Contas à vista

Riscos fiscais do 'quer que eu faça o quê?' e do 'não consigo fazer nada'

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12 de janeiro de 2021, 8h03

Há tantas agendas fiscais em suspenso que a transição de 2020 para 2021 parece inconclusa. Evitar o planejamento e preterir a execução tempestiva de soluções são opções de quem nega, direta ou indiretamente, a própria existência de problemas.

Spacca
Saímos do regime excepcional do orçamento de guerra, dado pela Emenda 106/2020, para uma suposta retomada plena do Novo Regime Fiscal dado pela Emenda 95/2016. Trata-se de uma equivocada escolha quanto à não prorrogação da vigência temporal da calamidade decorrente da pandemia da Covid-19.

Em 20 de março de 2020, quando o Congresso editou o Decreto Legislativo nº 6, a projeção da duração da calamidade até 31 de dezembro era aparentemente razoável. A dinâmica dos fatos, contudo, contradisse aquela estimativa. Ao invés de reajustá-la, nossos agentes políticos escolheram adiar a busca de soluções no nível central, como se a mera postergação decisória fosse capaz de eliminar, por passe de mágica, os problemas persistentes.

A dispersão de soluções erráticas e conflitantes na federação potencializa a dinâmica da crise, retroalimentando-a em ciclo vicioso cada vez mais fúnebre. A falta de coordenação nacional gera um ambiente de "salve-se quem puder", cuja expressão máxima pode ser visualizada na gestão das vacinas.

Em entrevista à Folha, o professor Gonzalo Vecina Neto bem sintetizou nossa incapacidade de ordenar legitimamente a fila das vacinas como um impasse típico de uma sociedade pouco civilizada:

"Por que a sociedade não está mobilizada contra essas desigualdades na pandemia? Por um lado, há um certo anestesiamento da sociedade. Por outro, tem um clima de salve-se quem puder. Não me interessa quem se salvará desde que eu esteja na primeira fila. É uma sociedade pouco civilizada.
Eu não consigo enxergar uma coisa dessas acontecendo na Europa. No entanto, aqui no Brasil, isso é quase uma normalidade. Tenho certeza de que algumas pessoas vão dizer que estou falando bobagem: 'Como o Gonzalo, uma pessoa de bom senso está contra isso, que parece tão positivo'. Ou seja, dar a vacina para quem eu conseguir dar e não para quem deve receber. Mas essa é a regra de uma sociedade não civilizada, que a gente tem que evitar. É a regra da imoralidade, é não ética".

Eis o contexto em que entramos em 2021, com um quadro agravado de contaminações e mortes decorrentes da Covid-19. A doença progride geometricamente, sob risco de transmissão ainda mais veloz (dada a mutação do vírus), sem que haja amplo e célere plano de cobertura vacinal, nem custeio suficiente para prover segurança alimentar aos cidadãos mais vulneráveis (dada a descontinuidade da renda básica emergencial), tampouco garantia de sustentação mínima da atividade econômica.

O contexto pandêmico análogo à guerra persiste na vida real, mas nossos agentes políticos federais simplesmente decidiram ignorá-lo, supondo que os problemas sanitários, econômicos e sociais iriam se resolver sozinhos com o decurso do tempo.

A trágica superação da marca de 200 mil mortos atesta inequivocamente o fracasso da estratégia. A palavra improviso define bem a realidade brasileira, na medida em que o dicionário lhe define como aquilo "que é feito sem nenhuma preparação ou ensaio prévio" [1], porque lida com o que era imprevisto.

Obviamente, administrar é diferente de improvisar. Diagnosticar fragilidades e tensões, antecipar riscos, definir metas e traçar prognósticos são ações que impõem vigilância e racionalidade estratégica. Reagir aos fatos já consumados e apenas empurrar os problemas adiante são atitudes dotadas de baixo nível de racionalidade gerencial.

Se no início de 2020 a calamidade decorrente da Covid-19 demandou soluções iniciais de improviso, o mesmo não se pode dizer em relação a 2021. É preciso planejar, coordenar, executar tempestivamente conforme o planejado e prestar contas dos custos incorridos em face dos resultados alcançados, sob pena de ampliar o risco de colapso sistêmico nas searas sanitária, econômica e social.

Todavia, entre o dever-ser da gestão racional da crise e a realidade brasileira tendente ao caos, infelizmente temos sido levados a suportar a alegada inevitabilidade do caos, a pretexto de uma controversa tese de impossibilidade fiscal.

A gestão da realidade persistentemente calamitosa tem sido feita por meio de tentativa-e-erro, sobretudo com a busca de maior discricionariedade alocativa por parte do Executivo federal.

É sintomático, por sinal, o veto [2] a um significativo rol de despesas que estavam inscritas no anexo de despesas não suscetíveis de contingenciamento, na forma do artigo 9º, §2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal. O Anexo III da Lei de Diretrizes Orçamentárias da União para o exercício financeiro de 2021 (Lei 14.116, de 31 de dezembro de 2020) traz consigo a essência prática do que seria o mínimo existencial em matéria fiscal. Entre as despesas vetadas, destacamos, em especial:

