Opinião

O Estado e a alimentação dos custodiados

Autor

  • Breno Hoyos Guimarães

    é advogado pós-graduado em Direito penal e criminologia pela PUC-RS membro do IBCCRIM (instituto Brasileiro de Ciências Criminais) cursos concluídos de terrorismo e leis humanitárias nas universidades de Leiden e de Stanford nos Estados Unidos.

10 de fevereiro de 2021, 13h35

Muito se falou a respeito da decisão da juíza Placidina Pires, da Vara dos Feitos Relativos a Organizações Criminosas e Lavagem de Capitais de Goiás, que concedeu liberdade provisória a acusada que é vegana em razão de ter tido sua saúde prejudicada por não possuir uma alimentação adequada no estabelecimento prisional.

Tal decisão foi alvo de duras críticas, mas também foi aplaudida por muitos. No entanto, tais opiniões, sejam para criticar ou elogiar, não abordaram profundamente o caso.

De um lado, no Twitter, o deputado federal Eduardo Bolsonaro declarou que "o Brasil não é para iniciantes", afirmando, ainda, que "(e)nquanto em todo o mundo a primeira coisa que ocorre a um preso é perder determinados direitos, no Brasil é o contrário, a preocupação é em preservar todos os direitos. Não à toa temos toda essa criminalidade".

De outro lado, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) declarou que: "A decisão concessiva da liberdade provisória foi devidamente fundamentada na Constituição Federal e legislação aplicável, considerando todos os elementos constantes dos autos".

Diante disso, não nos cabe aqui trazer uma crítica ou apoio à decisão proferida pela magistrada, ou abordar de forma detalhada a fundamentação da decisão. O propósito deste artigo é trazer uma reflexão crítica e técnico-normativa, a fim de agregar conhecimento acerca do tema, partindo dos seguintes questionamentos: Incumbe ao Estado fornecer alimentação adequada ao preso? Atender às especificidades alimentares de cada um dos presos caracteriza excesso no tratamento a ser conferido ou revela concretização dos direitos fundamentais encartados na Constituição da República? A concessão da liberdade provisória pela impossibilidade de fornecimento da alimentação adequada ao preso é sinônimo de impunidade?

Nesse contexto, cabe esclarecer, inicialmente, que a prisão possui duas formas distintas, quais sejam: 1) a prisão-pena, oriunda de uma decisão condenatória transitada em julgado que impõe ao preso penas de reclusão ou detenção; e 2) a prisão de natureza cautelar, com intuito de preservar a ordem pública, a ordem econômica, para conveniência da instrução criminal e/ou com finalidade de assegurar a aplicabilidade da pena.

Em ambas as hipóteses, a dignidade humana do apenado deve ser assegurada, assim como seus direitos e garantias fundamentais, exceto a liberdade de locomoção, restringida no âmbito do processo criminal (artigo 5, LIV da Constituição da República), sendo expressamente vedada pela Constituição da República a aplicação de penas cruéis (artigo 5, XLVII, alínea "e" da Constituição da República).

No entanto, na prática não é isso o que percebemos.

Nada obstante o artigo 1º da Lei 7.210/84, disponha que a "execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado", é notório que grande maioria da população possui enraizada a mentalidade de que a prisão consiste no pagamento de um débito com a sociedade, sendo uma forma de vingança pelo mal praticado.

Na prática, nosso sistema de execução penal é uma mescla das teorias da retribuição e da dissuasão segundo as quais a pena representa uma compensação pelo mal causado, devendo acarretar sofrimento ao preso, atingindo sua dignidade como forma de pagamento pela prática de um crime, não havendo distinção entre aquele que está em uma prisão cautelar e preso já condenado, que cumpre a pena a ele imposta. Vale ressaltar, no entanto, que esse raciocínio está completamente divorciado da nossa realidade legal.

Em um cenário onde há uma prisão cautelar, nos resta esclarecer que, conforme o artigo 5º, inciso LVII, da CR diz que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", seria dizer que não há motivo algum para aquele que está preso cautelarmente ser tratado como culpado, pois está no curso de um processo criminal que visa a esclarecer a verdade real sobre os fatos narrados na denúncia e, em outro cenário onde há a execução de uma pena, afirma o artigo 3º da Lei de Execução Penal que "ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei" e, para fortalecer esse argumento, o artigo 5º, inciso XLIX da CR diz que "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral".

