Ambiente Jurídico

A intervenção do MP em ações cíveis envolvendo o patrimônio cultural

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

9 de janeiro de 2021, 8h01

Com o advento da Constituição Federal vigente, promulgada em 1988, alcançamos o mais alto degrau na evolução normativa de proteção constitucional ao patrimônio cultural de nosso país.

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Uma das inovações trazidas pelo texto constitucional foi o alargamento do rol dos instrumentos de proteção ao patrimônio cultural, mediante uma enumeração meramente exemplificativa estabelecida no artigo 216, §1º, de sorte que qualquer instrumento que seja apto a contribuir para a preservação dos bens culturais em nosso país (mesmo que não se insira entre aqueles tradicionais, a exemplo do tombamento) encontrará amparo no artigo 216, §1º, parte final, da CF/88.

Com efeito, a Constituição instituiu o princípio da não taxatividade dos instrumentos de proteção do patrimônio cultural brasileiro. Por isso, no caso de omissão dos Poderes Executivo e Legislativo acerca da proteção e preservação do patrimônio cultural brasileiro, o Poder Judiciário poderá ser acionado para efetivar a correção, sem que se fale em ingerência indevida, pois o dever de agir a tal respeito toca ao poder público como um todo e nenhum tipo de lesão ou ameaça a direito poderá ser suprimida da apreciação judicial, nos exatos termos preconizados pela Constituição Federal em seus artigos 5º, XXXV, 23, III e IV e 216, §1º.

Verifica-se que a Constituição tutela o direito à proteção e fruição do patrimônio cultural sob a forma de interesse difuso (necessidade comum a conjuntos indeterminados de indivíduos), que somente pode ser satisfeita numa perspectiva comunitária, uma vez que o patrimônio cultural, enquanto valor inapropriável e indisponível, pertence a todos ao mesmo tempo em que não pertence, de forma individualizada, a qualquer pessoa. Trata-se, ademais, de um direito indisponível, imprescritível e intergeracional.

Ademais, a Constituição Federal previu dois instrumentos processuais aptos à defesa do patrimônio cultural: a ação popular (artigo 5º, LXXIII) e a ação civil pública (artigo 129, III), e outorgou ao Ministério Público a missão de defesa do ordenamento jurídico brasileiro, bem dos direitos individuais indisponíveis e difusos (artigo 127, caput), entre os quais se encontra o direito ao patrimônio cultural hígido (corolário da própria dignidade da pessoa humana e da cidadania, que são fundamentos da República Federativa do Brasil).

O Supremo Tribunal Federal, a propósito, acolhe expressamente a natureza fundamental e difusa do direito ao patrimônio cultural, já tendo tido a oportunidade de consignar que: "A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representou um marco evolutivo em termos de reconhecimento e proteção jurídica do patrimônio cultural brasileiro. Reconheceu-se, a nível constitucional expresso, a necessidade de tutelar e salvaguardar o patrimônio histórico-cultural, enquanto direito fundamental de terceira geração, isto é, de titularidade difusa, não individualizado, mas pertencente a uma coletividade" (STF; RE-AgR 1.222.920; SC; Segunda Turma; Rel. Min. Ricardo Lewandowski; Julg. 20/03/2020; DJE 31/03/2020; Pág. 97).

Destarte, resta evidente que quando o Ministério Público não figurar como o autor de ações cíveis envolvendo bens culturais, a sua intervenção como fiscal da ordem jurídica será sempre obrigatória em razão da presença de evidente interesse público na lide, hipótese expressamente prevista no artigo 178, I, do Novo Código de Processo Civil [1].

Em se tratando de ação civil pública ou ação popular, não existem maiores divergências sobre a necessidade da intervenção ministerial como custos iuris, pois há previsão legal expressa sobre o assunto no artigo 5º, §1º, da Lei 7.347/85 e no artigo 6º, §4º, da Lei 4.717/65, respectivamente.

A não intimação do órgão do Ministério Público para atuar no feito implica nulidade do processo, nos termos do artigo 279 do NCPC [2].

