Prática Trabalhista

A decisão do Supremo e a dispensa de PCDs na Covid-19

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Filipe Rodrigues Costa

    é advogado trabalhista na Companhia de Tecnologia da Informação do Estado de Minas Gerais (Prodemge) e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

7 de janeiro de 2021, 8h01

Em meados de fevereiro de 2020, o Brasil iniciava sua batalha contra o denominado novo coronavírus. Com o objetivo de possibilitar a adoção de medidas para o enfrentamento da pandemia, a Presidência da República sancionou a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro.

"Artigo 1º — Esta Lei dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
§1º. As medidas estabelecidas nesta Lei objetivam a proteção da coletividade.
§2º. Ato do Ministro de Estado da Saúde disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública de que trata esta Lei.
§3º. O prazo de que trata o § 2º deste artigo não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial de Saúde".

Posteriormente, o Congresso Nacional promulgou o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março, por meio do qual reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública em todo o território nacional com efeitos até 31 de dezembro.

"Artigo 1º — Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do artigo 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no artigo 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o artigo 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020".

A Presidência da República também sancionou a Lei nº 14.020, de 6 de julho, que dispõe sobre o denominado Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, regulamentando as medidas complementares para o enfrentamento da pandemia da Covid-19.

"Artigo 1º — Esta Lei institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020".

No que tange ao objeto específico deste artigo, o artigo 17 da Lei nº 14.020/2020 veda a dispensa do empregado com necessidades especiais enquanto durar o estado de calamidade pública.

"Artigo 17  Durante o estado de calamidade pública de que trata o artigo 1º desta Lei:
(
…)
V – a dispensa sem justa causa do empregado pessoa com deficiência será vedada".

Ocorre que o Congresso Nacional não cuidou de prorrogar o prazo de reconhecimento do estado de calamidade pública em todo o território nacional.

Lado outro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski deferiu parcialmente a cautelar requerida nos autos da ADI 6.625 MC/DF, conforme trecho abaixo transcrito:

"(…) Em face do exposto, defiro parcialmente a cautelar requerida, ad referendum do Plenário desta Suprema Corte, para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 8° da Lei n° 13.979/2020, com a redação dada pela Lei 14.035/2020, a fim de excluir de seu âmbito de aplicação as medidas extraordinárias previstas nos arts. 3°, 3°-A, 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E, 3°-F, 3°-G, 3°-H e 3°-J, inclusive dos respectivos parágrafos, incisos e alíneas. (…)" [1].

Na prática, essa decisão prorrogou o prazo de vigência apenas de alguns artigos da Lei nº 14.020/2020, entre os quais não se incluiu o artigo 17.

Essa situação fez nascer a seguinte dúvida: os empregados com deficiência podem ser dispensados de forma imotivada a partir de 1º de janeiro de 2021?

A intepretação literal conduz à conclusão da possibilidade da dispensa imotivada de pessoas com deficiência, em razão do término do estado de calamidade pública no dia 31 de dezembro, uma vez que a cautelar deferida pelo ministro Ricardo Lewandowski não incluiu o artigo 17 da Lei nº 14.020/2020.

Lado outro, entendemos que há outra forma de interpretar a questão. Apresentamos abaixo dois fundamentos juridicamente plausíveis, e que devem ser analisados de forma conjunta para a defesa da manutenção da impossibilidade da dispensa de pessoas com deficiência.

O primeiro fundamento refere-se à análise da situação atual da pandemia no país. A pandemia teve início no Brasil em meados de fevereiro/2020. Apesar de estar próxima de completar um ano de existência, os noticiários diários mostram que os números de novos casos e de mortes permanecem em quantitativos extremamente elevados. Dados noticiados nesta terça-feira (5/1), dão conta de que a média móvel de mortes no Brasil nos últimos sete dias foi de 723, e a média de novos casos no mesmo período foi de 32.260 [2].

Os dados do Ministério da Saúde indicam que 7.810.400 pessoas já foram infectadas e que ocorreram 197.732 mortes no país [3].

