Opinião

Somente a União pode legislar sobre energia e águas

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28 de dezembro de 2021, 14h13

Com a devida vênia àqueles que defendem que compete ao município legislar sobre a vedação à implantação de empreendimentos hidrelétricos sob o pretexto de preservação ambiental, insta frisar que, apesar de não haver dúvidas sobre a competência concorrente dos entes federativos para legislar sobre meio ambiente (artigo 23, VI e VII) e a possibilidade de que os municípios instituam unidades de conservação em seu território, a Constituição Federal é expressa no sentido de que compete privativamente ou seja, tão somente à União legislar sobre águas e energia (artigo 22, IV).

Logo, uma proposta legislativa oriunda de qualquer outro ente federativo que vede ou crie obstáculos ilegítimos à construção desses empreendimentos caracteriza usurpação da competência privativa da União, revelando-se flagrantemente inconstitucional.

Não bastasse o comando constitucional  que não dá qualquer espaço para dúvidas , a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que não podem os estados e municípios elaborar leis estabelecendo restrições ou vedações à geração de energia elétrica, em razão da competência privativa da União para legislar sobre a matéria. Vejamos, a seguir, alguns exemplos:

1) Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.898, julgada em 18/11/2021: foram considerados inconstitucionais dispositivos da Constituição paranaense que tratam sobre resíduos nucleares e impõem condições para a construção de centrais termoelétricas, hidrelétricas e de perfuração de poços para a extração de gás xisto, em razão da violação à competência privativa da União para explorar tais serviços e legislar a seu respeito (artigos 21, XII, "b", XIX e XXIII, e 22, IV e XXVI, da Constituição Federal);

2) Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 452, julgada em 27/4/2020: foram julgadas inconstitucionais as expressões referentes ao fornecimento de "energia elétrica" e "Centrais Elétricas de Santa Catarina S/A Celesc", constantes do parágrafo único e caput do artigo 1º, caput do artigo 2º, caput do artigo 3º e caput do artigo 4º da Lei nº 7.015/2015 de Jaraguá do Sul (SC), diante da competência da união para explorar e legislar sobre energia elétrica;

3) Segundos embargos declaratórios no segundo agravo regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 764.029, julgados em 5/8/2020: a Suprema Corte reafirmou, no caso, a invasão da competência privativa da União para legislar sobre serviços de energia elétrica e sobre as condições mediantes as quais deve ser prestado, por parte da legislação do município do Rio de Janeiro, que pretendia impor às concessionárias de serviço público de eletricidade a eliminação da fiação elétrica aérea e sua implantação no subsolo;

4) Recurso Extraordinário nº 827.538, julgado em 11/5/2020: foram considerados inconstitucionais dispositivos da Lei Estadual 12.503/1997 do estado de Minas Gerais que criam obrigação para empresas concessionárias de serviços de abastecimento de água e de geração de energia elétrica, públicas ou privadas, a investir o equivalente a, no mínimo, 0,5% do valor total da receita operacional na proteção e na preservação ambiental da bacia hidrográfica em que ocorrer a exploração, ali apurada no exercício anterior ao do investimento, sob o fundamento da ocorrência de violação à competência constitucional privativa da União (artigo 21, XI, da Constituição Federal) e inaplicabilidade da competência comum do artigo 23 da Constituição Federal.

Ademais, é necessário lembrar o desconhecimento da população quanto aos benefícios socioambientais da geração de energia proveniente da fonte hidrelétrica, em especial as de pequeno e médio portes.

Especificamente sobre as centrais hidrelétricas de pequeno porte, conforme estudos elaborados pela respeitada A.T. Kearney [1], as centrais geradoras hidrelétricas (CGHs) e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) geram até cinco vezes mais empregos diretos e indiretos do que outras fontes renováveis. Além da baixa emissão de CO2, PCHs agregam na construção e na constituição de APPs no seu entorno; são revertidas para a União após o fim das outorgas, continuando a operar por mais de cem anos, o que somente é possível devido à longa vida útil da fonte; são a fonte de energia renovável que mais gera receita ao país, chegando entre 18% a 53% a mais do que as outras fontes de energia renovável; e são a fonte de energia renovável que mais contribui para a arrecadação de impostos, chegando a percentuais entre 51% a 189% a mais do que as demais fontes renováveis. Vale lembrar ainda que pesquisas [2] apontam a melhoria dos indicadores socioeconômicos em municípios com PCHs de forma significativa.

E mais.

O processo de licenciamento ambiental e implantação de usinas hidrelétricas é bastante rígido e complexo e considera necessariamente aspectos socioambientais. Seguindo estudos produzidos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) [3], na etapa de inventário hidrelétrico, faz-se a concepção e análise de diversas alternativas de divisão de quedas para uma bacia hidrográfica. As alternativas, que consistem em conjuntos de projetos hidrelétricos, são avaliadas de acordo com critérios econômicos, energéticos e socioambientais. Com base em comparações, seleciona-se aquela que apresenta melhor equilíbrio entre os custos de implantação, benefícios energéticos e impactos socioambientais. Após o inventário hidrelétrico, cada aproveitamento, individualmente, é objeto de estudos de viabilidade e de impacto ambiental, que visam a dar maior detalhamento e otimização técnica, econômica e socioambiental do projeto, bem como obtenção da licença ambiental prévia.

Nota-se, assim, que as características socioambientais de cada aproveitamento hidrelétrico são analisadas criteriosa e individualmente pelo órgão licenciador competente em cada região ou estado. Esse nível de detalhamento garante que cada projeto, ainda que o eixo da barragem esteja localizado na mesma bacia ou até mesmo no mesmo rio, venha acompanhado das respectivas medidas mitigatórias dos efeitos de sua implantação, assegurando o devido monitoramento ao longo de todo o período de operação da central geradora, das condições socioambientais consideradas durante a fase de licenciamento. O ganho, intangível, decorrente do detalhamento e da qualidade das informações, bem como da efetividade do referido monitoramento, é irrefutável.

Pelo exposto, verifica-se que, não bastasse o claro comando constitucional quanto à competência privativa da União para legislar sobre energia elétrica, os inúmeros e recentes precedentes da Suprema Corte corroborando tal comando, e os benefícios da fonte inclusive sob o aspecto ambiental , todo o processo de implantação dessas usinas necessariamente detalha e considera aspectos socioambientais.

Assim, deve ser respeitada a competência constitucional privativa da União para legislar sobre energia elétrica e águas, diante da prevalência do interesse nacional acerca desses temas, não sendo dado aos estados e municípios, pura e simplesmente, criar obstáculos ilegítimos ao exercício pleno dessa competência.

Charles Lenzi
é presidente executivo da Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa (Abragel)
Caetano Kraemer
é conselheiro da Abragel
Isabela Ramagem
é assessora de assuntos jurídicos e regulatórios da Abragel
João Paulo Pessoa
é sócio do escritório Toledo Marchetti Advogados
Ana Claudia La Plata de Mello Franco
é sócia do escritório Toledo Marchetti Advogados
João Marcos Neto de Carvalho
é sócio do escritório Toledo Marchetti Advogados

 


[1] Estudo de Condições para maior inserção das PCHs/CGHs na matriz elétrica brasileira, A.T.Kearney, fevereiro, 2020;

[2] SILVA, Ludimila Lima da. A compensação financeira das usinas hidrelétricas como instrumento econômico de desenvolvimento social, econômico e ambiental. 2007. 157 f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

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