Opinião

Seria a Resolução ANP nº 858/2021 um inexorável fruto da árvore envenenada?

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8 de dezembro de 2021, 7h11

Há algum tempo vinham na pauta de discussões na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis os temas da possibilidade de venda direta de etanol pelos produtores aos postos revendedores e a tutela regulatória à bandeira, que tem como maior expoente a chamada "bomba branca", isto é, a possibilidade de haver revenda de produto de outra marca em um posto embandeirado.

Enquanto as discussões vinham sendo empreendidas no âmbito da agência em consulta pública, obedecido assim o devido processo regulatório, o Poder Executivo Federal entendeu por bem editar a Medida Provisória (MP) nº 1.063, de 11/8/2021 [1], por meio da qual procedeu a mudanças na Lei nº 9.478/97, incluindo a venda direta e a bomba branca, e impôs um prazo de 90 dias para regulamentação dos temas pela ANP.

Pouco mais de um mês após não se ver plenamente atendido pela agência, em 13 de setembro, o Planalto editou ainda a MP nº 1.069 [2], disciplinando a viabilidade de emissão de um decreto  ato também do chefe do Poder Executivo  para regulamentar o tema até que sobreviesse a regulação pela ANP.

O presidente da República, então, editou no mesmo dia o Decreto nº 10.792 [3], estabelecendo, em apenas um artigo, conjunto sintético de preceitos extremamente genéricos no tratamento da chamada "bomba branca".

Em 5 de novembro, premida pelo chefe do Poder Executivo, a ANP editou sua Resolução nº 858/2021 (RANP 858) [4], tratando de diversos temas  entre eles, a venda direta de etanol pelos produtores aos postos revendedores e a questão da possibilidade de um posto embandeirado ter uma bomba vendendo produto de procedência distinta daquela prevista em sua bandeira.

Não promoveremos aqui digressões quanto ao acerto ou não no mérito dessas medidas normativas, sequer quanto àquilo que entendemos ser uma abdicação da promoção do melhor interesse dos consumidores e do meio ambiente  tudo em nome de uma possível redução nos preços finais ao consumidor (fim que soa nobre, mas que não foi jamais submetido aos testes prévios necessários).

Não tentaremos também promover silogismos estéreis na amplitude formal: entendemos que o fundamento formal de validade da RANP 858 reside no poder regulatório naturalmente concedido à agência quando de sua criação pela Lei nº 9.478/97 [5], regulamentando a previsão no artigo 177, §2º, III, da Constituição da República (CRFB/88).

Nosso ponto aqui é de patamares procedimental e material: não resta nenhuma dúvida de que a RANP 858 foi aprovada pela agência como uma resposta à pressão do Palácio do Planalto, esta materializada não apenas politicamente, mas jurídica e explicitamente por meio das MPs e do decreto.

Mesmo se pensarmos que com a eventual aprovação de projeto(s) de lei(s) de conversão, a ingerência seria por parte do Legislativo, o tema não seria de simples solução; a crítica ainda seria possível na medida em que o Supremo Tribunal Federal, recentemente, decidiu por unanimidade na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.132/SP [6] que é indevida a interferência do Poder Legislativo em certos temas de autonomia de agência reguladora.

Assim, caso entendamos que o processo de deslegalização típico da criação de uma agência regulatória [7] não admite essa sorte de imposição  especialmente quando a intromissão é realizada pela Presidência da República e envolvendo uma agência cujas existência e atribuição estão previstas na CRFB/88, como nesse caso foi —, ver-nos-emos obrigados a concluir que RANP que responde a tal interferência, em vez de produto de um processo regulatório adequado, técnico e isento, é o "fruto de uma árvore envenenada" (teoria nascida no Direito Penal, mas aplicável, como bem ilustra o professor Scaff [8], a todo o Direito).

Vamos às origens: por que existem agências reguladoras? Nos modelos francês e americano, trata-se de transferir uma parcela do poder executivo para entes técnicos, especiais e autônomos, com alta especialidade técnica, salvaguardando de pressões políticas o tratamento de temas de ordenação socioeconômica que demandem essa imunidade técnico-científica. A origem remonta a 1887, ano em que foi criada a Interstate Commerce Comission (ICC), primeira agência reguladora dos Estados Unidos, responsável pela regulamentação do transporte ferroviário interestadual.

