A fenomenologia do fracasso: por que já não precisamos mais cavar!
2 de dezembro de 2021, 8h00
1. Do Rei do Camarote ao Pensionato Jurídico: A nova startup da epistemologia do baixo clero e a lacração hard core
Recebo diariamente trocentas mensagens sobre bizarrices da área do Direito, que vão de postagens de néscios lacradores até algo como big brother jurídico, passando por gente que ensina o ECA com música funk. Há de tudo. Do quarto de pensão ao quarto de mansão…, como dizia aquela música breguíssima.
Há limites para a paciência e para os desafios que eu mesmo lanço à minha própria sanidade mental. Há limites até para o ridículo, embora o ridículo não saiba disso.
Cada vez mais, procuro transcender determinados temas, buscando aquilo que está subjacente. Algo do tipo "se alguém pensar em fazer tal coisa e loisa no direito, por qual razão isso acontece?" Qual é a razão? Qual é o seu "porquê"?
Quando recebo anúncios bizarros de eventos ou de livros "baixo-lacradores" tipo "Seja F. em direito" ou "O Neojuscoaching" ou "Pensão Jurídica", aconselho: leiam o belo livro de Mauro Mendes Dias, O Discurso da Estupidez, em que ele faz uma espécie de epistemologia disso tudo.
E aviso às centenas de pessoas que mandam sugestões ou indignações sobre tantas bizarrices: existe algo que sustenta certos comportamentos na sociedade e, consequentemente, no mundo jurídico. Não há grau zero. Algo vem de algo.
E temos certa obrigação de falar sobre essa fenomenologia. A causa maior importa mais do que as pequenas manifestações, pequenos sintomas.
2. Uma(s) teoria(s) sobre a estupidez humana
Um dos modos de explicar o bizarro é o fenômeno da estupidez humana. Interessante é que, "segundo a melhor doutrina", a estupidez não precisa de teste, verificação e fundamento. Há vários modos de estupidez. É como o negacionismo. Esculpido em carrara.
Há o negacionismo epistêmico, em que o sujeito nega qualquer evidência sobre a ciência ou o conhecimento sedimentado. Um modo de provar essa tese é ver o que se diz sobre Hans Kelsen nas redes sociais. Vi uma live em que um jovem advogado (talvez professor) fala mal de quem não leu Kelsen… sendo que ele colacionou seguramente meia dúzia de bobagens sobre o autor — a quem efetivamente não leu. Um horror. E bizarro: o sujeito não lê nada, mas é tão estupidamente mentiroso que acredita na própria mentira. Eis a fórmula: crie atalhos. Já que não consegue escrever nada profundo, invente. Faça vídeos. Se faça de inteligente. E não cite fontes. Faça cabotinagens. Copie dos outros. Faça colagem. E copie errado, porque nem sabe o que está cabotinando. Seja f… ! Grave vídeos ensinando errado. E vídeos em série. Receberá muitos laiques. E até monetização.
Outro modelo é a estupidez histórica — traduzida pelo negacionismo histórico. Talvez o exemplo mais candente seja este: sob pretexto de defender a liberdade de expressão, o sujeito nega o holocausto. Ou diz que a escravidão fez bem. Ou aceita prova ilícita de boa-fé. Ou propõe o uso de prova ilícita de boa-fé. E faz palestra sobre ética.
Há cinco leis da estupidez, conforme exponho neste texto. Todo estúpido é um negacionista e todo negacionista é um estúpido — estupidez usado no sentido tão bem explicitado por Mauro Mendes Dias e Carlo Cippola (ler aqui — A Conspiração dos néscios e as cinco leis da estupidez). Mauro explica direitinho o conceito. Que é mais profundo que o conceito de estupidez do dia a dia.
O negacionista lato sensu preenche todos os requisitos. Subsunção. Na veia. Há tempos escrevi um texto chamado "Como mostrar a um tolo a diferença entre o certo e o errado". Ali, cito o filósofo Avicena. Autoexplicativo.
Há excelente literatura para a elaboração de uma epistemologia da estupidez. Na esteira de Cipolla e Matthijs Van Boxsel — grande enciclopedista da estupidez —, tudo muitíssimo bem trabalhado no site Rincón de Psicologia, há outro texto imperdível.
Não, não falo de Nelson Rodrigues, quem dizia que "os idiotas vão dominar o mundo. Não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos", e nem de Eco.
3. A Carta escrita da prisão por Dietrich Bonhoeffer "sobre a estupidez"
Descobri um novo combatente, agora pela pena de Wilson Roberto Vieira Ferreira, por meio do site do Nassif (GGN) e pelo IHU on line da Unisinos.
