Opinião

A responsabilidade civil do Estado pela lesão à duração razoável do processo

Autor

  • Bruna Pereira

    é advogada pós-graduada em Penal e Processo Penal pela Escola do Ministério Público e pós-graduanda em Direito Trabalhista e Previdenciário no Centro Universitário de Brusque.

16 de janeiro de 2021, 13h18

Para o desempenho da prestação estatal da Justiça, estabeleceu-se a jurisdição como uma das funções do Estado, mediante a qual se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação das questões controvertidas.

A Constituição Federal/88 outorgou ao Poder Judiciário a missão de pacificar conflitos interindividuais, empregando um novo protagonismo ao juiz brasileiro, o de concretizar o acesso à Justiça.

Referida norma, ao prever expressamente a garantia do acesso à Justiça, de igual modo, prevê o direito à duração razoável do processo em seu artigo 5º, inciso LXXVIII, segundo o qual "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".

O acesso à Justiça deixou de ser uma tema teórico para encontrar reflexo no texto constitucional, representando um contínuo esforço do operador jurídico, no sentido de alargar a porta da justiça a todos. Nesse sentido, a função do Poder Judiciário não pode mais ser entendida, simplesmente, em assegurar o ingresso em juízo e com isso aplicar o Direito ao caso concreto.

A dita função deve revestir-se de efetividade, garantia constitucional, que decorre do princípio constitucional da eficiência, do princípio da duração razoável do processo e da celeridade, como consequência máxima do amplo acesso à Justiça.

Diante da flagrante "crise processual", danos graves e de difícil reparação podem resultar para as partes em razão demora na resolução dos processos judiciais, admitindo-se, assim, a responsabilização civil do Estado.

No Estado democrático de Direito, o acesso à Justiça não se resume ao direito de ser ouvido em juízo e obter uma resposta qualquer do órgão jurisdicional [1]. Referido direito, assegurado pelo artigo 5º, inciso XXXV. da Constituição Federal, bem como pelo artigo 3º do Novo Código de Processo Civil/2015, o acesso à Justiça ainda compreende o direito a uma tutela efetiva e justa para todos os interesses dos particulares agasalhados pelo ordenamento jurídico.

A morosidade processual estrangula os direitos fundamentais no cidadão, um juiz lento e intricado dá lugar a fenômenos de compressão de referidos direitos [2].A questão da morosidade do processo está ligada, fundamentalmente, à estrutura do Poder Judiciário e ao sistema de tutela dos direitos, uma vez que o regular funcionamento exige, de igual modo, relação adequada de juízes e o número do processo [3].

Soma-se a isso que a morosidade do processo atinge muito mais de perto aqueles que possuem menos recursos, pois a lentidão processual pode ser convertida em custo econômico adicional, proporcionalmente mais gravoso para os mais humildes [4].

Lado outro, a lentidão pode favorecer a parte economicamente mais forte em detrimento da amenos favorecida; a demora da Justiça pode pressionar os economicamente mais débeis a aceitar acordos nem sempre razoáveis [5].

O princípio da igualdade processual é transformado em coisa irrisória, diante da lentidão processual, uma vez que a morosidade gera a descrença do povo na Justiça; o cidadão se vê desestimulado de recorrer ao Poder Judiciário quando toma conhecimento da sua lentidão e dos males (angústias e sofrimentos psicológicos), que podem ser provocados pela morosidade.

Mesmo ciente das dificuldades para uma possibilidade efetiva de acesso à ordem jurídica justa, o interessado — requerente — tem direito a uma Justiça que lhe garanta uma resposta dentro de prazo razoável.

O Novo Código de Processo Civil, além de prever procedimentos diferenciados ao lado do procedimento comum, introduziu várias técnicas processuais no procedimento comum capazes de moldar o processo às necessidades do direito material [6].