"Inciso LXX da Seção I e incisos X a XXII, XXIV ao LXIV e LXVI a LXVIII da Seção III do Anexo III – DESPESAS QUE NÃO SERÃO OBJETO DE LIMITAÇÃO DE EMPENHO, NOS TERMOS DO ART. 9º, § 2º, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 101, DE 4 DE MAIO DE 2000 – LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL – LRF
[…] XI – Despesas relacionadas com o combate à pandemia da COVID-19 e o combate à pobreza;
XII – Despesas relativas à execução de programas de aquisição e distribuição de alimentos a grupos populacionais vulneráveis;
[…] XIV – Despesas com as ações destinadas à implementação de programas voltados ao enfrentamento da violência contra as mulheres;
[…] XVII – Programa de Aquisição de Alimentos (PAA);
XVIII – Demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos;
XIX – Ação 212H – Manutenção de Contrato de Gestão com Organizações Sociais (Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998);
[…] XXII – Despesas com as Ações vinculadas às subfunções Difusão do Conhecimento Científico e Tecnológico, Desenvolvimento Tecnológico e Engenharia, no âmbito da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA, da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e das subfunções de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e de Ordenamento Territorial, no âmbito do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE;
[…] XXV – Despesas com as ações vinculadas às funções Educação, Saúde, Assistência Social e à subfunção Alimentação e Nutrição;
XXVI – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB (Emenda Constitucional nº 108, de 26/08/2020);
XXVII – Despesas com as ações vinculadas a subfunção 365 – Educação Infantil;
XXVIII – Despesas com as ações vinculadas ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS);
XXIX – Despesas relacionadas com o Programa Educação Básica de Qualidade;
XXX – Despesas relacionadas com o Programa Educação Profissional e Tecnológica;
XXXI – Despesas com as ações de Educação Básica, Profissional e Tecnológica no âmbito do Ministério da Educação;
XXXII – Ampliação do acesso da população ao Sistema Único de Saúde – SUS;
[…] XXXIV – Despesas destinadas a ações e serviços públicos de saúde, de que trata a Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012;
XXXV – Despesas com Ações de Infraestrutura e Apoio ao Desenvolvimento da Educação Básica;
XXXVI – Despesas com as ações vinculadas à Transferências de Renda;
XXXVII – Despesas com ações vinculadas à produção e disponibilização de vacinas contra o coronavírus (Covid-19) e a imunização da população brasileira;
XXXVIII – Despesas com as programações do IBGE relacionadas à realização do Censo 2020;
XXXIX – Despesas com as ações destinadas à implementação de programas voltados para idosos e com as Instituições de Longa permanência para idosos (ILPIs);
XL – Despesas com as ações destinadas à implementação de programas voltados para crianças e adolescentes e do Programa Primeira Infância;
XLI – Despesas relacionadas com o Programa Empregabilidade;
[…] LXI – Despesas vinculadas as ações destinadas à Prevenção e Combate e Controle do Desmatamento, Queimadas e Incêndios Florestais;
[…] LXIII – Pronampe – Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Programa 0909 – Operações Especiais: Outros Encargos Especiais);
[…] LXVI – Despesas destinadas às ações destinadas à promoção da igualdade de gênero, ao enfrentamento à violência contra a mulher e contra defensores de direitos humanos;
[…]
Razões dos vetos
Os itens propostos não são passíveis de limitação de empenho, o que, por consequência, reduz o espaço fiscal das despesas discricionárias, além de restringir a eficiência alocativa do Poder Executivo na implementação das políticas públicas. Ademais, a inclusão de despesas não passíveis de contingenciamento contribui para a elevação da rigidez do orçamento, dificultando não apenas o cumprimento da meta fiscal como a observância do Novo Regime Fiscal, estabelecido pela EC nº 95/2016 (teto de gastos), e da Regra de Ouro, constante do inciso III, do artigo 167 da Constituição Federal. Ressalta-se que o não cumprimento dessas regras fiscais, ou mesmo a mera existência de risco de não cumprimento, poderia provocar insegurança jurídica e impactos econômicos adversos para o País, como a elevação de taxas de juros, a inibição de investimentos externos e a elevação do endividamento.
A exclusão de quaisquer dotações orçamentárias do cálculo da base contingenciável, dado o aumento do rol de despesas que compõem a seção I do Anexo III, traz maior rigidez para o gerenciamento das finanças públicas, especialmente no tocante ao alcance da meta de resultado primário. […] Nesse sentido, entende-se que ressalvar as despesas relacionadas, da limitação de empenho, contraria o interesse público".

O elenco acima vetado guarda correlação profunda com a noção de impositividade orçamentária, em consonância com o artigo 165, §10, da Constituição de 1988. Ora, o Congresso Nacional almeja que o Executivo cumpra o planejamento setorial das políticas públicas e que priorize, de fato, o que já fora definido constitucional e legalmente como prioridade. Basta administrar conforme o planejado, ao invés de dar causa a soluções improvisadas.

Tais vetos, porém, se somam ao quadro paradoxal de inépcia confessada pelo próprio chefe do Executivo federal. A frase "eu não consigo fazer nada", dita em 5 de janeiro, repete a lógica da frase "e daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?", dita em 28 de abril de 2020.

Se improvisos se acumulam temerariamente e se adiar se tornou uma forma de administrar o caos sanitário, econômico e social, a rejeição dos vetos acima à LDO-2021 pelo Congresso parece-nos uma forma de restabelecer a racionalidade gerencial em meio à pandemia.

Que o início da sessão legislativa ordinária do Congresso Nacional em 2 de fevereiro traga consigo tal agenda de retomada nuclear das nossas incontestáveis prioridades fiscais, a partir do rol de despesas ressalvadas do contingenciamento.

Tal proteção se faz absolutamente necessária, sob pena de incorrermos em consideráveis riscos decorrentes do voluntarismo de quem alega não saber o que fazer, tanto quanto sustenta não conseguir fazer nada.

Soa, pois, incoerente que se pretenda obter maior discricionariedade alocativa nesse contexto, exatamente quando não se sabe ou não se consegue administrar, como se deveria a maior crise sanitária, econômica e social que o país enfrenta em décadas.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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