Opinião

O ônus da prova nas relações jurídicas que envolvam proteção de dados pessoais

Autor

  • Bruno Caruso

    é advogado no escritório Araújo e Policastro Advogados e pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP).

23 de fevereiro de 2021, 9h13

Passado um tempo desde a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados [1], temos como consequência as primeiras demandas submetidas à análise do Poder Judiciário com o escopo de apurar a responsabilidade civil das empresas frente aos litígios envolvendo vazamento, comercialização e armazenamento de dados pessoais.

Diante de tal fato, inevitavelmente surgem questões atinentes ao Direito Processual, tal como a distribuição do ônus probatório nos litígios que envolvam a matéria.

Sendo assim, a importância do tema em comento vale para que os demandantes e demandados tenham pleno conhecimento das regras de delimitação do ônus da prova nos litígios envolvendo dados pessoais, de modo que possam antever eventual decisão de deferimento ou indeferimento de pedido de inversão do encargo, a fim de evitarem uma sentença com base na não desincumbência do ônus probatório.

1) Distribuição do ônus da prova conforme o Código de Processo Civil de 2015
No intuito de contextualizar a questão, necessário tratar sinteticamente das regras gerais de distribuição do ônus da prova no Direito Privado, a vista de melhor analisar as regras positivadas na LGPD.

Nosso ordenamento processual civil vigente, CPC/15, adota duas teorias de distribuição do onus probandi, que são: 1) a estática, que segue o preceito dispositivo, ou seja, invariável; e 2) a dinâmica, que excede a disposição legal com base nas condições e situações das partes, ou seja, variável.

A primeira, disposta no artigo 373 [2] do CPC/15, é adotada como regra de distribuição do ônus probatório e prevê que, nos casos não excepcionais, o autor está incumbido de provar o fato constitutivo de seu direito e o réu tem o encargo de provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito de seu ex adverso. Sendo assim, pode-se afirmar que, em regra, quem alega tem o dever de provar.

A segunda, conforme consta expresso dos §§1º e 3º [3] do artigo 373 do CPC/15, dá autonomia ao magistrado, por meio de decisão fundamentada, ou às partes, por meio de negócio jurídico processual, para atribuírem dinamicamente o onus probandi, de modo diverso ao previsto em lei, à parte que tiver maior facilidade ou única possibilidade na produção da prova, seja do próprio fato alegado ou do fato alegado por seu ex adverso.

Em ambas as possibilidades de distribuição do ônus da prova, é importante notar que o direito ao contraditório sempre deverá ser observado. Na distribuição estática, as partes já têm conhecimento prévio de quem deve obrigatoriamente desincumbir-se do ônus probatório, vez que está positivada em nosso ordenamento processual. Já na distribuição dinâmica, é necessário que haja prévia deliberação do juízo acerca da atribuição do encargo, de maneira fundamentada, a fim de garantir o efetivo contraditório, em observância, inclusive, à regra de vedação à decisão surpresa, contida no artigo 10 do CPC/15.

2) Distribuição do ônus da prova na LGPD
Examinadas as regras gerais de distribuição do onus probandi, cumpre aclarar, antes de adentrar no tema em foco, quem são os personagens envolvidos no tratamento de dados de acordo com a nomenclatura definida no artigo 5º da LGPD: 1) titular é a pessoa natural cujos dados serão tratados; 2) controlador é o responsável pela coleta dos dados e pelas decisões referentes ao seu tratamento; 3) operador é quem efetivamente realiza o tratamento e processamento dos dados em nome do controlador; e 4) agentes de tratamento: controlador e operador.

Passando à análise do §2º [4] do artigo 8º da LGPD, nota-se expressa distribuição do ônus da prova para demonstração do consentimento para tratamento dos dados fornecidos pelo titular. Segundo versa o artigo, cabe ao controlador o encargo de provar que o titular consentiu com o tratamento de dados em conformidade ao que prevê as disposições de administração de dados na LGPD.