Tais números mostram que o novo coronavírus ainda assola fortemente todo o território nacional, o que demanda o esforço contínuo de toda a sociedade para a superação deste desafio, como tem ocorrido desde o início da pandemia.

Não nos parece razoável permitir que os empregados com deficiência sejam demitidos de forma imotivada no momento em que a pandemia da Covid-19 se apresenta fortemente disseminada por todo o território nacional, o que impõe a permanência das medidas de distanciamento social e de reforço com cuidados com a saúde de toda a população.

Há ainda forte incidência do vírus em todo o Brasil e suas nefastas consequências foram um dos argumentos utilizados pelo ministro Ricardo Lewandowski para deferir parcialmente a cautelar pleiteada nos autos da ADI 6.625 MC/DF:

"(…) Tal fato, porém, segundo demonstram as evidências empíricas, ainda está longe de materializar-se. Pelo contrário, a insidiosa moléstia causada pelo novo coronavírus segue infectando e matando pessoas, em ritmo acelerado, especialmente as mais idosas, acometidas por comorbidades ou fisicamente debilitadas. Por isso, a prudência – amparada nos princípios da prevenção e da precaução,14 que devem reger as decisões em matéria de saúde pública – aconselha que as medidas excepcionais abrigadas na Lei n° 13.979/2020 continuem, por enquanto, a integrar o arsenal das autoridades sanitárias para combater a pandemia. (…)" [4].

Também é relevante dizer que alguns governadores publicaram decretos de prorrogação do estado de calamidade, como por exemplo ocorreu em Minas Gerais (Decreto nº 48.102/2020), Paraná (Decreto nº 6.543/2020) e Tocantins (Decreto nº 6.202/2020), exatamente em razão da persistência da pandemia.

O segundo fundamento para a defesa da manutenção da impossibilidade da dispensa imotivada de PCD refere-se à necessidade de respeito ao ato jurídico perfeito quanto às relações jurídicas em curso.

O artigo 17 da Lei nº 14.020/2020 concedeu ao empregado com deficiência o direito de não ser demitido imotivadamente, notadamente em razão de sua maior vulnerabilidade comparado aos empregados não deficientes.

Tal norma visa à manutenção do emprego e da renda de pessoas que, em razão de sua maior fragilidade, poderiam ser imediatamente demitidas como forma de contenção de gastos pelas empresas em razão das dificuldades decorrentes da pandemia da Covid-19.

É relevante dizer que tal artigo não criou uma garantia vitalícia ao emprego, pois manteve intacto o direito das empresas de dispensarem os empregados com deficiência de forma motivada, amparadas em alguma das hipóteses do artigo 482 da CLT.

Calcini e Costa (2020) alertam para a importância da existência de garantias provisórias de emprego em momentos excepcionais da vida do empregado:

"(…) As possibilidades de garantia de emprego devem ser expressamente previstas em lei ou em instrumento normativo. Cabe citar algumas delas: gestante, acidente de trabalho, membro de comissão interna de prevenção de acidentes (CIPA), dirigente sindical.
Tais possibilidades legais visam preservar o emprego em momentos excepcionais da vida do empregado, seja em razão do seu estado de saúde, seja em razão da sua atuação dentro das dependências da empresa. (…)" [5].

Portanto, o artigo 17 da Lei nº 14.020/2020 teve o objetivo de garantir aos empregados com deficiência o direito ao trabalho, ou seja, o direito a cumprir correta e adequadamente suas funções como empregados enquanto vigente a pandemia vivenciada no país.

Tratando-se de condição mais benéfica, é plausível defender sua aderência ao contrato individual de trabalho, enquanto perdurar a situação de pandemia que justificou sua criação.

Calcini (2020) aponta a necessidade de análise do caso concreto para decidir-se a respeito da aplicação de lei nova a contratos de trabalho iniciados anteriormente.

