Garantias do Consumo

O enfraquecimento da tutela administrativa dos vulneráveis (Parte 2)

Autores

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

  • Marcelo Gomes Sodré

    é advogado professor da PUC-SP diretor do Brasilcon doutor em Direitos Difusos pela PUC-SP assessor da comissão que redigiu o Código de Defesa do Consumidor conselheiro do Idec e ex-diretor do Procon-SP.

29 de dezembro de 2021, 8h00

Na coluna do último dia 8 [1], o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) apresentou análise preliminar quanto ao PL 2766 em trâmite na Câmara dos Deputados, cujo escopo é alterar o Código de Defesa do Consumidor no capítulo da tutela administrativa, considerando alegadas ações "descoordenadas" e "leoninas" das autoridades fiscalizatórias. Quando da confecção do texto, para surpresa geral, houve a edição superveniente do Decreto 10.887/21, que altera em grande parte o Decreto 2.181/97, que dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC).

Foram dois sucessivos sobressaltos. O primeiro verificado na tentativa de modificação do microssistema de defesa do consumidor, sem o cuidado de preservar o historicismo axiológico, as diretrizes estruturais e funcionais, os princípios nucleares, bem como os valores fundamentais dos quais o Código de Defesa do Consumidor sempre foi cativo por clara filiação à legalidade constitucional. O segundo caraterizado pela antecipação dos péssimos efeitos desejados pelo PL 2766, entretanto através do Decreto 10.887/21.

Referido decreto valeu-se da notória função regulamentar de texto de lei para, arrimado na prescindibilidade de submissão prévia ao Parlamento, alcançar não apenas os mesmos objetivos expostos no PL 2.766, como fazer o pior: trazer ao mundo jurídico normas de natureza secundária discrepantes da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor e altamente daninhas à manutenção do SNDC.

As inconsistências estão presentes desde a "concepção" até o "conteúdo normativo" do decreto já em vigência.

Duas questões a respeito da concepção. A primeira voltada ao princípio democrático e que tem enorme reforço aos direitos fundamentais (o que é notadamente a qualidade do direito do consumidor na CF). As decisões políticas devem se pautar pela observância rígida de critérios democráticos como forma de manifestação e legitimação do poder (CF, artigo 1º, parágrafo único). Daí levar em consideração a contribuição efetiva de todos os interessados, a igualdade discursiva ou de voto, esclarecimentos prévios à regulamentação, assim como instrumentos de controle das deliberações [2]. Evidente que a edição de decreto, sob escotilhas e desprovido de debates, tem carga de legitimidade mitigada e desvalorizada. O princípio democrático ao longo da consecução do SNDC é valor que deve ser preservado, a fim de evitar imposições verticais [3].

É curial perceber o desdobramento da democracia, enquanto órbita constitucional, noutro instituto próprio dos lindes de Direito Administrativo e que se faz altamente adequado à hipótese em questão: o princípio da participação. Nesse caso, os usuários dos serviços públicos ganham protagonismo na colaboração ativa quanto à gestão e controle da Administração Pública [4]. Enfim, preceito também desperdiçado pelo súbito édito.

E justamente nesse ponto, o Decreto 10.887/21 já se faz combalido quando cotejado frente às exigências sistêmicas de "segurança jurídica" — pretexto pelo qual foi expedido. Sendo o decreto considerado ato administrativo normativo [5], cumpria aos editores preservarem a necessidade de consulta pública prévia quanto ao conteúdo à comunidade e aos componentes do SNDC (Lindb, artigo 29). A orientação é a de que as decisões jurídicas devam superar o monólogo do "ato administrativo autista" para dar concretude à processualidade administrativa com a permeabilidade de todos os interesses envolvidos [6].

Infelizmente, o decreto apresentado se descurou dessas exigências preferindo a surpresa, a oportunidade e a ruptura da dialogicidade. Na base, portanto, enfrenta sérias pendências no que respeita à legitimidade e à legalidade.

