Opinião

A colaboração premiada e o acesso aos autos pelo delatado

Autor

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

8 de fevereiro de 2021, 6h07

A definição da competência para a homologação dos acordos de colaboração premiada segue as regras processuais penais de fixação da competência [1]. Se entre os relatos delitivos houver menção da atuação de autoridades dotadas de foro por prerrogativa de função, o juízo competente para a análise e para a eventual homologação do acordo de colaboração premiada será o dotado de competência para a investigação.

Desse modo, apenas quando houver relatos criminosos envolvendo autoridade dotada de prerrogativa de foro o juízo competente para a homologação do acordo de colaboração será um tribunal. Nesse caso, com a homologação do acordo, os anexos que não envolvam autoridades com foro por prerrogativa de função no juízo homologador deverão ser enviados à esfera jurisdicional competente para posterior encaminhamento ao órgão ministerial dotado de atribuição para adoção das providências persecutórias cabíveis [2].

Cada relato, separado por anexo, apresentado pelo colaborador poderá resultar em uma investigação específica junto à esfera jurisdicional competente, ser incorporado a uma investigação ou juntado a uma ação penal em curso. Já os autos principais do acordo de colaboração premiada serão mantidos para acompanhamento da execução do pacto e eventuais decisões sobre controvérsias que surjam sobre a avença. O acompanhamento da execução pode ser delegado a outro juízo, porém as questões de mérito do acordo, como pedidos de compartilhamento ou a rescisão do pacto, continuam sobre a atribuição do juízo homologador [3].

E o pedido de acesso aos autos do acordo de colaboração premiada, a quem caberá decidir?

Em regra, o sigilo do acordo de colaboração premiada só será afastado, de acordo com o §3º do artigo 7º da Lei nº 12.850/2013, com o recebimento da denúncia [4].

Ocorre que, conforme ressaltado acima, o acordo de colaboração pode englobar diversos relatos (anexos). Cada relato (anexo) pode gerar uma investigação autônoma. O sigilo do relato, que resulta em uma investigação, só será afastado de maneira geral, não com relação ao delatado, que desde o início da investigação poderá acessá-la, com o recebimento da denúncia. Mesma sistemática será adotada com relação aos demais anexos.

O sigilo do acordo de colaboração previsto no citado dispositivo será compatibilizado com a previsão normativa da Súmula Vinculante nº 14 [5] por meio da disponibilização ao delatado apenas dos fatos e elementos de corroboração apresentados pelo colaborador que o digam respeito. O delatado não tem direito de acessar todo o teor do acordo de colaboração, sob pena de violação do sigilo [6].

Em regra, o juízo que decidirá sobre o que poderá ser disponibilizado ao delatado em razão de um acordo de colaboração é o de homologação, visto que, repita-se, continua sendo o responsável pelas análises de mérito inerentes ao acordo.

Contudo, conforme ressaltado anteriormente, muitos dos anexos de um acordo de colaboração celebrado em um tribunal, em razão de prerrogativa de foro de um ou alguns dos delatados, poderão resultar em investigações específicas em juízo diverso do investigado. Nesse caso, também caberá ao juízo responsável pelo acompanhamento da persecução penal decidir sobre a possibilidade de acesso aos autos por parte do delatado. Essa situação não envolve uma questão de análise dos limites do sigilo de um acordo de colaboração premiada, mas de controle do andamento da investigação nos termos do referido enunciado jurisprudencial.

O caso, portanto, será de competência concorrente do juízo homologador, que poderá facultar ao delatado tomar conhecimento aos eventos e elementos que lhe digam respeito em razão da colaboração, ao tempo que caberá ao juízo recebedor do anexo e responsável pelo controle da investigação também analisar o pedido, porém sob o enfoque dos limites inerentes ao andamento da marcha investigativa.

 


[1] "Habeas Corpus. 2. Inquérito originário do Superior Tribunal de Justiça. Delitos de corrupção passiva (art. 317 do CP), lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei 9.613/98) e falsidade ideológica eleitoral (art. 350 do Código Eleitoral). 3. Conforme art. 4º, § 7º, da Lei 12.850/13, o acordo de colaboração premiada “será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade”. Muito embora a lei fale apenas em juiz, é possível que a homologação de delações seja da competência de Tribunal. O colaborador admite seus próprios delitos e delata outros crimes. Assim, quanto à prerrogativa de função, será competente o Juízo mais graduado, observadas as prerrogativas de função do delator e dos delatados. Precedentes. 4. Acordos de colaboração premiada celebrados pelo Ministério Público Estadual e homologados por Juiz de Direito, delatando Governador de Estado. Ilegitimidade e incompetência. 5. Legitimidade da autoridade com prerrogativa de foro para discutir a eficácia das provas colhidas mediante acordo de colaboração realizado sem a supervisão do foro competente. A impugnação quanto à competência para homologação do acordo diz respeito às disposições constitucionais quanto à prerrogativa de foro. Assim, ainda que, ordinariamente, seja negada ao delatado a possibilidade de impugnar o acordo, esse entendimento não se aplica em caso de homologação sem respeito à prerrogativa de foro. Inaplicabilidade da jurisprudência firmada a partir do HC 127.483, rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, julgado em 27.8.2017. 6. Ineficácia, em relação ao Governador do Estado, dos atos de colaboração premiada, decorrentes de acordo de colaboração homologado em usurpação de competência do Superior Tribunal de Justiça. 7. Tendo em vista que o inquérito foi instaurado tendo por base material exclusiva os atos de colaboração, deve ser trancado. 8. Concedida a ordem, para reconhecer a ineficácia, em relação ao paciente, das provas produzidas mediante atos de colaboração premiada e, em consequência, determinar o trancamento do Inquérito 1.093, do Superior Tribunal de Justiça". STF. 2ª Turma. HC 151605/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 20/3/2018.