Desse modo, em havendo hipótese de discussão judicial acerca do tratamento de dados e, em contestação, sendo alegado pelo requerido que o titular consentiu com a modalidade de tratamento de dados discutida, caberá exclusivamente a este comprovar o consentimento do titular, em consonância à norma positivada.

Seguindo, no artigo 42, §2º [5] da LGPD, que guarda estreita semelhança com o disposto no artigo 6º, VIII [6] do CDC, é elencada a possibilidade de inversão dinâmica do ônus da prova nas hipóteses de verossimilhança das alegações do titular, quando houver hipossuficiência deste para produção de prova ou, ainda, quando tal produção lhe for excessivamente onerosa.

Deste modo, destacam-se duas hipóteses de distribuição do ônus da prova nas relações que envolvam dados pessoais, quais sejam:

1) O controlador tem o ônus de provar que o consentimento do titular foi fornecido conforme os requisitos legais, ou seja, existe uma inversão legal do ônus da prova;

2) O juiz pode distribuir dinamicamente o ônus da prova, no intento de atribuí-lo ao responsável pelo tratamento dos dados pessoais, quando for verossímil a alegação, houver hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova pelo titular dos dados resultar-lhe excessivamente onerosa.

Merece atenção o fato de que, na primeira hipótese de distribuição do onus probandi, não há necessidade de deliberação prévia do juízo, ante o preceito dispositivo da norma.

Por outro lado, na segunda hipótese, em que há distribuição dinâmica do ônus probatório, faz-se necessário que o magistrado delibere acerca da inversão do encargo por meio de decisão fundamentada, preferencialmente na fase de saneamento do processo, oportunizando, de tal modo, o efetivo contraditório à parte incumbida do ônus excedente, em respeito ao princípio do contraditório e vedação da decisão surpresa.

3) Considerações finais
Notável, da análise dos dispositivos que tratam de direito probatório na LGPD, o claro intuito do legislador em proteger a parte mais vulnerável da demanda, no caso o titular dos dados, assim como o é no Direito do Consumidor.

Certamente, antevendo a situação de maior desvantagem do titular frente aos agentes de tratamento, o legislador optou por, além de positivar norma que incumbe ao controlador o ônus de provar o consentimento do titular, permitir ao magistrado, analisando o grau de vulnerabilidade do titular e verossimilhança de suas alegações, distribuir dinamicamente do ônus da prova.

De tal forma, tratando-se de relação jurídica que envolva proteção de dados, é defeso ao magistrado, após análise das condições das partes para produção de prova e da verossimilhança das alegações, atribuir o onus probandi à parte que possuí menores empecilhos para produção da prova, a vista de garantir a isonomia processual e a paridade entre os litigantes.

Destarte, ante tais possibilidades de distribuição do ônus probatório, é essencial, para delimitação estratégica prévia de uma demanda, que o advogado estude todas as situações possíveis de distribuição do encargo, no intuito de adotar a estratégia processual que melhor beneficiará seu cliente.

Por fim, insta salientar também a importância de um trabalho preventivo de assessoramento às empresas que trabalham com armazenamento de dados pessoais, de modo a orientá-las quanto à necessidade de arquivamento de todo e qualquer documento que envolva a administração de dados, a fim de evitar que, em uma eventual demanda em que haja o deferimento do pedido de inversão do onus probandi, a empresa não tenha meios suficientes para desincumbir-se do encargo.

 


[1] Lei 13.709/2018.

[2] "Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor".

[3] "Art. 373. (…) §1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído
§ 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:
I – recair sobre direito indisponível da parte;
II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito".

[4] "Art. 8º. O consentimento previsto no inciso I do art. 7º desta Lei deverá ser fornecido por escrito ou por outro meio que demonstre a manifestação de vontade do titular. (…)
§ 2º Cabe ao controlador o ônus da prova de que o consentimento foi obtido em conformidade com o disposto nesta Lei".

[5] "Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo".

[6] "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…)
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências".

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  • é advogado no escritório Araújo e Policastro Advogados e pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP).

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