Retrospectiva 2021

2021: um foco na mudança da relação entre Estado e particular

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8 de dezembro de 2021, 10h01

O ano de 2021 trouxe muitas mudanças legislativas. Em termos quantitativos, de 1º de janeiro a 1º de dezembro foram quatro emendas constitucionais, dez leis complementares e 141 leis ordinárias.

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Entre essas leis, houve sensíveis alterações com o objetivo de conferir maior proteção e participação feminina, visando a evitar, reprimir e punir violências e promover maior representatividade [1]. Houve, ainda, a criação do TRF da 6ª Região [2], a revogação da Lei de Segurança Nacional [3], a regulamentação do superendividamento [4], a mudança do programa habitacional do governo [5] e a instituição das federações de partidos políticos [6].

Também foram alteradas as bases para as relações com o poder público por duas leis, que serão por nós exploradas: a Lei 14.230/21, que alterou o regime jurídico da improbidade administrativa, e a Lei 14.133/21, nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC). Focalizaremos neste texto algumas modificações que, no nosso entender, são relevantes.

Novo regime jurídico da improbidade administrativa
Foram inúmeras as modificações legislativas trazidas com a Lei 14.230/21, que reformou a Lei 8.429/92 (LIA). Neste artigo, destacaremos três mudanças que, a nosso ver, possuem grande impacto: non bis in idem, fim das condutas ímprobas culposas e alterações na prescrição.

Quanto ao non bis in idem, não raro um agente público ou privado acusado da prática dolosa de ato de improbidade pode enfrentar penas da LIA e da Lei 12.846/13 (LAC). Além disso, pessoas físicas também podem se submeter ao regime punitivo criminal.

Após a reforma, a LIA passou a conter disposições que visam a impedir a ocorrência de bis in idem. O artigo 3º, §2º, por exemplo, determina que as sanções da LIA não se aplicarão à pessoa jurídica por ato sancionado como ato lesivo à Administração Pública previsto na LAC. Na mesma linha, o artigo 12, §7º, determina que sanções aplicadas à pessoa jurídica com base na LIA e na LAC "deverão observar o princípio constitucional do non bis in idem".

O artigo 12, §6º, LIA, passou a estabelecer que, "(s)e ocorrer lesão ao patrimônio público, a reparação do dano a que se refere esta Lei deverá deduzir o ressarcimento ocorrido nas instâncias criminal, civil e administrativa que tiver por objeto os mesmos fatos”. Na mesma linha, o artigo 21, §5º determina a compensação das sanções aplicadas “em outras esferas".

Também os §§3º e 4º do artigo 21 estabelecem que sentenças cíveis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria, e que absolvição criminal confirmada por órgão colegiado impede o trâmite da ação de improbidade.

A segunda mudança que entendemos como de mais relevo é o fim do ato de improbidade por conduta culposa. Num primeiro olhar, pode parecer uma alteração singela, mas muda toda a forma de compreensão da lei. A nova norma incluiu o §3º ao artigo 1º da LIA e modificou o artigo 10 para só admitir responsabilidade por ato de improbidade administrativa em conduta dolosa. Nesse sentido, a nova lei parece ter positivado o entendimento do STJ segundo o qual, "a Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé" [7].

Finalmente, o regime prescricional foi significativamente alterado. A ação para aplicação de sanção por ato de improbidade prescreve em oito anos (artigo 23) e foi criada a prescrição intercorrente — operada entre dois marcos interruptivos —, de quatro anos (artigo 23, §§4º e 5º).

A reforma também alterou a data de início do prazo prescricional. Anteriormente, o dies a quo poderia variar de acordo com o cargo do agente público envolvido no ilícito e era contado a partir do conhecimento do fato pelas autoridades competentes. Agora, o prazo começa a correr "a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência", evidenciando aproximação com a lei penal.

Entendemos que as disposições da nova lei que favorecem os acusados devem ter aplicação retroativa, incluindo a prescrição. O STJ interpreta o artigo 5º, XL, CF, de maneira ampla e confere a proteção constitucional ali inscrita ao Direito Sancionador, no qual se inclui a LIA, e não apenas ao Direito Penal [8]. Tal entendimento foi refletido no recém introduzido §4º do artigo 1º.

Não obstante, a questão tem dividido opiniões. Em novembro, a 5ª Câmara do MPF emitiu orientação (Nota Técnica 01/2021 — 5ª CCR) sobre a aplicação retroativa das disposições da Lei 14.230/21, indicando que o novo prazo de prescrição só deve se aplicar a fatos ocorridos após a entrada em vigor da lei.

Tal orientação não parece adequada. A prescrição da ação sancionatória deve, em razão do citado artigo 5º, XL, da CF, ser aplicada retroativamente. O mesmo raciocínio deve ser aplicado à prescrição intercorrente. A prescrição, seja ela qual for, é causa extintiva do jus puniendi estatal, o que tem sido reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal há, ao menos, 25 anos: "A pretensão sancionadora não se exaure com o ajuizamento da ação. Envolve toda a atuação do Estado-Juiz até a liberação do poder sancionador com o trânsito em julgado" [9].

