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A advocacia criminal e os assholes

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24 de fevereiro de 2021, 7h13

Aaron James, professor de Filosofia da Universidade da Califórnia, publicou interessante livro sobre a questão do asshole [1].

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Segundo ele, o asshole pode ser conceituado como a pessoa que sistematicamente se permite gozar de vantagens especiais em suas relações interpessoais, por nutrir sentimento arraigado de privilégio que o imuniza contra reclamações de terceiros. Nessa toada, o asshole adota padrão comportamental caracterizado pela arrogância e abusividade, em razão da crença de que, como ele é especial, as convenções sociais e regras de civilidade não se aplicam a ele.

Ou seja: o asshole se diferencia das demais pessoas pela sua peculiar concepção moral sobre privilégios e vantagens. Ele possui uma visão não igualitária das relações interpessoais, entendendo que suas sistemáticas demandas por vantagens especiais de terceiros (que, se não forem atendidas, o tornam indignado ou ressentido) são moralmente aceitáveis.

Por outro flanco, as outras pessoas possuem visão mais igualitária das sobreditas relações, se considerando credoras de tratamento especial só em circunstâncias excepcionais, que os demais também gozarão no momento oportuno (v.g. aniversários etc.).

James propõe verdadeira taxonomia dos assholes, classificando-os em: 1) rude; 2) presunçoso; 3) patrão; 4) monárquico; 5) presidencial; 6) corporativo; 7) imprudente; 8) autoengrandecedor; 9) autoengrandecedor com frágil pretexto moral; 10) apresentador de telejornal; 11) delirante; e 12) banqueiro delirante [2].

As precitadas espécies que exercem funções de poder, seja econômico, político ou midiático (patrão, monárquico, presidencial, corporativo, apresentador de telejornal e banqueiro), fornecem o seguinte insight: o padrão comportamental do asshole pode ser induzido ou potencializado por determinadas posições de poder e sua cultura, e a sensação de privilégio que elas proporcionam.

James identifica uma proporção consideravelmente maior de assholes do gênero masculino, sendo plausível que essa condição não é biológica, e sim decorrente da cultura masculina predominante em determinado contexto histórico-social [3].

Há alguns padrões comportamentais indiciários de potencial asshole: 1) bullying: humilhações e intimidações de pessoas vistas como inferiores ou vulneráveis; 2) cólera: rompantes coléricos quando ele se sente contrariado ou desafiado; 3) criticismo excessivo: incapacidade de autocrítica, e críticas excessivas e não solicitadas a terceiros; 4) incivilidade: ausência de bons modos, decência, empatia e respeito por terceiros; 5) infalibilidade: incapacidade de reconhecer seus próprios erros e ser apologético; 6) intolerância: desqualificações por rotulagens de terceiros que discordam de suas opiniões pessoais; 7) mitomania: mentiras patológicas sobre as próprias habilidades, sucessos profissionais, titulações etc.; 8) misoginia: discriminações de gênero, assédios sexuais etc.; 9) narcisismo: visão irrealista sobre sua própria importância; e 10) suserania: convivência com círculo de vassalos dispostos à adulação do seu ego.

Ao final, James aponta que o padrão comportamental do asshole tende a causar grande indignação em terceiros, devido à importância dada por eles ao reconhecimento moral da igualdade pelos outros.

Há estudos científicos que comprovam os efeitos negativos da interação social com o asshole em trabalhadores: reduções da autoconfiança, capacidade cooperativa e decisória, criatividade, motivação, produtividade etc. Esses trabalhadores também podem sofrer danos à sua saúde física e mental [4].

A esse propósito, há famoso tuíte popularizado pelo escritor William Gibson: "Antes de se autodiagnosticar com depressão ou baixa autoestima, primeiro certifique-se que você não está, de fato, só cercado por assholes" ("Before you diagnose yourself with depression or low self-esteem, first make sure you are not, in fact, just surrounded by assholes").

Ao que tudo indica, o asshole é contagioso, fomentando vicioso círculo de retroalimentação: seus amigos, sócios, associados, vassalos etc. tendem a mimetizar seu padrão comportamental, agindo como assholes perante terceiros [5].

Não obstante, à semelhança da morte e dos tributos, infelizmente os assholes são uma parte inevitável da vida social em geral. Malgrado o asshole ocasional possa vir a rever seu padrão comportamental, o asshole em tempo integral é imune à argumentação racional, pois ele tem firme convicção moral sobre seu status especial. Portanto, qualquer tentativa de eliminá-lo da sociedade está fadada ao insucesso, ou descambará em tirania.

Por outro lado, o comportamento social do asshole é inaceitável do ponto de vista moral, devendo ser objeto de resistência [6].

Segundo Robert Sutton, professor de Negócios da Universidade de Stanford, o ideal é planejamento estratégico para evitar quaisquer interações sociais com assholes, ou, ao menos, reduzir sua frequência, duração e intensidade.