Sobre o tema, vejamos o entendimento da jurisprudência:

"AÇÃO POPULAR. INTERVENÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. OBRIGATORIEDADE. AUSÊNCIA. NULIDADE PROCESSUAL EVIDENCIADA. LESIVIDADE AO PATRIMÔNIO CULTURAL E HISTÓRICO. LEGALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO. QUESTÕES AFETAS AO MÉRITO QUE DEMANDAM A INSTRUÇÃO PROBATÓRIA. Denota-se obrigatória a intervenção do Ministério Público na ação popular ajuizada para tutelar o direito ao patrimônio cultural e histórico público municipal. Neste contexto, a ausência da intervenção obrigatória do Ministério Público, questão essa objeto de arguição pelo aludido órgão de execução, nesta instancia recursal, constituem fundamentos aptos para a declaração da pretendida nulidade processual, notadamente diante do potencial prejuízo do aludido direito indisponível" (TJ-MG; AC-RN 1.0024.14.111113-8/001; Rel. Des. Paulo Balbino; Julg. 19/5/2016; DJEMG 03/06/2016).

Entretanto, a questão ganha maior complexidade quando o interesse envolvendo o patrimônio cultural mostra-se presente em ações outras, como as de nulidade de ato administrativo, desapropriação, usucapião etc.

Entendemos que a análise da necessidade de intervenção ministerial em ações de tal natureza não pode se dar de forma automática, mecânica, com base no simples nomen iuris atribuído à ação manejada, sob pena de renúncia à missão constitucional de defesa dos direitos difusos outorgada ao Parquet e consequente frustração do dever de tutela dos bens culturais confiado pela Carta Magna ao Ministério Público.

Com todo o respeito aos que esposam pensamento diverso, entendemos que a racionalização da atuação do Ministério Público no processo civil demanda análise concreta de cada situação levada à apreciação do Poder Judiciário, sendo temerárias, a nosso sentir, assertivas e orientações que excluem a necessidade de intervenção ministerial de forma genérica, ex ante.

A título de exemplo, podemos citar a intervenção do Ministério Público em ações de usucapião de bens móveis, considerada desnecessária e insignificante por muitos com base no simples nome atribuído à ação, que, na maioria das vezes, versa, de fato, sobre direitos patrimoniais disponíveis e de pequena monta.

Contudo, é preciso destacar que hodiernamente muitos detentores de bens culturais retirados ilicitamente de seus locais de origem, sobretudo peças sacras coloniais tombadas, como esculturas mineiras de Aleijadinho e pinturas de Mestre Ataíde (que são avaliadas em altos montantes e servem, não raras vezes, para lavagem de dinheiro), têm se valido do Poder Judiciário para chancelar, à margem da lei, a aquisição de tais coisas consideradas legalmente como fora do comércio por meio de ações de usucapião, com severos reflexos negativos em detrimento dos direitos titularizados pela sociedade.

Também em sede de ações desapropriatórias, não nos parece correto o juízo de valor preconcebido de que nelas não há necessidade de intervenção ministerial, pois não é incomum que o feito, em sua dimensão concreta, verse sobre bens detentores de destacado valor cultural e que exigem a minuciosa e escorreita análise do Ministério Público no cumprimento de sua missão constitucional, como já decidido pelo STJ e pelo TJ-MG:

