Direito Civil Atual

Retrocessos nas ações coletivas devem ser rejeitados em prol da sociedade

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4 de janeiro de 2021, 14h42

No Brasil, as ações coletivas encontram-se regidas pelas normas constantes na Lei Federal nº 7.347/85 e pelos artigos 81 a 104 do Código de Defesa do Consumidor, inexistindo, ipso facto, um Código de Processo Coletivo, não obstante o empenho de juristas nesse sentido. Consoante anterior coluna, os Projetos de Lei 4441/20 e 4778/20 almejam a implementação de atualizações na estrutura normativa vigente que, entre aspectos profícuos, contemplam outros assaz perigosos para a salvaguarda dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos destinatários finais de bens. Nessa senda, urge que se tenha a profícua atenção com duas sugeridas modificações que obliteram a convergência salutar entre as medidas judiciais coletivas e as ações individuais. Trata-se das ameaças à suspensão da prescrição destas últimas em face dos instrumentos de massa encetados; e das dificuldades a serem enfrentadas pelos legitimados elencados pelo artigo 82, incisos I a IV, do CDC quanto à obtenção do êxito objetivado. Denota-se fundamental, pois, que retrocessos não sejam aprovados, de modo sub-reptício, em meio aos alegados beneplácitos constantes nas sobreditas propostas de modernização da sistemática processual atual.

ConJur
Estatui o parágrafo 4º, do Projeto de Lei 4778/20 que a propositura da ação coletiva "não interrompe a prescrição para ações individuais", contrariando sobremaneira o quanto disposto pelo microssistema vigente, nos termos do artigo 26, parágrafo 2º, inciso II, da Lei nº 8.078/90, assim como do seu dispositivo 27 [1]. Sobre a temática, Antônio Gidi argumenta que é uma "armadilha cruel para os membros do grupo que confiaram na ação coletiva e não propuseram suas ações individuais" [2]. Isso porque na hipótese de o processo coletivo ser extinto, sem resolução de mérito depois do prazo prescricional, "o direito de todos os membros do grupo perece. Ninguém poderá propor a sua ação individual". Complementa o autor: "Desconheço jurista brasileiro ou internacional sério que defenda a posição tomada pelo Projeto CNJ". Fredie Didier Junior assevera que o PL 4441/20 se encontra melhor estruturado [3] e, de fato, o artigo 15 deste prospecto estatui que "a propositura da ação civil pública interrompe a prescrição das pretensões coletivas e individuais baseadas no mesmo conjunto de fatos". Não se pode admitir que regra inquestionavelmente benéfica para aqueles, que não estejam atuando como agentes econômicos, seja extirpada do ordenamento jurídico pátrio na contramão de sistemas evoluídos que possuem as class actions [4].

Disposição também questionável e que revela prejuízos para os consumidores encontra-se no artigo 9º, parágrafo único, do PL 4778/20, segundo o qual "para se valer do resultado da ação coletiva, o autor deverá desistir da ação individual". Tal regra encontra-se em descompasso com o atual cenário normativo regido pelo artigo 104 do CDC, eis que para se evitar que as ações individuais movidas não sejam atingidas pelos efeitos negativos da improcedência, os interessados, no prazo de 30 dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva, podem requerer a sua suspensão [5]. Já o artigo 16 do PL 4778/20 consagra regra distinta no sentido de que após a decisão de saneamento e organização do feito, os processos individuais, baseados no mesmo conjunto de fatos, serão suspensos. Poderão voltar a tramitar diante de três hipóteses que se coadunam com a natureza jurídica da causa petendi, o fator temporal e a condição do sujeito interessado, nos moldes do §1º, I e II. Havendo urgência, demora excessiva do julgamento definitivo do processo coletivo, reconhecidas em decisão fundamentada, ou se o autor da demanda individual demonstrar que não é membro do grupo tutelado, admitir-se-á a retomada desta. Contudo, o §2º o penaliza ao prever que, nestas hipóteses, "não mais se poderá beneficiar da coisa julgada coletiva".