"(…) É importante frisar que não se está a afirmar aqui que a Lei da Reforma Trabalhista não seja aplicada aos contratos de trabalho antes em curso à época da produção de seus efeitos. O principal aspecto a ser analisado é saber se, no caso concreto, aquele direito que fora suprimido e/ou reduzido pelo legislador reformista está incorporado ou não ao patrimônio jurídico do trabalhador. (…)" [6].

Mutatis mutandi, entendemos que tal intepretação é cabível ao caso ora em análise por se tratar de norma mais favorável que visa à manutenção temporária do emprego de profissionais indubitavelmente mais vulneráveis.

Por todo o exposto, conclui-se que é juridicamente possível defender-se a impossibilidade de dispensa imotivada de pessoas com deficiência, mesmo após o término do estado de calamidade na esfera federal, por dois fundamentos que devem ser analisados de forma conjunta: 1) os motivos fáticos que ocasionaram a declaração do estado de calamidade em 2020 persistem, haja vista que a pandemia da Covid-19 ainda está fortemente disseminada em todo o país, sendo que alguns Estados da federação prorrogaram o estado de calamidade em suas esferas de atuação; 2) o artigo 17 da Lei nº 14.020/2020 concedeu aos empregados com deficiência garantia provisória de emprego, que deve ser entendida como notória condição mais benéfica a ser mantida enquanto perdurar a pandemia.

 

Referências Bibliográficas
CALCINI, R.; COSTA, F.R. A constitucionalidade da Medida Provisória 936/20. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalha-trabalhista/328816/a-constitucionalidade-da-medida-provisoria-936-20. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

Coronavírus Brasil. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

Decisão cautelar. ADI 6.625 MC/DF. Ministro Ricardo Lewandowski. Publicação 30/12/2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6.625MC4.pdf. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

Notícia: Casos e mortes por coronavírus em 6 de janeiro, segundo consórcio de veículos de imprensa. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/01/06/casos-e-mortes-por-coronavirus-em-6-de-janeiro-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

Notícia: Reforma trabalhista não incide em contratos anteriores à sua vigência, diz TST. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-14/reforma-trabalhista-nao-reduzir-direito-adquirido#:~:text=Reforma%20trabalhista%20n%C3%A3o%20incide%20em%20contratos%20anteriores%20%C3%A0%20sua%20vig%C3%AAncia%2C%20diz%20TST&text=A%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%2C%20em%20seu%20artigo,jur%C3%ADdico%20perfeito%2C%20das%20inova%C3%A7%C3%B5es%20legislativas.&text=%22A%20lei%20n%C3%A3o%20pode%20incidir,de%20violar%20ato%20jur%C3%ADdico%20perfeito. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

 


[1] Decisão cautelar. ADI 6.625 MC/DF. Ministro Ricardo Lewandowski. Publicação 30/12/2020, p. 7/8. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6.625MC4.pdf. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

[2] Notícia: Casos e mortes por coronavírus em 6 de janeiro, segundo consórcio de veículos de imprensa. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/01/06/casos-e-mortes-por-coronavirus-em-6-de-janeiro-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

[3] Coronavírus Brasil. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

[4] Decisão cautelar. ADI 6.625 MC/DF. Ministro Ricardo Lewandowski. Publicação 30/12/2020, p. 7. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6.625MC4.pdf. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

[5] CALCINI, R.; COSTA, F.R. A constitucionalidade da Medida Provisória 936/20. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalha-trabalhista/328816/a-constitucionalidade-da-medida-provisoria-936-20. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP; professor de Direito do Trabalho da FMU; especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais; organizador do e-book digital "Coronavírus e os Impactos Trabalhista" (Editora JH Mizuno); coordenador do e-book "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020); organizador das obras coletivas "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr, 2019) e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (Editora JH Mizuno, 2019); coordenador do livro digital "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb, 2018); palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.

  • é advogado trabalhista na Companhia de Tecnologia da Informação do Estado de Minas Gerais (Prodemge) e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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