"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL. CRIAÇÃO DE RESERVA EXTRATIVISTA. FAIXA DE FRONTEIRA. INTERESSE PÚBLICO INEQUÍVOCO. PARTICIPAÇÃO OBRIGATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ART. 82, III, DO CPC. 1. É facultativa a intervenção do Ministério Público em ação de desapropriação simples, ou seja, quando a matéria de fundo for apenas de aplicação dos critérios de expropriação estabelecidos na Lei. Precedentes do STJ. 2. Se a ação de desapropriação envolver, frontal ou reflexamente, a proteção do meio ambiente, patrimônio histórico-cultural, improbidade administrativa ou outro interesse público para o qual o legislador tenha afirmado a legitimação do Ministério Público na sua defesa, a intervenção do Parquet é de rigor, inclusive com base no artigo 82, III, do Código de Processo Civil. 3. A intervenção obrigatória, como custos legis, do Ministério Público, nesses casos de desapropriação direta ou indireta, não se dá por conta da discussão isolada da indenização pelo bem expropriado, mas em virtude dos valores jurídicos maiores envolvidos na demanda, de índole coletiva e, por vezes, até intergeracional, que vão muito além do simples interesse econômico-financeiro específico do Estado. 4. Há "interesse público evidenciado pela natureza da lide" (artigo 82, III, do CPC) na criação de Unidade de Conservação, sobretudo em Unidade de Uso Sustentável, como é o caso da Reserva Extrativista (artigo 14, IV, da Lei nº 9.985/2000). Isso decorre, sobretudo, do fato de que tal área é de domínio público e de que seu uso é "concedido às populações extrativistas tradicionais" (artigo 18, § 1º, da mesma Lei). 5. Como se não bastasse, a área em questão está localizada em faixa de fronteira, que, nos termos do artigo 20, § 2º, da CF, "é considerada fundamental para a defesa do território nacional". Evidente, pela mesma razão, o interesse público na demanda, a atrair a participação obrigatória do Parquet. 6. Recurso Especial do Ministério Público provido. Recurso Especial do IBAMA prejudicado" (STJ; REsp 1.182.808; Proc. 2010/0036968-1; AC; Segunda Turma; Rel. Min. Herman Benjamin; Julg. 7/12/2010; DJE 4/5/2011).

"Existentes indícios de que o bem imóvel objeto de Ação de Desapropriação possui valor histórico-cultural, além de salvaguardado como Unidade de Proteção Integral, necessária oitiva prévia dos órgãos competentes, sob pena de degradação irreversível da área.- A existência de interesses à proteção ao patrimônio histórico-cultural e ao meio ambiente diretamente ligados à desapropriação justifica a intervenção obrigatória do Ministério Público, nos termos do artigo 25, IV e V da Lei nº 8.625/1993 e do artigo 178 do Código de Processo Civil" (TJ-MG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.19.056344-5/001, Relator(a): Des.(a) Ângela de Lourdes Rodrigues , 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 10/10/0019, publicação da súmula em 15/10/2019).

Por derradeiro, é preciso deixar claro que a intervenção ministerial como custos iuris em ações envolvendo bens culturais não deve se resumir a uma formal e asséptica manifestação, sem compromisso com a tutela do direito que fundamenta a própria atuação do Ministério Público no feito, sob pena de apequenamento e inutilidade da instituição à qual a Constituição conferiu a defesa dos direitos da coletividade, e que não pode se comportar como uma inerte observadora da realidade social, que reclama e necessita de sua atuação efetiva.

Consoante leciona, com costumeira propriedade, o mestre Hugo Nigro Mazzilli sobre o tema [3]:

"O papel do Ministério Público não se confundirá com o juiz: atua mal o membro do Ministério Público que procura comportar-se como um minijuiz, ou que, invocando a velha concepção de mero fiscal da lei, só contempla o que está ocorrendo dentro do processo e, ao final, dá um parecer como mero e desnecessário assessor jurídico do juiz. Na verdade, o papel do Ministério Público — seja enquanto órgão agente ou interveniente será o de concorrer de maneira eficiente para a defesa do interesse público cuja existência justificou seu ingresso nos autos".

Enfim, mostra-se como indeclinável a necessidade de intervenção ministerial em todos os feitos cíveis (sendo desimportante o nomen iuris a eles atribuídos) que versam sobre bens móveis ou imóveis portadores de referência à ação, à identidade e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, estejam previamente protegidos ou não, pois eles constituem patrimônio cultural brasileiro, cujo direito de fruição pertence às presentes e às futuras gerações.

 


[1] Artigo 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: I – interesse público ou social.

[2] Artigo 279. É nulo o processo quando o membro do Ministério Público não for intimado a acompanhar o feito em que deva intervir.

[3] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 93.

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