Para tanto, podem ser adotadas táticas preventivas, tais como: 1) pesquisas sobre a reputação de potencial chefe, sócio, associado etc. em fontes abertas; 2) sondagens informais de colegas que trabalharam, ou trabalham, naquele escritório de advocacia; 3) checagem se potencial chefe, sócio, associado etc. já trabalhou com um asshole, pois eles tendem a ser contagiosos; 4) dispensa de atenção à primeira impressão causada pelo ambiente de trabalho, tratamento dispensado ao candidato e tratamento entre as pessoas que trabalham no local; 5) cuidado com manifestações de complexo de superioridade (v.g. críticas a colegas, monopólio da conversa etc.); e 6) início de relação profissional com menor compromisso ou dedicação temporal, para poder identificar eventual asshole antes de assumir compromisso de longo prazo [7].

Caso você já esteja sendo vitimado pela convivência com um asshole, segundo Sutton o primeiro passo é diagnosticar a situação, fazendo as seguintes perguntas: 1) você se sente desmotivado, desrespeitado, humilhado, oprimido etc., durante ou após as interações com ele?; 2) você permanece vivenciando essas sensações durante muito tempo?; 3) você está lidando com um asshole ocasional ou em tempo integral?; 4) você está trabalhando em ambiente que tem um problema individual, ou um problema mais sistêmico de multiplicidade de assholes?; 5) você exerce mais poder do que ele?; e 6) você de fato está sofrendo de forma considerável, ou é particularmente susceptível a se sentir afrontado [8]?

Uma alternativa é, sem incorrer nos erros de subestimar a gravidade da situação, introjetar a normalidade dos padrões comportamentais do asshole, ou fabricar racionalizações para sua inércia (v.g. crença irrealista na melhora futura, ou na suposta ausência de alternativas), tomar a decisão de deixar o ambiente tóxico.

Na advocacia privada, são possíveis demissão do emprego, desfazimento de sociedade civil de advogados, desligamento de entidade associativa etc. Nas carreiras jurídicas públicas, são possíveis exoneração, remoção, licença etc.

Caso não seja possível encerrar a relação com o asshole, Sutton recomenda não reagir de forma emocional, para não insuflar a pulsão de gozo sádico do asshole pelo reforço positivo, nem fomentar escalada de abusos.

Outras táticas evasivas envolvem: 1) aumento da distância física do asshole; 2) evitação de encontros pessoais com ele; 3) criação de manto de invisibilidade social (via expressão facial neutra, silêncio etc.); 4) recrutamento de aliado disposto a bloquear o asshole; 5) instituição de rodízio informal entre colegas, para minimizar a exposição a ele; 6) uso de zona segura para recomposição emocional e suporte mútuo entre colegas; e 7) estabelecimento de sistema de alertas sobre a presença do asshole [9].

Por outro flanco, podem ser adotadas táticas de confronto: 1) abstenção de reação impulsiva, documentação do comportamento ofensivo, reflexão sobre alternativas de reação e recrutamento de aliados (outras vítimas do asshole); 2) antagonismo calmo, racional e sincero, que deve ser justificado e dirigido ao bem comum (não só a extravasar sentimento de vingança); 3) abstenção de escalar os abusos chamando o agressor de asshole, mesmo quando for escolhida reação mais enérgica, passivo-agressiva, ou desafiadora; 4) adulações e gentilezas como táticas diversionistas, enquanto se articula reação mais enérgica; 5) vingança exercida com acurácia (mirando o asshole), tempestividade (conectando ofensa e retaliação) e adequação (encerrando o comportamento abusivo); e 6) políticas e regras organizacionais para selecionar pessoas civilizadas, incentivar esse comportamento e punir aqueles que quebram esses regramentos, sem recorrer a bodes expiatórios [10].

Embora não haja evidências científicas a respeito, diversos incidentes (em audiências, sessões de julgamento etc.) vivenciados, ou noticiados pelos meios de comunicação social, fornecem prova anedótica (anecdotal evidence) da existência de assholes no sistema pátrio de administração da justiça criminal. Tal existência possivelmente é insuflada pelo elevado status social que gozam os ocupantes das carreiras jurídicas, somado ao manejo do poder punitivo estatal.

Segundo Sutton, há fenômeno denominado envenenamento pelo poder (power poisoning), pelo qual o exercício do poder torna a pessoa menos empática e mais abusiva, desrespeitosa e egoísta, levando-a a agir como se as regras não se aplicassem a ela [11].

Essa fenomenologia pode ser catalisada por traço marcante da cultura nacional: moralidade baseada em relações individuais e títulos hierarquizantes, que prevalecem sobre a impessoalidade das regras universais [12]Daí resulta a frase quintessencial do asshole: "Você sabe com quem está falando?".

A incivilidade intensa e incessante do asshole é disfuncional no sistema de administração da justiça criminal, podendo ensejar violação da cláusula do julgamento justo (fair trial[13].

No processo penal, a pessoa acusada de crime é sempre o sujeito mais débil, segundo Luigi Ferrajoli [14]. Via de consequência, o acusado tende a ser o alvo preferencial do bullying praticado pelo asshole [15].