Cabe assim ao julgador adoção de técnicas processuais que viabilizem a prestação da tutela jurisdicional dos direitos em prazo razoável, a exemplo:

"Previsão de julgamento antecipado parcial de mérito, art 356 CPC, e a previsão de aproveitamento sempre que possível das formas processuais, arts. 188, 276, 277 e 282, §1º, CPC), a edição de legislação que reprima o comportamento inadequado das partes em juízo (litigância de má-fé e contempto of court, arts. 77 e 79 a 81, CPC) e regulamente minimamente a responsabilidade civil do Estado por duração não razoável do processo; ii) ao administrador judiciário, a adoção de técnicas gerenciais capazes de viabilizar o adequado fluxo dos atos do processuais, bem como organizar os órgãos judiciários de forma idônea (número de juízes e funcionários, infraestrutura e meios tecnológicos); e iii) ao juiz, a condução do processo de modo a prestar a tutela jurisdicional em prazo razoável, inclusive com a adoção de técnicas de gestão capazes de dispensar intimações para a prática de atos processuais (calendário processual, art. 191 CPC) e com a adoção de uma ordem cronológica para julgamento das causas, (art. 12, CPC), a possibilidade de calendarização do procedimento (art. 191 do CPC), distribuição adequada do ônus da prova, inclusive com a possibilidade de inversão (art. 373 do CPC)" [7].

A tutela jurisdicional tem de ser efetiva, imposição que respeita aos próprios fundamentos do Estado constitucional, sendo que a força normativa do Direito fica combalida quando esse carece de atuabilidade [8]. Já a efetividade compõe o princípio da segurança jurídica — um ordenamento jurídico só é seguro se há confiança na realização do Direito que se conhece. A efetividade da tutela jurisdicional diz respeito ao resultado do processo [9].

O Poder Judiciário finalizou o ano de 2018 com 78,7 milhões de processos em tramitação, aguardando alguma solução definitiva. Desses, 14,1 milhões, ou seja, 17,9% estavam suspensos, sobrestados ou em arquivo provisório, aguardando alguma situação jurídica futura.

Dessa forma, desconsiderados tais processos, tem-se que, em andamento, ao final do ano de 2018 existiam 64,6 milhões ações judiciais. Os dados por segmento de justiça demonstram que o resultado global do Poder Judiciário reflete quase diretamente o desempenho da Justiça estadual, com 80% dos processos pendentes.

Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça, mesmo que não houvesse ingresso de novas demandas e fosse mantida a produtividade dos magistrados e dos servidores, seriam necessários aproximadamente dois anos e seis meses de trabalho para zerar o estoque.

Em média, a cada grupo de cem mil habitantes, 11.796 ingressaram com uma ação judicial no ano de 2018. Nesse indicador, são computados somente os processos de conhecimento e de execução de títulos extrajudiciais, excluindo, portanto, da base de cálculo as execuções judiciais iniciadas.

O tempo médio do acervo do Poder Judiciário é de quatro anos e dez meses. É indiscutível que o processo judicial brasileiro, com sua estrutura ritual, não dá conta da complexidade das demandas e muito menos consegue oferecer respostas satisfatórias à população em suas necessidades.

Outrossim, a Justiça encerrou 2019 com 77,1 milhões de processos em tramitação, ao passo que a previsão é de que até o final de 2020, a Justiça deve chegar à marca de 114,5 milhões de processos em tramitação.

O processo judicial tornou-se um verdadeiro calvário para aquele que teve o direito violado, tomado por uma sensação de impotência e injustiça.

Esse estado de coisas leva à cínica e mui conhecida proposição: mais vale um mau acordo do que uma boa demanda. Toda disputa judicial traz sofrimento; não há boa demanda. Geralmente, só há bom acordo para os patifes e aproveitadores; quase todo acordo é uma violência contra aquele que tem o amparo do direito. Inobstante, onde só há Poder Judiciário, mas não há Justiça, tem de haver acordo [10].

O cidadão, mesmo lesado no seu direito, submete-se ao acordo para minorar aquele sofrimento. Desse cidadão não se há de exigir respeito e apreço às instituições judiciárias, sem que se cometa outra violência contra a dimensão moral de sua personalidade.

O direito a um processo efetivo é garantia constitucional, e decorre do princípio constitucional da eficiência, do princípio da duração razoável do processo e da celeridade, como consequência máxima do amplo acesso à Justiça.