A lei é muito nova e caberá aos tribunais definir o tema. Em especial, caberá ao STJ fazê-lo.

Nova Lei de Licitações e Contratos
Aspectos administrativos

Responsável por estabelecer um novo regime para licitações e contratações da Administração Pública, a expectativa em torno da NLLC guardou proporção com a intensidade dos debates que a antecederam.

Há opiniões no sentido de que os avanços introduzidos poderiam ser mais significativos. No entanto, já se alcança consenso para reconhecer positivamente a perspectiva inovadora em torno de diretrizes de fomento à cultura de planejamento, interação com a iniciativa privada a partir de soluções dialógicas estruturadas, padrões garantidores de integridade, mecanismos de governança e meios alternativos de resolução de controvérsias.

Tais conteúdos aprimoram consideravelmente o ciclo da contratação pública em suas diversas fases, com destaque para os momentos que antecedem o certame e sucedem a assinatura dos contratos. Em outras palavras, confere maiores e melhores recursos para a gestão da fase de planejamento e de execução contratual.

No plano da eficácia, vale consignar a necessidade de regulamentação em diversas passagens do texto legal.

O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) serve bem para ilustrar essa dimensão, pois ainda exige esforços de interpretação em torno dos artigos 54 e 94 e seus parágrafos, seja para indagar acerca de lacunas normativas da regulamentação, seja para questionar lacunas operacionais de implementação.

No caso do PNCP, foram editadas normas [10] necessárias à atuação do Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas [11] e desenvolvida versão lançada na internet [12] quatro meses após a edição da NLCC.

Diante da variedade de temas introduzidos numa lei tão analítica, muitos outros exemplos poderiam ser eleitos como centrais. No entanto, uma breve coletânea retrospectiva do período posterior à sua edição não tem esse objetivo.

Partindo agora para análise direcionada a duas específicas diretrizes, planejamento e soluções dialógicas, vale destacar que a nova modalidade licitatória do diálogo competitivo reconhece esses conteúdos de forma imbricada e moderna.

A preocupação em torno da higidez da fase interna da licitação muitas vezes conduziu a Administração à conclusão de que ninguém melhor do que ela mesma para definir suas necessidades de contratação, explicitando um movimento internalizado em torno dos seus próprios domínios técnicos.

O problema disso reside no fato de a Administração se mostrar em descompasso com um repertório técnico mais avançado produzido por particulares e, ao final, tal postura distanciada se traduzir em verdadeira negação do adequado planejamento [13].

A acurácia da NLLC é notável nesse sentido, pois, sem prescindir das condições que asseguram a referida higidez do procedimento, foi sensível ao fato de que a dinâmica do mercado privado é mais vocacionada à inovação tecnológica e à cultura de adaptabilidade para soluções em tempo reduzido.

Assim, considerando que a lei atentou para a necessidade de objetividade e neutralidade necessárias para a garantia de preservação da disputa, é difícil negar as vantagens advindas desse tipo de compartilhamento proposto por diálogos investigativos e consultivos.

Aliás, essas bases dialógicas vão se consolidando justamente nessa perspectiva de levar em conta aspectos da realidade que, se desconsiderados, fragilizam as soluções ou conduzem ao erro. Não foi diferente com o avanço trazido pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e, da mesma forma, na maturidade com que a NLLC também contempla meios alternativos de resolução de controvérsias.

Aspectos penais da NLLC
Em sua parte penal, a NLLC é marcada por dois grandes traços: continuidade normativo-típica, e significativo aumento das penas previstas.

A maior parte dos crimes então previstos na Lei 8.666/93 foi mantida. Foi criado apenas o tipo penal de "omissão grave de dado ou de informação por projetista". A NLLC promoveu alteração topográfica dos delitos licitatórios, que agora constam do Capítulo II-B do Título XI do Código Penal.

Pouco tempo depois de a NLLC entrar em vigor, a Corte Especial do STJ, no julgamento da APn. 993/DF, reconheceu a continuidade normativa por ela promovida, afastando a alegação de atipicidade em relação a condutas capituladas originalmente nos artigos 89 e 96, I, da Lei 8.666/93. O tribunal entendeu que as normas incriminadoras foram reproduzidas nos artigos 337-E e 337-L do CP [14]. A decisão é relevante, sobretudo ao se considerar que houve modificação na redação de ambos os tipos penais, inclusive com alteração dos núcleos e revogação da hipótese de fraude licitatória mediante elevação arbitrária de preços (artigo 96, I, Lei 8.666/93) [15].

De outro lado, as penas previstas para todos os delitos licitatórios foram aumentadas consideravelmente, inviabilizando, por exemplo, aplicar o acordo de não persecução penal [16] para certos crimes. Em relação a alguns tipos penais, como "frustração do caráter competitivo de licitação" [17] e "modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo" [18], as penas privativas de liberdade foram dobradas.