A segunda questão relativa à concepção é a contrafação ao princípio federativo. Referido princípio, ao lado do republicano, é vital ao Estado democrático de Direto, tanto que se faz cláusula pétrea de forma a impedir quaisquer emendas constitucionais tendentes a suprimi-lo (CF, artigo 60, §4º, inciso I). Via de consequência, tem reflexo direto na preservação da autonomia dos estados, Distrito Federal e municípios, configurando expressão da necessidade de simetria e igualdade de forças entre os membros da federação, o que entre nós se conhece como "divisão horizontal dos poderes" [7].

O princípio do federalismo tem assento na evitabilidade de governos totalitários, impedindo a acumulação de poderes em órgão único e fomentando amplas participações na esfera política. No caso do SNDC, o consumidor, não encontrando resposta adequada na instância federal, pode-se valer das competências locais (inclusive mais próximas, menos dispendiosas e cativas ao foro indicado no próprio CDC). Destarte, não há dúvidas: princípio que assegura o superávit democrático estrutural do Estado contemporâneo se afina com as liberdades fundamentais, distribui os deveres de proteção e faz valer a vida digna [8].

Entrelaçando o princípio federativo e a autonomia dos entes estatais, a forma de concreção de ambos os standards se dá inequivocadamente através da competência. Como a matéria de consumo envolve toda a sociedade, todas as pessoas, todo o mercado, torna-se impossível tão somente à União regulamentar a matéria, o que foi percebido pelo constituinte, especialmente no âmbito da fiscalização e das sanções. E, nesse ponto, a atuação deve ser coordenada e conjunta, superando a antiga distribuição de competências, conforme o interesse nacional ou regional [9], para valorizar o interesse ao vulnerável [10].

O Decreto 10.887/21 concentra na Senacon poderes que exorbitam a concepção federada da República, afeta a autonomia dos estados, Distrito Federal e municípios e se opõe totalmente à competência estabelecida na legalidade constitucional (CF, artigo 24, inciso V e VIII). Lamentavelmente, criou-se figura hercúlea que a tudo pode sobre o todo, criando regras e ao mesmo tempo proferindo decisões em detrimento ao texto constitucional (CF, artigo 102, inciso I, f).

No que respeita ao conteúdo do decreto, observe que o texto, além de repisar a mesma aberração contida no PL 2766 ao estabelecer órgão coordenador do SNDC como responsável pela decisão de idênticos fatos geradores iniciados em mais de um estado (criando odiosa relação de subordinação entre entes), ainda imputa ao Secretário Nacional legitimidade específica para fixar critérios de valoração de circunstâncias agravantes e atenuantes e fixação da pena-base, aniquilando esse poder-dever das demais unidades.

Nesse último aspecto, o decreto esbarra na atuação das demais instituições de proteção ao consumidor espalhadas pela federação, conforme os interesses dos vulneráveis por elas tutelados e nas respectivas regras já vigentes, eis que interfere na aplicação e dosimetria das sanções provenientes do caráter repressivo (CDC, artigo 54). Como cumprir o dever vinculativo de proteção se as unidades federativas perdem na fixação da dosimetria das sanções, expressão fundamental de razoabilidade e proporcionalidade inerente à própria atividade sancionadora? E quanto às normas premiais, somente à Senacon caberá dispor?

Não fosse isso, o decreto adenda certa "atribuição geral" que garante à Secretaria Nacional "a expedição de atos administrativos com vistas à observância das normas de proteção e defesa do consumidor, facultada a oitiva do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor".

Essa posição assimétrica vai contra justamente o que se pretendeu produzir na alteração do Decreto 2.181/97: a inovação e a segurança jurídica. Na medida em que o SNDC deixa de ser democrático e respeitoso à noção federativa, a perspectiva que se tem é a de que os órgãos de proteção dos consumidores dos estados, Distrito Federal e municípios estariam sujeitos à Senacon. E, nessas circunstâncias, restará para sindicabilidade dos atos administrativos editados apenas a via da judicialização, o que será muito comum, dada a intensa conflituosidade inerente ao sistema.

Enfim, o Poder Judiciário passará a ser convocado não só para tratar indiretamente das sanções cominadas mediante as conhecidas ações anulatórias distribuídas em face dos órgãos de fiscalização, mas para rever o conteúdo e qualidade do poder normativo exercido pela "autoridade nacional".