Assim, nosso objetivo é fornecer algumas dicas práticas sobre como lidar com um asshole durante audiências, sessões de julgamento etc., com base em adaptação da doutrina norte-americana à realidade nacional [16].

Eis as dicas: 1) conheça seu adversário: faça sondagem informal entre amigos e colegas sobre o padrão comportamental do seu adversário. Saber se ele age como asshole ajudará na sua preparação para a futura interação forense; 2) faça encontro reservado: caso possível, reúna-se com o asshole reservadamente e em território neutro, pois ele tende a ser menos histriônico sem a presença de plateia; 3) identifique a estratégia alheia: identifique se o comportamento abusivo do seu adversário não tem como objetivo desviar o foco do debate, descarrilar seu raciocínio para induzi-lo em erro etc. Quanto mais rápida for a identificação, melhores condições você terá para neutralizar essa estratégia; 4) não morda a isca: jamais reaja de forma emotiva ou impulsiva à conduta abusiva alheia. Exerça o autocontrole, permanecendo calmo e focado na sua estratégia processual, para não cometer erros; 5) não pague na mesma moeda: comportamento incivilizado alheio não justifica transigência com seu dever ético de urbanidade. Quanto mais estritamente você aderir ao marco deontológico da sua profissão, mais perceptível será, aos olhos de todos, o abismo ético existente entre você e o asshole; e 6) abaixe o volume da voz: quanto mais baixo você falar, mais os outros tendem a parar para escutá-lo, levando à redução generalizada da gritaria.

Em casos extremos, pode ser necessário solicitar ao julgador a aplicação ao asshole das sanções processuais previstas nos artigos 77 e 78 da codificação processual civil (aplicáveis por analogia), ou oferecer representação disciplinar perante órgão corregedor, com base nos deveres de civilidade previstos na respectiva legislação orgânica.

Também é preciso ter cuidado com generalizações: a esmagadora maioria dos profissionais do sistema de administração da Justiça Criminal tem comportamento civilizado. Qualquer ser humano pode ter comportamento ocasional asshole, máxime em condições desfavoráveis (v.g. cansaço, estresse, pressa etc.). Conforme esclarecido acima, conceitualmente só deve ser considerado asshole quem tem padrão comportamental incivilizado, agindo assim de forma sistemática.

De toda sorte, os assholes do sistema pátrio de administração da Justiça Criminal têm relevante papel: servir como modelos às avessas, pois eles são eloquentes exemplos de como praticantes forenses não devem se comportar em suas relações interpessoais.

 


[1] JAMES, Aaron. Assholes: A theory, pp. 04 e ss. New York: Anchor Books, 2012.

[2] JAMES, Aaron. Idem, pp. 33 e ss.

[3] JAMES, Aaron. Idem, pp. 88 e ss.

[4] Ver, por exemplo: SAMNANI, Al-Karim; SINGH, Parbudyal. 20 years of workplace bullying research: A review of the antecedents and consequences of bullying in the workplace, In: Aggression and Violent Behavior, v. 17, n. 06, pp. 581-589, nov./dec. 2012; SCHYNS, Birgit; SCHILING, Jan. How bad are the effects of bad leaders? A meta-analysis of destructive leadership and its outcomes, In: The Leadership Quarterly, v. 24, n. 01, pp. 138-158, feb. 2013.

[5] FOULK, Trevor; WOOLUM, Andrew; EREZ, Amir. Catching rudeness is like catching a cold: The contagion effects of low-intensity negative behaviors, In: Journal of Applied Psychology, v. 101, n. 01, pp. 50-67, 2016; HERSCHCOVIS, Sarah. Integrating workplace aggression research: Relational, contextual, and method considerations, In: Journal of Organizational Behavior, n. 34, pp. 26-42, 2013.

[6] JAMES, Aaron. Op. cit., p. 174.

[7] SUTTON, Robert. The asshole survival guide: How to deal with people who treat you like dirt, pp. 58-63. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2017.

[8] SUTTON, Robert. Idem, pp. 14 e ss.

[9] SUTTON, Robert. Idem, pp. 67 e ss.

[10] SUTTON, Robert. Idem, pp. 123 e ss.

[11] SUTTON, Robert. Idem, pp. 170 e ss.

[12] DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro, pp. 181 e ss. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

[13] CODE, Michael. Counsel’s duty of civility: An essential component of fair trials and an effective justice system, In: Canadian Criminal Law Review, Toronto, n. 11, pp. 97-139, feb. 2007.

[14] FERRAJOLI, Luigi. Sulla deontologia professionale degli avvocati, In: Questione Giustizia, Roma, n. 06, pp. 90-98, 2011.

[15] Sobre o bullying praticado pelos sujeitos processuais penais, ver: RODRIGUES, Andreia de Brito. Bullying criminal: O exercício do poder no sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

[16] Dealing with jerks: What comes around goes around, In: Litigation News, v. 37, n. 01, pp. 11-12, 2011; WILCOX, Elliott. How to deal with jerk trial lawyers. Disponível em: https://trialtheater.com/professionalism/how-to-deal-with-jerk-trial-lawyers/.

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