Opinião

ADPF 918, um monumento contra o aniquilamento da cultura

Autor

  • Mário Pragmácio

    é doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC–Rio) professor do Departamento de Artes e da pós-graduação em Cultura e Territorialidades da UFF e conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

10 de dezembro de 2021, 18h09

No começo deste ano, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 918) perante o Supremo Tribunal Federal no intuito de interromper a política cultural do governo Bolsonaro, que vem promovendo a ruína do setor cultural brasileiro.

Ao contrário do que muita gente defende, há, sim, uma política cultural do governo federal, alicerçada sobre as bases: 1) da criminalização do setor cultural; 2) do desmonte técnico-administrativo; e 3) do nacionalismo. É perversa, mas é uma política cultural, típica de projetos autoritários de poder.

A ação que a OAB propôs, e que será relatada pelo ministro Luiz Edson Fachin, tem como alvo esses dois primeiros pilares, especialmente pontuar os problemas de gestão ocasionados pelo desmonte administrativo e denunciar a criminalização do setor cultural, não raro manifestada através de censura velada ou explícita, que podem ser entendidos como a marca registrada dessa política.

Quem quiser entender o terceiro elemento desse tripé da política cultural implementada pelo governo federal  o nacionalismo —, que não foi tratado diretamente na ADPF 918, basta assistir ao segundo vídeo da websérie "Povo Heroico | Encerramento", no canal oficial da SecomVC no YouTube. A websérie, prevista para ter uma dezena de episódios, foi sumariamente interrompida após a repercussão da paródia criada por Marcelo Adnet, que acabou indo parar no Poder Judiciário por conta de ofensas proferidas pelo secretário especial de Cultura.

Como o humorista não fez uma nova paródia, até porque estava litigando com Mário Frias, poucos assistiram ao encerramento do "Povo Heroico". Esse vídeo de encerramento da série que não se realizou é uma ode ao nacionalismo, uma aula magna sobre a construção do sentido patriótico com a evidente função de forjar identidades estanques e essencializadas, invisibilizando os grupos historicamente subalternizados e reforçando, claro, um projeto autoritário de poder.

Mas, voltando à ADPF, a OAB defendeu a tese de um "estado de coisas inconstitucional". Noutras palavras, são tantas as normas e atos dos agentes públicos que afrontam os preceitos da Constituição Federal de 1988 que a inconstitucionalidade é, por assim dizer, sistêmica; é geral.

Normalmente a inconstitucionalidade se dá sobre uma norma específica, mas, nesse caso, são várias lesões aos direitos culturais  que são considerados direitos fundamentais, como há duas décadas vem ensinando Francisco Humberto Cunha Filho —, então foi necessário arguir esse "estado de coisas inconstitucional". São sete normas infralegais questionadas pela OAB junto ao STF: seis portarias e um decreto presidencial. Com essa tese, a ADPF denuncia atos da própria Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, da Ancine, da Funarte e da Fundação Palmares.

A lista é grande, poderia ser até maior, mas foca nos seguintes tópicos: desmantelamento da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC); problemas na gestão dos prazos e processos das leis de incentivo à cultura, especialmente Lei Rouanet e Fundo Setorial do Audiovisual; atos arbitrários do presidente da Fundação Palmares; denúncias de censura; problemas estruturais na política do audiovisual, entre outros.

A ADPF foca em dois pontos cruciais para os direitos culturais: o fomento e a liberdade de expressão. Isso pode ser vislumbrado, por exemplo, através da sistemática violação ao exercício da liberdade de expressão artística, como se vê em casos mais recentes, como o do Festival de Jazz do Capão, ou mesmo do gravíssimo episódio que ficou conhecido como "filtros da Ancine", em que o antigo secretário especial de Cultura, Henrique Pires, após exonerado, confirmou em rede nacional de televisão que houve, sim, censura.

Além disso, como fica bastante evidente na ADPF proposta pela OAB, há uma tentativa de asfixia do setor cultural, através de omissões e atrasos orquestrados referentes à má gestão dos processos de financiamento oriundos das principais leis de incentivo à cultura, em âmbito federal, com o claro objetivo de minar o fomento cultural, que é uma garantia do pleno exercício dos direitos culturais.

Por tudo isso, essa ação da OAB serve como uma grave denúncia do descumprimento do dever estatal de garantia do pleno exercício dos direitos culturais e se ergue como um monumento da resistência contra o aniquilamento do setor cultural.

Autores

  • é professor do Departamento de Arte da UFF, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Museologia e Patrimônio, especialista em Patrimônio Cultural e doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional.

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