Opinião

Vacinação contra a Covid-19: escusa de consciência x empatia e responsabilidade

Autor

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

4 de janeiro de 2021, 15h33

O debate acerca dos limites ao exercício dos direitos individuais vinculados à autorrealização por meio da liberdade de escolha e de autogestão figura como um dos temas mais controversos da teoria constitucional, dada a necessidade de sua compatibilização com os termos de uma sociedade cada vez mais complexa e plural, também pautada pela busca da satisfação do bem comum.

Nessa linha de reflexão, afigura-se oportuno realizar breve análise acerca de julgado recente do Plenário do Supremo Tribunal Federal, que em dezembro de 2020 decidiu que o Estado pode determinar aos cidadãos que se submetam, compulsoriamente, à vacinação contra a Covid-19, prevista na Lei 13.979/2020. De acordo com a decisão, o Estado pode impor àqueles que recusem a vacinação as medidas restritivas previstas em lei (multa, impedimento de frequentar determinados lugares, fazer matrícula em escola), mas não pode fazer a imunização à força. Na mesma oportunidade, o tribunal também decidiu que Estados, Distrito Federal e municípios têm autonomia para estabelecer regras para a imunização.

O entendimento foi firmado no julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, que tratam unicamente de vacinação contra a Covid-19, e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1267879, em que se discute o direito à recusa à imunização por convicções filosóficas ou religiosas.

Em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso, relator do ARE 1267879, destacou que, embora a Constituição Federal proteja o direito de cada cidadão de manter suas convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais, os direitos da sociedade devem prevalecer sobre os direitos individuais. Com isso, o Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas, mesmo contra sua vontade — como, por exemplo, ao obrigar o uso de cinto de segurança.

No que concerne à escusa de consciência, preceitua Masson (2017, p. 273) que "toda vez que uma pessoa estiver seriamente impedida de acatar uma prescrição legal, em razão de forte e real crença/convicção, poderá se valer desse direito, que vai eximi-la da obrigação estipulada em lei, cujo cumprimento importaria grave violação à sua consciência". Contudo, segundo afirma a mesma autora (Masson, 2017, p. 208), dada a circunstância de nenhum direito ser absoluto, eles podem eventualmente ter seu âmbito de incidência reduzido e ceder (em prol de outros direitos) em decorrências fáticas específicas.

Durante o julgamento das ações acima mencionadas, além de tratar da relatividade dos direitos fundamentais, pontuou a ministra Cármen Lúcia que, tendo em vista o princípio constitucional da solidariedade, o direito à saúde coletiva se sobrepõe aos direitos individuais. Arrematou a ministra o seu entendimento, afirmando que "a Constituição não garante liberdades às pessoas para que elas sejam soberanamente egoístas".

Na Constituição Federal de 1988, o princípio da solidariedade encontra previsão expressa no artigo 3º, que trata dos objetivos da República, basicamente centrados na construção de sociedade livre, justa e solidária, o que por certo implica respeito e consideração mútuos entre os membros da sociedade. Não se deve, de fato, desconsiderar que a finalidade do constituinte é demonstrar que o grande desafio do projeto democrático brasileiro é buscar conciliar os valores de liberdade e igualdade, lastros positivos deixados pelo Estado liberal e pelo Estado social, respectivamente. A ideia do novo paradigma é, pois, garantir a autonomia privada e a pública, sem que uma possa eliminar a outra, contribuindo para a construção de um modelo capaz de promover a gradual superação do padrão estrutural de desigualdade no país.

Deveras, dotado de força normativa, o princípio da solidariedade implica obrigações recíprocas entre os indivíduos que coexistem em uma sociedade, sendo considerado, na percepção de Maria Celina de Moraes (2008, p. 247) "a expressão mais profunda da sociabilidade que caracteriza a pessoa humana. No contexto atual, a lei maior determina — ou melhor, exige — que nos ajudemos, mutuamente, a conservar nossa humanidade, porque a construção de uma sociedade livre, justa e solidária cabe a todos e a cada um de nós".

Acrescentem-se a essa dimensão de solidariedade as ideias de reciprocidade, compaixão e de empatia para com os outros, que denotam a capacidade de uma pessoa de colocar-se no lugar de outra, demonstrando a sua motivação em cuidar do bem-estar do próximo.

Em vista disso, partindo da constatação de que, há mais de um século, as vacinações e imunizações contribuem, efetivamente, para a saúde de toda a população, prevenindo inúmeras doenças, e constatados, cientificamente, os incontáveis danos ocasionados pelo surto do coronavírus, causador da Covid-19, que se espalhou rapidamente em várias regiões do mundo, com diferentes impactos, dando ênfase ao fato de que a doença objeto de imunização é altamente contagiosa, imperioso faz-se reconhecer os benefícios da decisão do STF, embasada no bem-estar da coletividade e na demonstração de que no caso sob exame o direito à saúde pública se sobrepõe à liberdade de escolha e de consciência.

Em meio a tal contexto, atendendo ao princípio da unidade da Constituição, tido por Barroso (2010, p. 303) como especificação da intepretação sistemática, que afirma que nenhuma norma deve ser considerada isoladamente, afiguram-se legitimas e razoáveis eventuais restrições impostas às liberdades individuais decorrentes da aplicação das medidas legais aos que recusarem a vacina, dada a necessidade de cooperação de todos os integrantes do contexto social e a probabilidade de a imunização coletiva minimizar os impactos da doença, responsável pela morte de milhares de pessoas em todo o mundo.

Importa, por fim, enfatizar que decisões como essas atestam que práticas hermenêuticas estritamente formalistas cedem espaço à compreensão da experiência normativa como fruto de um processo que surge da correlação entre a norma, os dados da realidade e o ato hermenêutico, passando necessariamente pela empatia.

 


Referências bibliográficas
— BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

— MASSON, Nathália. Manual de Direito Constitucional. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.

— MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da solidariedade. In: MATOS, Ana Carla Harmatiuk. (Org.). A construção dos novos direitos. Porto Alegre: Núria Fabris, 2008.

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