Atribuiu-se à propositura das ações coletivas consequências que atingem as demandas individuais; o que, perfunctoriamente, poder-se-ia considerar como algo interessante, eis que seria amenizada a realidade atual, estigmatizada por milhares de processos repetitivos e atomizados, gerados pelos particulares irresignados com as práticas mercadológicas vexatórias. No entanto, por outro lado, criaram-se requisitos que dificultam expressamente o labor dos legitimados para o mister de defesa transindividual e individual homogênea dos consumidores. Além dos entraves expostos na coluna alhures aludida, que podem engendrar a inépcia da peça exordial, visto que os autores precisam indicar o grupo, a sua legitimidade e a inexistência de outros feitos idênticos, não se vislumbra, nos projetos de lei em exame, regras que facilitem a produção probatória. O inquérito civil, manejado pelo Ministério Público com frequência, terá que ser homologado pelo Poder Judiciário e esse requisito vilipendia o texto constitucional [6] e o microssistema consumerista. A Carta Maior brasileira, no artigo 129, em nenhum dos seus dispositivos congrega determinação desta natureza; sucede idêntica situação com o artigo 26, parágrafo 2º, II, do CDC [7].

A precarização da produção probatória no decorrer das ações coletivas é algo inquebrantável, caso aprovados os multicitados PLs. O custeio das despesas necessárias pelos legitimados, em contradição com a atual estrutura, é fator que atende às pressões do mercado, uma vez que dúvidas não pairam que o Parquet, a sociedade civil organizada e a fortiori os demais legitimados dispõem de escasso lastro financeiro para tal mister. Visa tal regra a amedrontar a salutar atuação dos entes imbuídos do verdadeiro propósito de militar pela tutela da coletividade. Assomado a esse aspecto, o instituto jurídico da inversão probatória, inaugurado, no Brasil, pelo CDC na década de 90, e acoplado pelo CPC de 2015, é afetado pelo artigo 21, §1º, do PL 4778. Isso porque a distribuição dinâmica do ônus probandi será tão somente acatada se demonstrada "impossibilidade ou excessiva dificuldade do cumprimento" e a "maior facilidade de obtenção da prova do fato pela parte contrária, bem como a excessiva verossimilhança do direito alegado". Percebe-se, claramente, o escopo de acarretar obstáculos acerca da determinação judicial atinente a ordenar que os fornecedores sejam instados a comprovar que estão agindo em compasso com o ordenamento jurídico pátrio.

Por derradeiro, os PLs albergam a intitulada "prova por amostragem ou estatística, desde que fundada em critérios científicos", como se depreende do quanto estabelecido pelo artigo 54 do Projeto de Lei 4441/20 ao propor a criação do artigo 464-A, parágrafos 1º a 3º, do CPC. Ora, questiona-se: qual a natureza jurídica destes parâmetros e qual o órgão ou entidade seria o responsável por sua delimitação? Em seguida, nota-se a regra de que os magistrados valorarão "fundamentadamente a prova produzida, considerando a qualidade do levantamento realizado, a metodologia empregada, o universo pesquisado e a adequação das eventuais conclusões". Mais uma vez, indaga-se quais seriam os paradigmas para o exame da adequação da sistemática adotada para a coleta das informações pelo autor da ação coletiva? E ainda há a norma de que os censos e as provas, por amostragem ou estatísticas, "realizadas por entes públicos especializados têm presunção relativa de veracidade" (grifo da autora). A intenção de não permitir que as medidas coletivas sejam exitosas é tamanha que até mesmo o que tenha sido produzido por entidades, ressalta-se, experientes na seara, não será acatado como manancial satisfatório para o julgamento procedente da demanda.

A efetividade do processo coletivo brasileiro, segundo José Carlos Barbosa Moreira [8], poderia estar sendo melhor alcançada desde a década de 80, eis que o artigo 7º da Lei nº 7.347/85, estabelece, há quase 40 anos que os casos envolvendo questões repetitivas deveriam ser reportados ao Ministério Público pelas autoridades e servidores públicos competentes. Lamentavelmente esta regra não vem sendo cumprida de modo constante e satisfatório nas diversas unidades federativas do país, visualizando-se uma multiplicidade de ações individuais com o mesmo teor de demandas coletivas que coexistem de modo apartado, causando sobrecarga ao aparato jurisdicional, a exígua concretude para aqueles feitos, decisões distintas pulverizadas e a insatisfação de muitos lesados. Muitas vezes, quando o Parquet, para fins de instrução das averiguações em curso, oficia varas que lidam com as relações de consumo, com o desiderato de que informem sobre as sobreditas ocorrências, nem sempre obtém respostas a contento.

