Opinião

Virada jurisprudencial invalida abordagens policiais e anula provas

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13 de dezembro de 2021, 14h02

Vem se consolidando importante mudança na jurisprudência penal, que a meu ver representa um avanço em termos de respeito aos direitos e às garantias individuais.

Durante muito tempo, a jurisprudência considerou que a prisão em flagrante estava justificada quando, abordado o indivíduo por agentes policiais, fosse constatado que estava praticando algum delito, como portar drogas ou moeda falsa. Pouco se perquiria sobre a legitimidade da abordagem policial.

O mesmo acontecia com o ingresso em domicílio por agentes da lei, que redundam muitas vezes na prisão em flagrante dos ocupantes da residência. Aqui também o ingresso acabava legitimado pelo seu resultado, isto é, caso se tenha constatado uma situação qualquer de flagrância.

De há muito isso não é admitido em outros países. É preciso que haja uma justa causa ou fundadas razões para a busca pessoal ou domiciliar. Sabe-se, por exemplo, que na França é bastante polêmica a questão do "controle de identidade" (contrôle d’identité), sendo certo que o Conselho Constitucional daquele país já glosou artigos de lei e práticas administrativas que autorizavam controles dessa espécie generalizados e discricionários ou feitos com base na aparência das pessoas, muitas vezes contaminados por preconceitos raciais (o controle dito au faciès).

Em boa hora, a jurisprudência pátria começa também a invalidar esse tipo de atuação policial, havendo decisões nesse sentido do STF e do STJ e também já várias da nossa 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, especializada em matéria penal. Essas decisões exigem, nas diligências efetuadas pela polícia sem mandado judicial, que haja fundadas razões para a busca pessoal ou domiciliar; sem isso, mesmo que constatada situação de flagrância, a prova é anulada e o réu, na maioria das vezes, absolvido por ausência de outras provas válidas.

No Recurso Extraordinário 603.616, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, foi fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões. No Recurso Especial 1.871.856, de relatoria do ministro Néfi Cordeiro, adotou-se o entendimento de que "a denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado", anulando-se as provas, ainda que dentro da residência tenha sido encontrada droga; no Recurso Especial 1.576.623, de relatoria do ministro Rogério Schietti, o mesmo raciocínio foi aplicado, agora em relação a uma busca pessoal.

Nas decisões emanadas da 5ª Turma do TRF-3, também se tratava do ingresso em domicílio ou buscas pessoais. No caso da busca pessoal, a turma tem invalidado abordagens feitas com base na simples alegação de "comportamento suspeito" ou nervosismo do indivíduo, e exige elementos mais concretos que justifiquem as diligências (por exemplo: Apelações Criminais 0012737-67.2018.4.03.6181/SP; 0005519-56.2016.4.03.6181; 0001155-92.2014.4.03.6122; Recursos em Sentido Estrito 0000936-23.2017.4.03.6139/SP; 0011937-10.2016.4.03.6181).

Penso que a nova jurisprudência é, como dito, um avanço e protege sobretudo a parcela mais pobre da população moradora das periferias, onde são mais comuns as abordagens policiais abusivas, realizadas muitas vezes segundo o critério au faciès acima referido.

Mas, para que a mudança surta todos os seus efeitos benéficos, é preciso que as próprias polícias incorporem tais razões e adequem a sua atuação, podendo mostrar-se salutar também a atuação preventiva do Ministério Público no exercício do controle externo da atividade policial.

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