Falo de Dietrich Bonhoeffer, teólogo, pastor e membro da resistência anti-nazista, quem desenvolveu, em curto escrito (uma carta escrita na prisão) uma espécie de Teoria da Estupidez. O texto é Von der Dummheit (Sobre a Estupidez), com tradução de Petronella Maria Boonen.
Começa assim: "A estupidez é um inimigo mais perigoso do bem do que o mal." E segue: Diferente da estupidez, o mal tem as sementes da sua própria destruição. A estupidez é uma categoria sócio-psicológica, bem objetiva, com origens no funcionamento heurístico da nossa mente, sempre em busca de atalhos por meio de vieses cognitivos.
Bonhoeffer, que participou do atentado a Hitler e morreu enforcado dez dias antes de as tropas russas entrarem em Berlin, dizia: Conhecer a natureza da estupidez é urgente porque, ao contrário do mal, contra a estupidez não temos defesa. O mal, porque mal, por natureza, traz em si os fundamentos de seu contrário. Numa espécie de ontologia dialética da moralidade. A estupidez, porque estupidez, é só estúpida — numa espécie de monismo da estultice.
Ele queria entender a natureza da estupidez. Talvez porque fosse pessimista (embora vigorosamente religioso). Dizia: Nunca mais tentaremos persuadir a pessoa estúpida com razões, pois isso é sem sentido e perigoso. Como argumentar contra a estupidez, uma vez que a estupidez não aceita argumentos? Esse é o busílis.
Pensando bem, ele podia ter razão. Alguém aí já conseguiu persuadir um néscio? Parece tarefa impossível. É como jogar xadrez com pombo.
Algumas das características da estupidez parecem bem objetivas. Por exemplo, dizia Bonhoeffer, "o poder de um precisa da estupidez do outro". Freud fala disso na Psicologia das Massas.
De minha parte, tenho que a estupidez está relacionada a uma pretensa linguagem privada. Trata-se da barbárie interior do sujeito. O solipsismo é estúpido. O solipsista é viciado em si mesmo.
Faz algum tempo li uma frase de Unamuno que cito de cabeça (de algum modo presente já em Machado de Assis no seu Ideias de Canário): O Eu se defende com unhas e dentes da objetivação externa; o Eu odeia o que vem de fora… porque corre o risco de ter de mudar de ideia.
Wittgenstein já mostrou de há muito que não há linguagem privada. Heidegger também. Ora, o próprio Machado, antes deles. Shakespeare e Swift também já o haviam feito. Demonstro isso em centenas de programas Direito & Literatura. Mas desde quando o estúpido se importa com a realidade?
No texto de Wilson Ferreira, há a seguinte charge, que parece bem explicar o comportamento estúpido, digamos assim, no seu viés autodestrutivo:
4. A miséria relativista do estúpido e por que ele adora o simplificado
O atalho mental é outra característica do néscio ou estúpido. Economizar energia, eis o ponto. Talvez o ser humano esteja no caminho da ascídia, animal marinho que come o seu próprio cérebro.
O estupido se enxerga no outro estúpido. "— Você me representa"! Odeia a solidão. Talvez por isso as redes sociais sejam a casa do néscio. Por isso o simples, o simplificado, o facilitado faz tanto sucesso. Uma fábrica de vieses cognitivos. E de confirmação.
5. Fabricação de atalhos mentais: a nova startup da epistemologia do baixo clero. A lacração hard core
Esse fenômeno está visível em todos os momentos, textos e contextos. Basta ver comentários nas redes sociais com intuito "lacrador". E cancelador. Cancelamentos são coisas estúpidas também.
Lacração e cancelamento não têm partido, religião ou ideologia — seguem a mesma holding: a estupidez!
Aqui mesmo na ConJur viceja certa categoria dos seres denunciados na carta do pastor alemão Dietrich Bonhoeffer.
Lendo alguns comentários nas redes sociais (e aqui na ConJur), fico com mais certeza ainda de que, se o Brasil fracassou, o Direito foi um importante componente dessa "fenomenologia do fracasso". É cansativo ver a estultice fortalecida. E em franco crescimento. O desensino jurídico criou monstros.
E nunca esqueçamos: o estúpido não sabe que é estúpido. Ele não sabe que não sabe. E não adianta discutir com ele. Ele é imune à persuasão. Ele odeia o que vem de fora.
Pronto: eis a fenomenologia do fracasso — o caminho que aponta para o fundo do poço. Quando me mandam mensagens sobre as últimas lacrações que rolam nas redes, penso que, de algum modo, já estejamos, finalmente, alcançando o fundo do poço. A vantagem? A vantagem é que não precisamos mais cavar. A luz no fim do túnel é um trem chegando para nos atropelar.
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