher eleita para o relevante cargo provém da área jurídica. Descende da mescla de etnias distintas: a indiana e a africana, ambas estranhas ao padrão anglo-saxão, fato absolutamente saudável para a reafirmação da diversidade. A ascendência indiana, asiática, provém da mãe da vice-presidente eleita, que se dedicou às ciências. E a africana, negra, provém do pai, nascido na Jamaica, professor universitário. Pensamos que, nesta altura do processo de desenvolvimento da civilização, as mencionadas características de natureza étnica nem deveriam chamar tanto a atenção como, de fato, chamam. Afinal, a era moderna se intitulou o apanágio das liberdades e das democracias. Entretanto, embora espantoso, o fato é que ainda não se implementaram, na prática, os valores de igualdade (de gêneros, de etnias, de crenças), tolerância, respeito, diversidade, dignidade, liberdade que regem, pelo menos no plano teórico, as democracias da contemporaneidade. Em nossos dias, ainda nos deparamos com elementos de barbárie que insistem numa indevida e anacrônica subsistência: resquícios de obscuridade e ignorância, divisões e posturas autoritárias cujo destino histórico deverá ser o total desaparecimento. É nosso dever, como operadores do Direito e cidadãos, conduzir o anacronismo e a obscuridade às portas de um cabal desaparecimento.

Ao iniciar a reflexão sobre o tema, duas considerações parecem-nos adequadas e oportunas. A primeira delas consiste em relembrar o significado do prenome Kamala: lótus, a flor. Em idioma hindi ou em sânscrito, o significado é flor de lótus, uma das flores mais raras e especiais, sobretudo pela origem, pois tem sua raiz na lama e pelo sentido transfigurador e construtivo que a acompanha. A etimologia ensina que a flor de lótus emerge em sua beleza e se eleva na realização de suas metas. A transformação é a elevação constituem poderes basilares do significado do prenome. Iluminadora a lição da etimologia. Evidente sua importância. A flor nasce para um destino: florescer, floris, existir, ser.

A segunda consideração reside no cerne da teoria geral de Estado, da ciência política e do Direito Público, que é o reconhecimento da valorização do princípio da alternância de poder, alternância que, aliás, tem ocorrido frequentemente nos Estados Unidos da América, com seu sistema de bipartidarismo, que acaba por propiciar ou pelo menos contribuir para  a garantia dessa alternância. Esteve no poder no último quadriênio um representante do Partido Republicano. Antes dele, fora presidente da República dos Estados Unidos da América um representante do Partido Democrata, que obteve sua reeleição. A história das décadas mais recentes mostra a alternância.

A alternância se insere harmonicamente entre as características das repúblicas e, conforme assinala Mônica Herman Salem Caggiano, pressupõe:

— A pluralidade partidária;

— A regular realização de pleitos eletivos;

— O respeitoso desempenho oposicionista.

Urge relembrar, nesse ponto, o ensinamento de Norberto Bobbio, que assevera ser a alternância a mobilidade da classe política um dos aspectos fundamentais da democracia, característica básica do regime democrático.

Portanto, independentemente do grau de avaliação de desempenho do governo que ora deixa o poder o que não constitui, evidente, nosso tema —, há de se festejar a alternância dos grupos políticos no poder em razão do que em si mesma significa, representa e materializa: a oportunidade de trabalho a políticos de diferentes matizes partidários. Por essa simples razão já se há de celebrar, portanto, o resultado da eleição de Joe Biden e Kamala Harris para presidente e vice-presidente dos Estados Unidos.

E, felizmente, isso é só o começo.

Constata-se que a primeira das razões invocadas para a celebração em todo o mundo do resultado do pleito foi a presença de uma mulher na chapa, a senadora Kamala Harris, que, dentro de alguns dias, será empossada na vice-presidência ao lado de Joe Biden para gerir a nação pelos próximos quatro anos.

A senadora Kamala Harris foi escolhida entre 12 mulheres para ocupar a vaga de candidata à vice-presidência. Ela mesma chegou a candidatar-se à presidência, externando sua disposição e vigor para gerir uma das maiores potências do mundo contemporâneo. Mas decidiu retirar sua candidatura e apoiar Biden, que a escolheu como sua companheira de chapa para a eleição presidencial de novembro. É indubitável a força que seu nome honrado e sua presença ativa trouxeram para a candidatura do democrata Joe Biden, ele mesmo ex-vice-presidente de Barack Obama. A figura de Kamala fortaleceu a candidatura de Biden, num momento de intensa onda de atividade do grupo Black Lives Matter.

O pioneirismo da vitória de uma chapa que, pela primeira vez na história norte-americana, apresenta uma mulher como candidata à vice-presidência do país é um marco que não somente agrada aos inúmeros grupos feministas, cada vez mais sólidos, dinâmicos e atuantes no mundo inteiro.

É importante destacar que a própria história pessoal de Kamala Harris a tem conduzido a outros destacados períodos de pioneirismo. Foi ela a primeira mulher negra procuradora-Geral na história do Estado da Califórnia. Foi ela, também, a segunda mulher a ocupar uma cadeira no Senado norte-americano, sendo a primeira de origem asiática.

Claras as conquistas e marcante o pioneirismo da vice-presidente eleita. Inobstante a representação de negros e mulheres haja melhorado em âmbito mundial, tanto na esfera política quanto na área da educação e no mercado de trabalho em geral, cumpre frisar que, de acordo com os dados da União Interparlamentar, somente 24% do total de parlamentares no mundo são mulheres atualmente.

No Brasil, aliás, esse índice é ainda bem mais ínfimo, alcançando 16% do total de políticos eleitos em 2018, segundo informações oficiais do Tribunal Superior Eleitoral, embora as mulheres constituam 52% da população, segundo a mesma fonte. Outros números emanados do IBGE apontam desigualdade nas universidades. O IBGE informa que 78, % dos jovens brancos entre 18 e 24 anos estão cursando o ensino superior. Na mesma faixa etária, a presença de indivíduos de etnia negra somente alcança 55,6%. As alterações ainda têm sido mínimas, embora já existam.

Outro significado de extrema relevância na eleição de Kamala Harris como vice-presidente dos Estados Unidos da América, que vai além de todas essas importantes características, é o fato de sua bem-sucedida atividade e experiência jurídica e política se sedimentar em bases sólidas: a aplicação do Direito.

Kamala Harris é uma mulher de carreira jurídica. Em suas atuações como procuradora-Geral da Califórnia e como senadora, teve sempre uma conduta firme, coerente, sólida e extremamente positiva e afirmativa no que concerne ao respeito dos valores democráticos, ao respeito à vida, à dignidade, aos direitos humanos, que constituem as bases de todo regime democrático, em qualquer parte do mundo.

Esse reconhecimento dos princípios e dos valores jurídicos verdadeiros, consagrado nas constituições das nações democráticas, prestigia a liberdade, a igualdade, a diversidade e reafirma as melhores expectativas na atuação da senadora Kamala Harris, vice-presidente eleita dos Estados Unidos, ao florescimento ético, justo e equilibrado do governo como liderança natural e legítima nascida do caldeirão de culturas e etnias deste nosso mundo.

 

Referências bibliográficas
AMARAL, Beatriz Helena Ramos. AMARAL, Elza Aparecida Ramos Amaral. Primeira Lua, São Paulo Massao Ohno Ed., 1990

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia, São Paulo, Paz e Terra, 2.000

CAGGIANO, Mônica Herman Salem. Oposição na política: propostas para uma rearquitetura da democracia. São Paulo, Angelotti, 1995

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