Em razão do aumento das penas previstas, já há julgados estabelecendo que "embora o Código Penal não tenha feito expressa alusão à ultratividade da lei mais benéfica, nada obsta que o juízo aplique norma já revogada no momento da decisão, por ser a mais benéfica ao réu e por ser a vigente ao tempo do crime" [19].

Há também inovações legislativas penais que possuem impacto imediato em casos em andamento, como a abolitio criminis em relação ao delito de "inobservância de formalidades pertinentes à dispensa ou inexigibilidade de licitação", então previsto na segunda parte do caput do artigo 89 da Lei 8.666/93.

Tal circunstância tem sido reconhecida pelos tribunais, como o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, pois "(n)as hipóteses em que houver a imputação da ação descrita na parte final do art. 89, caput, da Lei n. 8.666/93, deve ser reconhecida a abolitio criminis, ressalvando-se, contudo, que a contratação direta fora das hipóteses previstas em lei permanece abarcada pela nova norma penal incriminadora" [20].

A despeito da solitária hipótese de extinção do crime de inobservância de formalidades licitatórias, o recado do legislador parece ser, conforme afirmado pelo relator do projeto no Senado Federal, que é preciso "punir exemplarmente os desvios, para não permitir que ocorram novos" [21]. Para tanto, a estratégia da nova lei é o recrudescimento penal.

Conclusão
Conforme apontamos, inúmeras inovações legislativas permearam o ano de 2021. Destacamos aqui duas leis que, a nosso ver, representam alterações significativas na forma pela qual o Estado se relaciona com particulares, inclusive para sancioná-los.

De um lado, a Lei 14.230/21 reformulou as bases para a improbidade administrativa, positivando orientações jurisprudenciais que refletem o caráter sancionatório da LIA. De outro, a NLLC repaginou o regime das contratações e licitações, inclusive em matéria criminal e sancionatória, depois de anos de tramitação.

Em razão da quantidade de mudanças relevantes, as duas leis aqui abordadas certamente passarão por período de amadurecimento, em que as diversas controvérsias por elas geradas serão amplamente discutidas. Tendo em vista que são muitas categorias e instrumentos novos, deve-se mencionar que a experimentação também cumprirá seu papel de efetiva validação.

 


[1] v. Lei 14.245/21 — Lei Mariana Ferrer; Lei 14.132/21 — Cria o PNAINFO; Lei 14.214/21 — Cria o programa de saúde menstrual; Lei 14.192/21 — Combate à violência política contra a mulher; Lei 14.188/21 — Cria o programa sinal vermelho e o tipo penal de violência psicológica contra a mulher; Lei 14.164/21 – inclui nos currículos conteúdo sobre a prevenção da violência contra a mulher.

[2] Lei 14.226/21.

[3] Lei 14.197/21.

[4] Lei 14.181/21.

[5] Lei 14.118/21.

[6] Lei 14.208/21.

[7] REsp 1849513/RO, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, j. 24/11/20.

[8] P.ex., RMS 37.031/SP, relatora ministra Regina Helena Costa, 1ª Turma, j. 08/02/18.

[9] Inq 1055 QO, relator ministro Celso de Mello, Pleno, j. 24/04/96.

[10] Decreto Federal 10.764/21.

[11] Colegiado deliberativo de cunho nacional.

[13] Além de princípio constitucional implícito, o planejamento foi contemplado como princípio explícito no artigo 5º, Lei 14.133/21.

[14] STJ, APn 993/DF, relator ministro Francisco Falcão, Corte Especial, j. 20/09/21. Também a 5ª Turma do STJ no AgRg nos EDcl no AREsp 961.055/BA, j. 22/06/21, em relação ao crime de frustração do caráter competitivo de licitação, redirecionado para o artigo 337-F do CP, afirmou que "o preceito primário passou simplesmente por uma reorganização, sem modificações substanciais".

[15] Em relação ao crime de contratação direta ilegal, os núcleos "dispensar" e "inexigir", presentes na redação do artigo 89 da Lei 8.666/93, foram substituídos pelos núcleos "admitir, possibilitar ou dar causa", constantes do artigo 337-E do CP. O delito de fraude em licitação (artigo 337-L do CP) manteve o núcleo "fraudar" em seu caput, como fazia o revogado caput do artigo 96 da Lei 8.666/93. Entretanto, a hipótese de "elevação arbitrária de preços", prevista no incido I do artigo 96 não foi reproduzida nos incisos do artigo 337-L.

[16] Artigo 28-A do CPP.

[17] Previsto no artigo 337-F do CP, em substituição ao artigo 90 da Lei 8.666/93.

[18] Artigo 337-H do CP, que substitui o artigo 92 da Lei 8.666/93.

[19] TJ-SP, ApCrim 0004608-50.2013.8.26.0466, 16ª Câmara de Direito Criminal, relator Camargo Aranha, j. 23/07/21.

[20] TJ-SC, ApCrim 0900027-46.2018.8.24.0013, 4ª Câmara Criminal, relator Sidney Eloy Dalabrida, j. 11/11/21.

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