A inobservância da razoável duração processual acabe por infringir, ainda, o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, segundo Novelino [11] representa o valor constitucional supremo que irá informar a criação, a interpretação e a aplicação de toda a ordem normativa constitucional, sobretudo, o sistema de direitos fundamentais.

Com efeito, danos graves e de difícil reparação podem resultar para as partes em razão da negligência do juiz no cumprimento do seu dever ao retardar injustificadamente a marcha processual, admitindo-se a responsabilização civil do Estado.

Nesse sentido, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1383776/AM, ocorrido em 6/9/2018, em acórdão relatado pelo ministro Og Fernandes, decidiu que a demora excessiva para proferir uma decisão determinando a citação do devedor, em processo de execução, violou a garantia constitucional da duração razoável do processo.

Procedimentalmente, a ação visando a indenização pela demora excessiva do processo segue o procedimento comum e deve ser proposta em primeiro grau de jurisdição, em face da União, perante a Justiça federal, ou em face do Estado, perante a Justiça estadual.

No caso da denegação de justiça em sentido estrito, ocorrendo o perecimento do direito, já seria possível o ajuizamento da ação. Mesmo que o perecimento possa autorizar a extinção do processo sem julgamento do mérito, não é necessário aguardar o trânsito em julgado, bastando a consolidação do dano.

Em relação à morosidade, seria um contrassenso o jurisdicionado ter de esperar o encerramento do processo para tal, pois se o dano ocorre justamente da indevida delonga em se proferir a decisão final ou em se satisfazer a pretensão reconhecida, não faz sentido aguardar esse momento que não se concretiza [12].

Referente ao prazo prescricional, a ação de responsabilidade do Estado prescreve em cinco anos, conforme dispõe o artigo 1º-C, da Lei nº 9.494/97, e o Decreto 20.910/32.

Nesse viés, o termo a quo da contagem desse prazo poderá variar conforme a espécie de omissão judicial. Tratando-se de caso de denegação de Justiça, conta-se do dano naturalmente. No caso da morosidade, embora o encerramento do processo não seja exigível para o ajuizamento da ação, não correrá a prescrição enquanto não encerrado (inclusive a fase satisfativa).

Em relação à ação regressiva do Estado em face do agente, aplica-se o artigo 37, §5º, que estabelece ser ela imprescritível.

Por sua vez, o Código de Processo Civil/2015, em seu artigo 143, prevê que o juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude e recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte, cabendo neste caso, requerimento da parte para que sejam determinadas a providências necessárias ao prosseguimento do feito e o requerimento não for apreciado no prazo de dez dias.

Assim, violado o direito à razoável duração do processo, incluída a atividade satisfativa, o Estado, configurada a ineficiência do serviço judiciário, não pode permanecer impune pela demora injusta no cumprimento da tutela efetiva, devendo com suporte no artigo 37 da Constituição Federal ressarcir o titular do direito subjetivo lesado ou ameaçado.

 


[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 57.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.74.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. p. 33.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. p. 34.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. p. 35.

[5] MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. p. 35.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. O novo processo civil. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2015. p.169.

[7] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. O novo processo civil. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2015. p.145/151.

[8] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. O novo processo civil. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2015. p.261.

[9] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. O novo processo civil. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2015. p.261.

[10] LIMA, Antonio Sebastião de. A crise do Poder Judiciário no Brasil. [S.l.]. Disponível em: <http://minha_tribuna.tripod.com/art04.htm> Acesso em: 14 nov. 2019.

[11] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6.ed. São Paulo: ed. Método, 2012. p. 379.

[12] MACERA, Paulo Henrique. Responsabilidade do Estado por omissão judicial. 2015. 265 f. Tese (Mestrado em Direito). Universidade de São Paulo, São Paulo. 2015.

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  • é advogada, pós-graduada em Penal e Processo Penal pela Escola do Ministério Público e pós-graduanda em Direito Trabalhista e Previdenciário no Centro Universitário de Brusque.

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