A mudança de paradigma para a relação entre Estado e prestação de serviços públicos com a lei de concessões (Lei 8.987/95) foi acompanhada pela criação de mecanismos administrativos para fiscalização do serviço de titularidade estatal, que passou a ser prestado por particulares. A adoção do modelo de gestão pública das concessões implica no compromisso com a forma adotada.

Descendo a maior especificidade, muito embora a resposta contenha os mesmos elementos nucleares acima elencados, no modelo brasileiro, qual a utilidade de se criar, por lei específica e materializando descentralização administrativa, novas pessoas jurídicas de direito público para execução de tarefas tipicamente públicas (artigo 37, XIX, CRFB)?

Na ADI nº 4.874/DF, a Suprema Corte respondeu da seguinte forma:

"A exigência de agilidade e flexibilidade cada vez maiores do Estado diante das ininterruptas demandas econômicas e sociais que lhe são direcionadas levou à emergência de estruturas administrativas relativamente autônomas e independentes  as chamadas agências — dotadas de mecanismos aptos e eficazes para a regulação de setores específicos, o que inclui a competência para editar atos qualificados como normativos".

Trata-se, deveras, por opção política legislativa ou por comando constitucional expresso, de gerar novos centros de poder, com alto grau técnico e mediante transferência de atribuições, os quais não ficarão hierarquicamente vinculados aos entes que os criaram.

É dizer: por lei federal, a União pode (ou, no caso da ANP, teve obrigação de) criar uma autarquia. A depender de suas atribuições, pode-se qualifica-la como "em regime especial" e etiquetá-la de agência reguladora [9], o que à toda evidência deveria significar, por princípio, uma vinculação ainda menor dela com o ente político criador. Nas palavras da professora Di Pietro [10], "porém, como autarquias de regime especial, os seus atos não podem ser revistos ou alterados pelo Poder Executivo".

Pode-se dizer que a agência reguladora se assemelha ao conceito grego de autárkeia ("autarquia"), ou seja, poder sobre si mesmo. Há razões para essa capacidade das agências. O modelo foi pensado e estruturado dessa forma para preservar os serviços públicos da ingerência de populismos de ocasião. Como vimos, é da essência da autarquia o poder sobre si e sobre o assunto que justificou sua criação.

Em um ambiente republicano e democrático-constitucional, não existem liberdades absolutas para ninguém  público ou privado. É possível  mais que isso, é essencial  um controle finalístico da autarquia especial, de modo a garantir que ela cumpra os deveres que lhe foram impostos (pela Constituição e/ou pela lei criadora).

Nenhuma transferência pode ser vista como definitiva em um mundo naturalmente mutável, mas o ônus argumentativo de transferência e de avocação deve ser empregado com temperança, sob pena de se trair o princípio inspirador da regulação: a independência técnica, a proteção contra eventuais pressões políticas de ocasião.

Essa realidade no contexto normativo nacional fica muito evidente no artigo 3º da Lei nº 13.848/2019 [11].

A conhecida passagem de Ulisses e as sereias, mais esta vez, pode ser trazida em socorro ao que tentamos aqui ofertar: a transferência de poder só poderia ser sucedida de uma retomada desse poder quando diante das circunstâncias apropriadas. Em não cumprido tal ônus, a avocação mostra-se abusiva e detratora de toda a lógica subjacente à regulação. O primeiro comando de Ulisses, se revogado durante o encanto das sereias, levaria fatalmente todos na embarcação à ruína.

O STF, quando é chamado a exercer o controle judicial de atos oriundos de agências, costuma mostrar-se extremamente deferente em suas apreciações  exatamente em razão dessa autonomia técnica das autarquias reguladoras, como se verifica nas ementas dos REs 993.585/DF e 867.960/SE [12].

Mais uma vez: formalmente, sempre será possível defender que a ANP editou a sua RANP 858 livremente, com base em seus estudos, no debate público que vinha se desenvolvendo e lastreada em seu poder regulatório na modalidade de normatização.

