Opinião

Orçamento de guerra e outras vicissitudes

Autor

  • José Marcos Domingues

    é professor doutor da Universidade Católica de Petrópolis professor titular aposentado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

2 de fevereiro de 2021, 11h05

Uma emenda constitucional contra o novo coronavírus. E agora?

O fenômeno da constitucionalização do Direito Financeiro e Tributário é um desses capítulos já clássicos na doutrina. Principia na Magna Charta inglesa de 1215, gérmen da separação e controle dos poderes estatais, ao dispor sobre tema sensível das finanças públicas, a contenção do poder político através de uma de suas mais pujantes expressões, que é o poder financeiro: "No scutage nor aid shall be imposed unless by the Common Counsel" (artigo 12), ou simplesmente "no taxation without representation", na famosa súmula legada pelos bretões à civilização humana.

Fato é que nas mais prestigiosas Constituições democráticas encontram-se disposições inspiradas naquela Carta Magna. A profundidade do "no taxation without representation" não se esgota numa regra simplesmente tributária, ou de processo legislativo tributário, pois encerra em si algo mais denso, nada menos do que o princípio da legalidade financeira; ali está embrionariamente a submissão da Administração Pública ao Parlamento também no atinente ao implícito poder de controle do uso dos dinheiros públicos; e, por que não?, à necessidade de planejamento do gasto público a exigir a correspondente orçamentação: controle prévio e ulterior do plano de governo e de sua boa execução.

Esse princípio de legalidade financeira depois se especializaria em legalidade tributária e legalidade orçamentária: com a institucionalização das finanças públicas e a criação de tributos permanentes, da primitiva exigência de aprovação prévia a cada despesa de per si (embaixadas, guerras, aberturas de caminhos, construções de pontes e outras melhorias), passou-se ao necessário controle das respectivas arrecadações e suas relações com os gastos de manutenção e de investimentos públicos; em suma: controle da receita e da despesa, o que se haveria de fazer com base em um plano de governo (prometido ao povo em eleições — o orçamento) que, aprovado previamente, pudesse ser acompanhado pelo Parlamento, representação política do povo eleitor.

Dadas as razões práticas, a periodicidade dos orçamentos e a respectiva auditoria (ou tomada de contas) seriam estabelecidas em bases anuais, ensejando a anualidade orçamentária e também a anualidade tributária.

Legalidade financeira, planejamento e controle dos dinheiros públicos, eis aí o cerne material da constitucionalização do direito financeiro. Como se vê no exemplo norte-americano, a sucinta cláusula "due process of law" foi origem de elaborações doutrinárias e jurisprudenciais acerca de garantias cidadãs como o "tax ability" (capacidade contributiva), bem explicadas entre nós por Sampaio Dória em seu memorável "Direito Constitucional Tributário e due process of law".

Diferenças culturais à parte, nota-se hoje uma certa exacerbação da constitucionalização do direito financeiro e tributário, fenômeno que não é privativo deste ramo jurídico, mercê da progressiva expansão das chamadas constituições analíticas.

Nesta pandemia da Covid-19 vê-se que não foi suficiente atender às exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal-LRF (artigo 65 da Lei Complementar, 101/2000), sendo necessário cogitar-se de emenda constitucional para permitir resposta válida a essa emergência de saúde e a fortiori da economia nacional, criando-se um orçamento de guerra com o afastamento da constitucionalizada regra de ouro das finanças públicas (artigo 167, III, da Constituição Federal: não pode o Estado endividar-se para custeio de despesas correntes; não deve o Estado comprometer os recursos do futuro para manutenção da máquina administrativa hoje). Fora de dúvida que esta regra tem por base o princípio da equidade intergeracional, bem lembrado pelo professor Marcus Abraham em live recente. Mas o que se deseja realçar é que semelhante nível de detalhamento talvez não coubesse na Constituição, mas mais propriamente numa Lei Geral de Direito Financeiro, que é a LRF, onde bastaria a regra de ouro estar positivada.

Fato é que não bastou ao Poder Executivo a decretação da calamidade pública, nem ao Congresso Nacional referendá-la, nem ao Supremo Tribunal reconhecer a observância da LRF; foi preciso cogitar-se de uma solene Emenda Constitucional, de nº 106/2020, para autorizar o endividamento extraordinário de combate à pandemia (artigo 4º): soa demasiada mais uma Emenda (e já são mais de 105 em 32 anos!), que, ao fim e ao cabo, convalidou (artigo 10) os atos já praticados pelo governo à margem da Constituição, mas ao amparo do poder-dever de administração, reconhecendo, pois, o endividamento condenado pela regra de ouro indevidamente constitucionalizada, à semelhança do que foi a regra do juro real na redação originária da CF de 1988 (artigo 192, §3º) — revogada pela EC nº 40/2003.

Diante da necessidade de revisão do pacto federativo nacional, estratificado na Constituição, cujo detalhamento financeiro-tributário poderia estar melhor detalhado em leis gerais — de que é exemplo o Código Tributário Nacional — talvez seja hora de rever é o modelo, concentrando-se a Constituição naquilo que lhe é mais materialmente próprio.

Se após a pandemia da Covid-19 a humanidade não será a mesma, também não será o mesmo o ambiente constitucional pátrio porque já não será a mesma a cidadania brasileira: mais madura e consciente, mais convencida de que sem democracia financeira não há democracia política.

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