Nessa linha, nos resta dizer que se alguém é condenado por uma pena privativa de liberdade, não significa que suas garantias fundamentais devam ser suspensas ou violadas para satisfazer a execução daquela pena. Tal situação seria equiparada àquele que ingressa com uma ação cível indenizatória e consegue, através de sentença judicial, um título executivo para ser indenizado em R$ 10 mil, no entanto, no curso da execução o juiz da causa além de executar os R$ 10 mil, ele encerra todas as contas bancárias do executado, realiza inscrição em certidão negativa de que o mesmo é um cidadão indigno e, para finalizar, aquele executado ainda perderia propriedade de seu bem com a justificativa de que tal acréscimo na execução é justa, pois são efeitos consecutivos da execução e que o condenado deva sofrer o máximo possível para compensar aquela violação que ensejou tal indenização servindo como exemplo aos demais como forma de prevenção. Tal situação seria considerada verdadeira teratologia no mundo jurídico. Correto? Pois é exatamente isso que ocorre na execução penal em nosso país.

Achamos que restringir o máximo de direitos daquele que se encontra preso, seja por uma prisão-pena ou prisão de natureza cautelar, será garantir uma efetiva punição sob a mesma justificativa utilizada pelo deputado federal que afirmou que "não à toa temos toda essa criminalidade". Ora, a criminalidade é alta em razão da proteção dos direitos humanos daquele que está pagando seu débito com a sociedade ou pelo alto índice de corrupção que assola o nosso país, conforme o índice de percepção de corrupção? Não à toa, a cada dia que passa, a classificação desse índice de percepção da corrupção do Brasil cada vez piora e, junto com ela, também a violência.

Partindo para responder se a alimentação adequada ao preso provisório ou apenado é uma obrigação, de fato, do Estado, podemos introduzir com dispositivos legais que são trazidos pela Constituição da República. Diz o artigo 3º da CR o seguinte: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Ainda nesse raciocínio, temos no artigo 5º "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)".

A partir desses dispositivos, percebemos que qualquer cidadão brasileiro e estrangeiros residentes no país têm direito à vida. Tal garantia decorre dos objetivos fundamentais trazidos no seu artigo 3º da CR.

Neste contexto, ainda podemos citar o artigo 5.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos que diz: "Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano".

Para qualquer ser humano, a alimentação adequada é sua verdadeira fonte de vida. A alimentação é o que mantém o ser humano vivo. Se fosse diferente, a fome não seria uma das causas que mais gera morte no mundo. Segundo relatório da ONU, a fome atinge mais de 820 milhões de pessoas no mundo. Sob outro aspecto, já está comprovado através de estudos criminológicos que a nutrição adequada pode gerar uma mudança positiva no comportamento do ser humano. Diante de tal raciocínio, me surge a seguinte indagação: restringir os direitos humanos de alguém que está em cárcere é uma medida inteligente na eficácia da redução da criminalidade?

Essa resposta pode ser obtida através da neurociência social que está constantemente se desenvolvendo através de métodos de estudo. Os métodos buscam averiguar a confluência dos processos neurais e sociais, analisando a relação entre processos cerebrais e eventos sociais. A neurociência social está surgindo como um recurso importante para visualizar e compreender processos tão relevantes em nossa sociedade, como a agressividade e a violência, estresse e também fatores sociais positivos como a solidariedade e a empatia.

Trazendo para um campo mais prático, seria dizer que ninguém nasce mau e que não existe destino para ofensas futuras. Sendo assim, diversos fatores externos, contribuem para o comportamento agressivo, logo a prática de mais delitos.

Podemos citar como exemplo alguns estudos que apontam que a desnutrição na gravidez faz com que os filhos sejam propensos duas vezes e meia a mais em desenvolver transtornos de personalidade antissocial. A desnutrição pode implicar negativamente no cérebro do feto em desenvolvimento. Ainda poderíamos falar sobre a falta de sono que pode aumentar a agressividade no comportamento de uma pessoa. Na prisão, pessoas que apresentam comportamento agressivo são as que possuem o pior nível de sono. Há uma relação entre o não dormir suficiente e ter um comportamento antissocial.

Com isso, para reflexão, podemos nos fazer a seguinte pergunta: é inteligente e de melhor interesse social que haja restrição, suspensão ou violação de direitos e garantias daquele que está preso?

Pegando um gancho da pergunta anterior, apresentamos outra pergunta para reflexão: Por que a alimentação adequada deveria ser obrigação do Estado?

O Estado é obrigado, sim, em manter tal alimentação adequada. Digo adequada de forma individual e não genérica. Essa adequação individual não decorre somente de uma crença, como exemplo a situação de alguém ser vegano, mas, sim, por alguma particularidade individual na saúde daquele que está custodiado pelo Estado. Tal argumentação tem respaldo no artigo 5º, incisos II e VIII, da Constituição da República, onde afirmam que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" e "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei".

