Opinião

Discricionariedade e vinculação quanto ao prazo das concessões rodoviárias

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9 de fevereiro de 2021, 6h33

No dia 21 de janeiro, o Ministério da Infraestrutura editou a Portaria nº 3, estabelecendo diretrizes para a extensão de prazo das concessões da primeira etapa do Programa de Concessões de Rodovias Federais. Tratam-se de concessões antigas, do início dos anos 90, em vias de extinção pelo decurso de prazo. Há preocupação quanto à passagem da atividade das atuais concessionárias às vencedoras das licitações futuras. Espera-se que a transição ocorra sem prejuízo a usuários e a munícipes afetados pelas vias.

A portaria lista quatro "considerando" na fundamentaçã, e, em seus artigos de conteúdo, informa que o Ministério da Infraestrutura indicará, por escolha discricionária, quais contratos poderão ter seu prazo de extensão prorrogado até a conclusão dos certames licitatórios.

Pois bem. Interessa-nos analisar a discricionariedade na escolha das extensões de prazo das atuais concessões. A proposta é compreender o regulamento pelo que ele é — um ato administrativo normativo — e, portanto, um ato administrativo — que se vincula às razões que enuncia. Explico.

O professor Gaston Jèze, a partir da terceira edição de seu livro "Princípios Gerais de Direito Administrativo", analisou a jurisprudência do Conselho de Estado francês e sintetizou, em 11 afirmações, o entendimento daquela corte sobre o controle do motivo do ato administrativo. A terceira era a seguinte: "Quando um agente público expressa, no próprio ato, os motivos que o fizeram agir, estes motivos, na forma como estão expressos no ato, consideram-se, em princípio, determinantes" [1]. A recepção dessa afirmação, pela literatura brasileira de Direito Administrativo, gerou o que passou a ser conhecido, entre nós, como teoria dos motivos determinantes. Por ela, o ato fica vinculado à existência dos motivos declarados. A teoria é de ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial.

Ora: considerandos de regulamentos não são, por vezes, tidos como motivos determinantes. São percebidos como elementos linguísticos que servem para indicar o contexto; seu valor passa a ser, no máximo, exegético.

Mas não há razão para isso. Considerandos são razões para o ato, não importando se este é individual, coletivo — ou normativo. Além disso, se o Direito não tolera palavras inúteis, por que haveria de admitir trechos inteiros sem qualquer propósito? Vale lembrar que o Direito contemporâneo inclina-se por reconhecer necessidade de fundamentação das próprias leis [2]. Ou a fundamentação vale — e aí vale para tudo —, ou é retórica vazia, as tais "palavras, palavras, palavras" da resposta de Hamlet a Polônio.

Mas retomemos, conclusivamente, o ponto. O regulamento do ministério, a partir da literalidade de seus considerandos, estabelece premissas para a extensão do prazo das concessões findantes: 1) a necessidade de evitar a descontinuidade do serviço; 2) a evitação de oscilações abruptas no valor da tarifa; 3) a evitação da criação de passivos contra a União. Preenchidos tais requisitos, o Ministério deve conceder a extensão de prazo.

Num contexto de restrição orçamentária, qualificada por uma inédita pandemia, não parece, afinal, jurídico que a União assuma diretamente a execução de serviços sem, antes, planejar bem as transições. Pode-se estar abrindo caminho à interrupção dos serviços, às oscilações de tarifa, à geração de passivos administrativos e judiciais — os quais serão arcados ou pela nova concessionária (logo: pelo usuário) ou pela União (logo: pelo povo). Aliás, o risco de tais consequências deve ser indicado na motivação da escolha por estender ou não a concessão, em atenção ao artigo 20 da LINDB.

Enfim: prestigiar a Administração Pública é ser deferente não apenas com seus atos lícitos, mas, também e especialmente, com suas razões.

 


[1] Esta obra de Jèze pode ser consultada, na íntegra, em tradução para a língua espanhola, no site da biblioteca da Universidade Autônoma do México. O link é o seguinte:<<http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/libro.htm?l=443>>.

[2] Ana Paula de Barcellos, Direitos fundamentais e direito à justificativa. Fórum, 2017.

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