[2] "Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NA PETIÇÃO. TERMOS DE DEPOIMENTO PRESTADOS EM ACORDOS DE COLABORAÇÃO PREMIADA. AUSÊNCIA DE MENÇÃO À AUTORIDADE OCUPANTE DE CARGO COM FORO POR PRERROGATIVA NESTA SUPREMA CORTE. DECLÍNIO DA COMPETÊNCIA. JUÍZO PREVENTO. CONEXÃO DOS FATOS COM OPERAÇÃO DE REPERCUSSÃO NACIONAL. ANÁLISE APROFUNDADA INVIÁVEL. INSURGÊNCIA DESPROVIDA. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal passou a adotar como regra o desmembramento dos inquéritos e ações penais originárias no tocante a co-investigados ou corréus não detentores de foro por prerrogativa de função, admitindo-se, apenas excepcionalmente, a atração da competência originária quando se verifique que a separação seja apta a causar prejuízo relevante, aferível em cada caso concreto. 2. A existência ou não de conexão da narrativa feita pelos colaboradores com a operação de repercussão nacional deve ser deliberada, se ainda não preclusa, pelo juízo prevento, evitando-se, assim, a indesejada litispendência, mormente quando lá tramitam ações que têm por objeto os mesmos fatos citados nos depoimentos aqui em exame. 3. Agravo regimental desprovido" (STF – Pet 6727 AgR / DF).

[3] Vide STF AG. REG. Na Petição n. 7.065.

[4] "Art. 7º O pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto.
(…)
§3º. O acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese".

[5] É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

[6] "EMENTA Agravo regimental na reclamação. Representação criminal. Instauração com base em termos de colaboração premiada. Negativa de acesso da defesa aos respectivos autos. Invocação genérica da regra do sigilo da colaboração premiada (art. 7º, § 3º, Lei nº 12.850/13). Inadmissibilidade. Fundamentação inidônea. Direito de acesso aos elementos de prova já documentados e que digam respeito ao agravante. Ressalva tão somente das diligências em curso. Precedentes. Inteligência da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal. Recurso provido para, admitida a reclamação, julgá-la procedente. 1. O direito do investigado de ter acesso aos autos não compreende diligências em andamento, na exata dicção da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal. 2. Na espécie, o juízo reclamado em momento nenhum assentou que no procedimento sob sua jurisdição, no qual o agravante figura na condição de investigado, existiriam única e exclusivamente diligências em andamento que precisariam ser preservadas. 3. A decisão reclamada, de cunho genérico, não se lastreia em nenhuma peculiaridade do caso concreto para justificar a negativa de acesso aos autos pela defesa, limitando-se a invocar a regra legal do sigilo dos depoimentos prestados pelo colaborador (art. 7º, § 3º, da Lei nº 12.850/13), cuja finalidade seria “preservar a eficácia das diligências investigativas instauradas a partir do conteúdo dos depoimentos e documentos apresentados pelo colaborador”. 4. Limitou-se o juízo reclamado a aduzir que o agravante já teria obtido “acesso aos depoimentos [dos colaboradores] publicizados perante o Supremo Tribunal Federal”, e que não lhe cabia, “sob prejuízo das investigações, acompanhar em tempo real as diligências pendentes e ainda a serem realizadas”. 5. Essa fundamentação é inidônea para obstar o acesso da defesa aos autos. 6. O Supremo Tribunal Federal assentou a essencialidade do acesso por parte do investigado aos elementos probatórios formalmente documentados no inquérito – ou procedimento investigativo similar – para o exercício do direito de defesa, ainda que o feito seja classificado como sigiloso. Precedentes. 7. Nesse contexto, independentemente das circunstâncias expostas pela autoridade reclamada, é legitimo o direito de o agravante ter acesso aos elementos de prova devidamente documentados nos autos do procedimento em que é investigado e que lhe digam respeito, ressalvadas apenas e tão somente as diligências em curso. 8. Agravo regimental provido para, admitida a reclamação, julgá-la procedente" (STF – Rcl 28903 AgR/PR).

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