De outro lado, se no modelo substituído a coordenação entre as competências era exigência constitucional exatamente para efetividade dos deveres fundamentais de proteção do Estado ao consumidor, a concentração dos poderes normativos num só ente federativo tornará duvidoso o comprometimento da defesa do consumidor, já que seria impossível a União ter resposta a todas as demandas espalhadas no país.

Ademais, o texto "legal" ressuscita (literalmente) preocupação anterior do SNDC: a lei de liberdade econômica (lei 13.874/19). Referida legislação, "promotora de ambiente negocial" e sob o viés do empreendedorismo, quando dos debates no Congresso Nacional para votação e aprovação não conseguiu promover qualquer alteração no Código de Defesa do Consumidor. Apesar da então Medida Provisória nº 881/19, em que se fazia o texto inaugural, ter dispositivo quanto às relações de consumo, não houve por parte do Parlamento concordância em qualquer modificação do CDC. Contudo, o Decreto 10.887/21 retoma referida legislação no âmbito das relações de consumo (sem o aval legislativo), exatamente no capítulo das práticas abusivas ensejadoras de danos e riscos desnecessários ao consumidor.

Entretanto, se o decreto se valeu dessa legislação "libertária" deveria atendê-la na plenitude e apresentar o impacto regulatório exigido pelo disposto no artigo 5º [11], revelando, efetiva e minudentemente, não apenas as "consequências" da edição, eficiência e eficácia da respectiva aplicação, mas ainda a ostentada "segurança jurídica" que lhe tenciona proteger.

O preceito dos direitos humanos, que determina a "interpretação mais favorável aos vulneráveis", restou notadamente atropelado na simples edição desse decreto. Ao consumidor não se fizeram as mesuras e garantias administrativas exigidas pela Constituição Federal. Se houve beneficiado, não foi o consumidor. O discurso — oportunamente inadequado — quanto ao conceito de "segurança jurídica" carece de pontual "desmitologização" [12], pois na forma como disposta entre a causa subjacente e o texto produzido se percebe falsa realidade incompatível com os direitos fundamentais do consumidor.


[2] DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia. Brasília: UnB, 2001, p. 50-53.

[3] BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade – para uma teoria geral da política. 12. ed. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 155-156. Já esclareceu: "O processo de alargamento da democracia na sociedade contemporânea não ocorre apenas através da integração da democracia representativa com a democracia direta, mas também, e, sobretudo, através da extensão da democratização – entendida como instituição e exercício de procedimentos que permitem a participação dos interessados nas deliberações de um corpo coletivo – a corpos diferentes daqueles propriamente políticos".

[4] GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. A participação popular e a consensualidade na Administração Pública. In: Uma avaliação das tendências contemporânea do direito administrativo. Diogo de Figueiredo Moreira Neto. (coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 649.

[5] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. 5ª ed. Belo Horizonte: Fórum, p. 2016, p. 202.

[6] Aliás, é a esta a lição de MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras. Comentários à lei nº 13.655/2018: lei da segurança para inovação pública. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 148. Refletem: "daí por que a consulta pública deve ser modelada, de sorte a reduzir eventuais assimetrias de informações existentes entre o Poder Público e os administrados. Assim é que, ainda que a manifestação dos administrados não vincule a decisão do poder público, este terá o dever de se manifestar acerca da contribuição dos administrados (sob pena de se gerar o conhecido efeito da fadiga das consultas públicas)".

[7] SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 372.

[8] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo, Saraiva, 1972, pp. 226-227.

[9] CARRAZA, Roque Antônio. Lesão ao consumidor. Responsabilidade administrativa. Competência estadual para a matéria. São Paulo: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. v 4. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2011, p. 511-533.

[10] BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. 3ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 222. Assevera: "Mais decisivo que tudo para a constitucionalização do direito administrativo, foi a incidência no seu domínio dos princípios constitucionais […] a partir da centralidade da dignidade humana e da preservação dos direitos fundamentais, alterou-se a qualidade das relações entre a Administração e administrado, com a superação ou reformulação de paradigmas tradicionais".

[11] "Artigo 5º – As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico".

[12] PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 38.

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