Por ouro lado, nem todos os Ministérios Públicos dispõem de uma estrutura operacional, composta por recursos humanos e materiais, compatível com a necessidade de se realizar os levantamentos necessários para se demonstrar a quantidade de lides individuais geradas pelos fornecedores que, com habitualidade, vilipendiam os seus deveres legais. Autoridades judiciárias, imbuídas do verdadeiro propósito de zelar pelos interesses e direitos coletivos dos consumidores, valendo-se do princípio da cooperação judicial, estampado nos artigos 69 e seguintes do CPC, podem suscitar que varas, onde tramitam as demandas judiciais individuais, realizem o levantamento necessário e o informe. Entrementes as que se esquivam desse propósito não diligenciam dessa forma e quedam-se inertes na conferência do julgamento positivo esperado das ações coletivas. Alegam a debilidade da produção probatória mesmo em situações onde o agente econômico é inquestionavelmente transgressor dos ditames legais.

Não se pode olvidar que as tentativas de retrocessos, acima expostas, jamais passaram pelo crivo de relevantes proposições, consoante se observa, em 2004, com o anteprojeto de Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-América; e, em 2005, no documento redigido pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). As retrógadas regras, sub oculis, também não estavam assentadas no Anteprojeto confeccionado pelos programas de Pós-Graduação da Universidade Uerj e da Unesa. O Projeto de Lei nº 5.139/09 adrede não as abarcou, mas também não houve a sua aprovação e, nessa senda, o Brasil continuou não dispondo de um código de normas processuais coletivas. O PL nº 282/2012, que tencionava atualizar as normas processuais contidas no CDC, do mesmo modo, não continha as mencionadas involuções que fragilizam a tutela coletiva, mas também não logrou êxito. Fundamental que o Brasil não regrida no quanto alcançado na esfera processual coletiva.

 


[1] Sobre o tema, consultar: SANTANA, Héctor Valverde. Prescrição e Decadência nas Relações de Consumo. São Paulo: RT, 2002, p. 128. DENARI, Zelmo; GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 17. ed. rev. atual. e reform. Rio de Janeiro: Forense, 2017, volume I, p. 201. MARQUES, C. L; MIRAGEM, Bruno; BENJAMIN, Antônio Herman. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 371;

[2] GIDI, Antônio. O Projeto CNJ e a decadência das ações coletivas no Brasil. Revista Consultor Jurídico, Opinião, 5 de novembro de 2020.

[3] DIDIER JUNIOR. Fredie. Palestra Avanços e retrocessos no Processo Coletivo em prol dos consumidores brasileiros: o CPC de 2015 e os Projetos de Lei em trâmite. Jornada BRASILCON realizada em 26/11/2020.

[4] MULLENIX, Linda. General Report – Common Law. In GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos Países de Civil Law e Common Law. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 300.

[5] Cf.: WATANABE, Kazuo. Demandas coletivas e problemas emergentes da práxis forense. In: As garantias do cidadão na Justiça. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 15. ZAVASCKI, Teori Albino. Reforma do Processo Coletivo: Indispensabilidade de Disciplina Diferenciada para Direitos Individuais Homogêneos e para Direitos Transindividuais. In GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves; WATANABE, Kazuo (coords). Direito Processual Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 38.

[6] Cf.: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo, n. 61, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 168. OTEIZA, Eduardo. La constitucionalización de los derechos colectivos y la ausencia de un proceso que los 'ampare'. In: Procesos colectivos. OTEIZA, Eduardo (coord.). Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 25 e 26.

[7] Examinar: GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação civil pública refém do autoritarismo. Revista de Processo 96. São Paulo: Editora: Revista dos Tribunais, out./dez./1999, p. 236-247.

[8] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1984, 3a série, p. 195-197.

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