Opinião

Mérito e modulação no julgamento da bitributação de software

Autores

  • Sergio Paulo Gomes Gallindo

    é presidente da Brasscom advogado mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre em Ciência da Computação pela University of Texas at Austin.

  • Daniel T. Stivelberg

    é gerente de Relações Governamentais da Brasscom advogado pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP e em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba e em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba.

23 de fevereiro de 2021, 12h02

O Supremo Tribunal Federal formou maioria, no final de 2020, em torno da tese pela exclusão das hipóteses de incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre o licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador (softwares). No caso concreto, que se refere ao julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 1945 e 5659, o relator, ministro Dias Toffoli, julgou procedente o pedido para dar ao artigo 5º da Lei nº 6.763/75 e ao artigo 1º, I e II, do Decreto nº 43.080/02, ambos do Estado de Minas Gerais, e ao artigo 2º da Lei Complementar federal nº 87/96, a interpretação conforme à Constituição Federal, excluindo os nominados fatos geradores das hipóteses de recolhimento do tributo estadual. Ainda em seu voto, o relator adotou modulação dos efeitos da decisão para dotá-la de eficácia a partir da data da publicação da ata de julgamento. Acompanharam o relator os ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux e Marco Aurélio.

Analisemos conflito entre jurisprudência e lei à luz do critério lex posterior
De plano, se faz mister saudar a formação de maioria em torno da constitucionalidade da incidência do Impostos sobre Serviços de

Qualquer Natureza (ISS) sobre licenças de softwares como um importante avanço para o restabelecimento da almejada segurança jurídica para as operações com tais intangíveis. O voto do ministro Dias Toffoli fortalece o Estado democrático na medida em que reconhece e legitima a vontade do legislador, democraticamente eleito, consubstanciada na opção pela incidência do tributo municipal sobre as atividades de licenciamento de softwares, na forma do que determina a Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003 (LC 116) e da Lei Complementar nº 157, de 29 de dezembro de 2016 (LC 157). Esta não apenas ratificou a incidência do ISS sobre as mencionadas atividades, como também adicionou outras atividades típicas da nova fenomenologia digital habilitada pelas tecnologias da informação e comunicação, tais como, a disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos audiovisuais por meio da internet (streaming). Emerge, a partir do consenso de sete eminentes julgadores supremos, uma significativa contribuição, plasmada no voto, no sentido de conferir efetiva segurança jurídica a atores sociais, qual seja, a equiparação, entre jurisprudência e lei, no que concerne à aplicabilidade do brocardo jurídico lex posterior derogat legi priori. Entendemos que o referido brocardo, acolhido no ordenamento por meio do artigo 2º, §1º, da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB) [1], pode ser alçado à relevância de critério jurídico aplicável na solução de conflitos entre jurisprudência e lei. Para cristalizar tal alcance, é útil um breve escorço histórico da controvérsia

O tema em tela foi inicialmente apreciado pela Corte Suprema, em 1998, por intermédio do RE 176.626-3/SP [2], no qual o relator, ministro Sepúlveda Pertence, articulou tese reconhecendo a possibilidade de incidência do ICMS, de competência estadual, apenas nos casos em que o software fosse oferecido em série e distribuído por meio de suporte físico, tais como CD ou DVD. O recurso não foi conhecido pela 1ª Turma, tendo como razão de tratar-se de questão considerada estranha ao objeto da ação declaratória que motivou o extraordinário. O tema veio a ser efetivamente julgado no RE 199.464-3/SP [3], com voto condutor do ministro Ilmar Galvão, que teve como base o entendimento do ministro Sepúlveda Pertence, anteriormente adotado na mesma turma julgadora. Vários estados incorporaram o julgado em leis e atos normativos de sua alçada. Em 2003, o Congresso Nacional definiu, por meio do subitem 1.05 da lista de serviços anexa à LC 116, que os fatos geradores relativos ao licenciamento de programas de computador subsumem-se à hipótese de incidência do ISS, de competência dos municípios. Desafortunadamente, e não obstante a decisão do legislador, em quórum qualificado de lei complementar, diversos Estados, ao invés de reconhecer a incidência ex lege, seguiram editando normas e instruindo suas administrações tributárias a buscar o recolhimento, em patente afronta à lei, justificando a conduta com base na suprarreferida jurisprudência, adotada pela 1ª Turma do Supremo em 1990. Recentemente, os Estados, reunidos no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), recrudesceram a atuação estabelecendo reduções de bases de cálculo de ICMS incidente sobre software, por meio do Convênio ICMS nº 181/2015, e a cobrança, por meio do Convênio ICMS nº 106/2017, do ICMS incidente nas operações com bens e mercadorias digitais, comercializadas inclusive, por meio de transferência eletrônica de dados. Ressalte-se, por ser grave, hipótese de incidência, essa inexistente. Tais movimentos agravaram sobremaneira a insegurança jurídica, promovendo exasperação angustiosa das empresas, sujeitas a bitributação por pressão Estados e municípios, prática ab-rogada pela Constituição.

Nesse contexto,  o acórdão, que há de vir a emergir a partir do voto do relator, ministro Dias Toffoli, reúne atributos para se tornar um importante marco jurídico para o direito brasileiro, para, em seus fundamentos determinantes, legitimar a equiparação entre jurisprudência e lei, e inaugurar a aplicação do brocardo lex posterior derogat legi priori, na qualidade de critério de validade normativa, na hipótese em que uma norma decisória concreta [4] erigida em sede de jurisprudência, venha a apresentar-se antinômica a uma lei mais jovem. Tal situação já é prevista na segunda parte do §1º do artigo 2º da LIDB ao dispor que "a lei posterior revoga a anterior (…) quando seja com ela incompatível". Com efeito, a situação de bitributação de software ocorreu pela não observância, por parte dos estados, de que, com a entrada em vigor da LC 116, não deveria subsistir a incidência do ICMS sobre o licenciamento software. Em outros termos, a ideia jurídica subjacente à decisão em torno da inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre as operações de licenciamento de software, decorre de novo entendimento segundo o qual, da mesma forma como se dá nas hipóteses de antinomias e conflitos normativos, longe de serem exclusividade entre diplomas formais, também são passiveis de ocorrer entre normas legais e jurisprudência. Nestes casos, a resolução baseada na aplicação do critério lex posterior poderia conferir clareza e celeridade às decisões envolvendo o embate entre leis e jurisprudência.

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[1] Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942: "artigo 2º – Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. §1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior".

[2] STF – Supremo Tribunal Federal do Brasil. Recurso Extraordinário nº 176.626 São Paulo. Relator: ministro Sepúlveda Pertence. Julgamento: Brasília, 10 de novembro de 1998. Primeira Turma. Data de Publicação: DJ 11-12-1998.

[3] STF – Supremo Tribunal Federal do Brasil. Recurso Extraordinário nº 199.464 São Paulo. Relator: ministro Ilmar Galvão. Julgamento: Brasília, 2 de março de 1999. Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 30-04-1999.

[4] A norma decisória concreta é a “ideia jurídica subjacente à formulação contida na parte dispositiva, que, concebida de forma geral, permite não só a decisão do caso concreto, mas também a decisão de casos semelhantes”. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 8ª Edição, revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1298.

Autores

  • é presidente executivo da Brasscom, advogado, mestre em Direito Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre em Ciência da Computação pela University of Texas at Austin, com apoio do Fulbright Intl. Fellowship Program.

  • é gerente de Relações Governamentais da Brasscom, advogado, pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP e em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba e em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba.

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