Se ocorrerem tais violações, estará configurado o crime de tortura, pela imposição arbitrária de tratamento desumano.

Entretanto, ao falarmos sobre esse assunto, não estamos falando somente do interesse daquele que está preso, mas, sim, da coletividade. Uma alimentação saudável, equilibrada e individualizada pode contribuir para a diminuição da violência e trazer uma segurança maior à população em geral.

Apenas para exemplificarmos, a neurociência social já comprovou através de um estudo publicado na revista Aggressive Behavior, liderado por Jill Portnoy, da Universidade de Massachusetts Lowell, nos EUA, que o ômega 3 pode ser um componente essencial para auxiliar na redução da agressividade, pois é muito importante para a função e estrutura cerebral. O ômega 3 está envolvido no funcionamento de neurotransmissores, regula a expressão genética e está envolvido na melhoria de neurites.

Trazendo esse fato para a nossa realidade, seria considerado verdadeiro absurdo incluir na alimentação do apenado ou do preso cautelar suplementação alimentar de ômega 3. Muitos afirmariam que seria tratamento luxuoso ou um gasto desnecessário com aqueles que merecem pagar pelos crimes cometidos e que seria uma forma de fomentar mais a criminalidade e impunidade. Porém, já está comprovado que restringir direitos pode acarretar uma evolução na violência e respeitar os direitos humanos contribuem para uma ressocialização daquele que esteve preso gerando uma segurança jurídica muito maior para a população.

Tal tratamento deve ser considerado como uma forma de prevenção para que novos delitos não ocorram no futuro, pois aquele que está preso um dia irá sair da prisão. Ao deixar a prisão, estará com todas as suas funções neurais alteradas e com fortes tendências antissociais. Consequentemente, terá grandes chances de vir a delinquir novamente.

A ressocialização vai muito além de guardar os direitos daquele custodiado. A ressocialização serve como uma política criminal que realmente visa minimizar os efeitos negativos futuros de uma execução penal. É uma forma de trazer uma segurança maior para a população inteira.

Os países desenvolvidos já perceberam que uma execução penal baseada na teoria da reabilitação é a melhor solução para a sociedade.

A Noruega, por exemplo, possui um sistema totalmente voltado à teoria da reabilitação. Acreditam que esse sistema de reabilitação do preso é do maior interesse público, em termos de segurança. O seu sistema de execução penal exclui a ideia de vingança que não funciona, e se foca na reabilitação do criminoso, que é estimulado a fazer parte de um sistema progressivo de benefícios dentro das instituições penais.

Como exemplo, temos a prisão Halden Fengsel. Trata-se de uma penitenciária de segurança máxima que é reconhecida como "a cadeia mais humanizada do mundo", segundo Linn Andreassen, guarda na prisão de Halden, na Noruega, que descreveu o lugar para o Jornal BBC.

Andreassen afirma ainda que "nós não temos grades. Temos janelas".
"Você se sente uma pessoa, não um bicho. Acho isso muito importante", diz ela.

Muitos já criticaram o sistema prisional da Noruega por o considerarem demasiadamente brando. No entanto, já está comprovado que a taxa de reincidência daqueles que saem da penitenciária é extremamente baixa. Isso ocorre em razão de os presos serem tratados de forma humana. Praticam inúmeras atividades que visam aprimorar a o intelecto e são alimentados de maneira adequada para que exista a redução de tendências antissociais. Com isso, o preso estará reabilitado para viver em sociedade.

Respeitar os direitos humanos de quem está preso não fomenta o aumento da violência ou não é considerado como sinônimo de impunidade. Já está comprovado que o respeito à dignidade da pessoa humana gera um resultado positivo no comportamento daquele que está sendo custodiado pelo Estado. Não nos cabe sermos defensores da justiça e, ao mesmo tempo, da vingança. A justiça, como ideal, gravita em torno de três ideais: aumentar o bem-estar material da sociedade, respeitar a liberdade dos cidadãos e promover a virtude. Esses devem ser os nossos ideais para trazer melhoria para o nosso país. Se colocarmos na balança, restringir direitos do preso sai muito mais caro para a sociedade do que respeitá-los.

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  • é advogado, pós-graduado em Direito penal e criminologia pela PUC-RS, membro do IBCCRIM (instituto Brasileiro de Ciências Criminais), cursos concluídos de terrorismo e leis humanitárias nas universidades de Leiden e de Stanford, nos Estados Unidos.

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