Contudo, parece-nos verdadeiramente claríssimo que o chefe do Poder Executivo federal, ao editar as MPs nº 1.063 e 1.069 e o Decreto nº 10.792/2021, violou expressamente o núcleo da lei que ele mesmo, em 2019, havia aprovado, e invadiu a autonomia funcional da ANP. A evidência primária da "captura" é concedida pelo site da própria ANP [13] ao explicar a referida RANP:

"As determinações sobre 'tutela de fidelidade à bandeira' estão alinhadas com a Medida Provisória n°1.063, de agosto de 2021, que dispôs, entre outros temas, sobre regras de comercialização de combustíveis pelos postos revendedores. A MP lançou novo regramento ao tema, por meio da inclusão de artigo específico na Lei do Petróleo (Lei nº 9.478, de 1997): (…). A MP previu ainda que a disposição que consta do artigo deveria ser regulamentada pela ANP, no prazo de noventa dias, contados da data de sua publicação".

E quais seriam os efeitos dessa postura, seja na avaliação isolada, seja nos riscos de sua multiplicação em outros casos, nos mercados tidos como relevantes ao ponto de serem regulados pelas agências elencada no rol do artigo 2º da Lei nº 13.848?

O primeiro  e mais grave  deles é fazer ruir a independência técnica e a autonomia funcional das agências, colocando todo o modelo de regulação em xeque. Se admitirmos como adequada a postura do Planalto, a autoridade máxima regulatória neste país é o presidente da República  e esse entendimento mostra-se absurdo à luz da CRFB/88.

Lembramos de uma passagem providencial do professor Alexandre Aragão [14] em nota de rodapé na qual colaciona a conclusão italiana sobre a necessidade/indispensabilidade da especialização estatal em agências, mas mais do que isso, a importância da preservação de sua estrutura:

"O Conselho de Estado da Itália já decidiu que o “fracionamento institucional entre órgãos distintos do complexo das atividades unitariamente destinadas à satisfação de interesses públicos… é uma das mais concretas e indiscutíveis garantias da atuação imparcial".

"Imparcialidade" é o termo utilizado pelos italianos. A agência reguladora se presta justamente a preservação do modelo econômico acolhido pelas concessões e pela reforma administrativa promovida durante a década de 1990 e concretizar princípios reguladores da atividade econômica de matriz constitucional.

As rupturas institucionais geram perda significativa de segurança jurídica, o que coloca nossa nação (em constante tentativa de desenvolvimento, especialmente após a fase mais aguda da maior quarentena sanitária do planeta), mais esta vez, como alvo de profunda desconfiança no cenário internacional.

Acreditamos (talvez sejamos inocentes, concedemos) que normas jurídicas servem para regrar e modelar comportamentos, ainda que não concordemos com o seu conteúdo. Se em cada oportunidade em que as normas não atenderem nossos anseios pudéssemos livremente dispor em contrário, a própria existência do Direito estaria ameaçada.

Mudanças normativas devem trilhar as formas desenvolvidas para construção do Direito legítimo, assim evita-se o arbítrio que nossa inocência acredita ser muito daquilo que o Direito democrático busca evitar.

 


[7] MAZZA, Alexandre, Manual de Direito Administrativo, 9ª edição, SaraivaJur, São Paulo, 2019, item 3.8.3.5.1, versão digital.

[9] "No processo de modernização do Estado, uma das medidas preconizadas pelo Governo foi a da criação de um grupo especial de autarquias a que se convencionou denominar de agências, cujo objetivo institucional consiste na função de controle de pessoas privadas incumbidas da prestação de serviços públicos, em regra sob a forma de concessão ou permissão, e também na de intervenção estatal no domínio econômico, quando necessário para evitar abusos nesse campo, perpetrados por pessoas da iniciativa privada."  CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 34ª edição, Gen/Atlas, São Paulo, 2020, item 8.1, versão digital.

[10] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 32ª edição, Gen/Forense, Rio de Janeiro, 2019, item 10.9.3, versão digital.

[11] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13848.htm.

[12] RE 993.585/DF, relator(a): ministro LUIZ FUX, Julgamento: 26/09/2017, Publicação: 28/09/2017 (http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5044820).

RE 867.960/SE, relator(a): ministro LUIZ FUX, Julgamento: 18/12/2017, Publicação: 01/02/2018 (http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4716407).

[14] ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Econômico. 3 ed. rev. atual. Forense, Rio de Janeiro, 2013, p. 204.

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