Interesse Público

Decisão coordenada: experimentação administrativa processual

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

2 de dezembro de 2021, 9h30

O processo administrativo, além da função primária de explicitar a ordem, a forma, os ônus e as garantias exigidas para a válida e eficaz produção de decisões administrativas, e constituir situações jurídicas subjetivas à luz do contraditório (processos restritivos e ampliativos) ou da participação administrativa (processos cívicos ou normativos), cumpre funções secundárias em sede de organização administrativa.

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As funções secundárias a este respeito dizem menos sobre a sequência de atos e fatos processuais e mais sobre a arquitetura (ou estrutura) dos processos administrativos. Processos administrativos podem ser simples (unisetoriais) ou complexos (plurisetoriais ou plurinstitucionais), assíncronos ou síncronos, bipolares ou poligonais, isolados ou conexos a outros processos. Em expressão de síntese: os processos administrativos apresentam a função de servir de referente da organização administrativa [1].

A arquitetura dos processos administrativos definirá se a decisão será singular ou colegial, envolvente de órgãos de pessoas administrativas diversas (relações interadministrativas) ou da mesma pessoa jurídica (relações interorgânicas). Forte nessa perspectiva, Sabino Cassesse definia o processo como o aspecto dinâmico da organização administrativa [2].

O processo administrativo atende a funções organizativas e seletivas dos intervenientes e dos interesses objetivos em causa: programa os órgãos intervenientes (legitimados e interessados), o tempo, o lugar e a qualidade da intervenção, e o modo de filtragem e ponderação dos interesses que serão admitidos como relevantes para a tomada de decisão.

As funções organizativas e seletivas explicam a razão pela qual é comum nas leis de organização administrativa a presença de disposições processuais, atinentes ao modo de coordenação, colaboração e articulação das diversas unidades do aparato administrativo.

As funções primárias (funções de garantia, direção, controle e legitimação democrática) e as funções secundárias (funções organizativas e seletivas) convivem sem hierarquia e segundo combinatórias variadas nos processos administrativos, observados os interesses públicos em causa.

Decisão coordenada
A decisão coordenada, prevista na Lei Federal nº 14.210, de 30 de setembro deste ano, institui modelo procedimental facultativo de aceleração de processos administrativos complexos (interinstitucionais ou intersetoriais) e de emissão de decisões em competência administrativa discricionária de modo dialogal, contextual e concentrado. Modelo endoprocedimental porque procedimento especial inserido acessoriamente na intimidade de outros procedimentos estabelecidos.

Na decisão coordenada é previsto um módulo de instrução e de decisão compartilhada, tendencialmente síncrono e breve, destinado a estruturar a manifestação concomitante de órgãos e entidades diversas e que de outro modo atuariam sequencialmente e isoladamente no âmbito do processo administrativo ordinário.

Ao adotar a decisão coordenada, a Administração Pública altera a arquitetura do processo decisório em favor da sincronicidade e da concentração de pronunciamentos dos diversos órgãos envolvidos em temas complexos. Como regra, a decisão coordenada substitui a prática de vários atos isolados dos órgãos intervenientes por um pronunciamento formal imediato e unitário, com vistas a reduzir a demora no processo de decisão, sem prejuízo de preservar a pluralidade das intervenções, a análise do contexto fático e jurídico e a legitimidade da decisão a ser adotada.

A decisão coordenada é instrumento de concertação administrativa processual, alternativo e experimental em face do modelo sequencial ordinário, útil para abreviar a oitiva e a decisão administrativa incidente sobre diferentes interesses setoriais. Não se destina a situações cotidianas nem ao exercício de competência vinculada. Não significa a criação de órgão colegial temporário e extraordinário ou autoriza a supressão de independência administrativa de órgãos e entidades que dela dispõem, por força da lei ou da Constituição (v.g. Ministério Público, Tribunais de Contas, agências reguladoras, Banco Central, Cade, entre outros) [3].

Presente no Direito brasileiro desde 2011, no âmbito dos estados-membros, com o nomen juris de "conferência de serviços" (ver artigo 28 da Lei baiana 12.209/2011, ainda vigente, e os §§1º e 2º do artigo 5º da Lei delegada mineira 180/2011, regulamentada pelo Decreto Estadual 45.757/2011, atualmente revogada pela Lei mineira 22.257/2016), essa técnica especial de experimentação administrativa processual foi inserida em termos gerais no âmbito federal dez anos depois, com a inclusão do Capítulo XI-A à Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, Lei Geral de Processo Administrativo da União, pela Lei nº 14.210.

Antecedentes imediatos e inspiração remota
A inspiração imediata da Lei 14.210/2021, registrada no PL 9.431/2017, de autoria do senador Antonio Anastasia, foi a legislação estadual preexistente sobre "conferência de serviço" e a proposta contemplada no artigo 43 do Anteprojeto de Normas Gerais de Organização Administrativa da União, apresentado em 2008 por comissão de especialistas nomeada pelo governo federal, da qual tive a honra de participar
[4].

A inspiração remota da decisão coordenada foi, no âmbito da comissão de especialistas, instituto similar de origem italiana (conferenza di servizi), embora com ele apresente diferenças importantes.

Um paralelo entre o antecedente estadual vigente na Bahia (fiel ao anteprojeto de normas gerais da comissão de especialistas do governo federal) e as várias formas de conferência de serviços da legislação italiana pode ser esclarecedor para traçar um perfil do instrumento previsto na Lei 14.210/2021. Por limitação de espaço, nesta oportunidade cuidarei apenas da norma baiana e suas diferenças em face da decisão coordenada federal, reenviando a temática das conferências de serviço na Itália para outro trabalho [5].

A conferência de serviços na lei baiana de processo administrativo e a decisão coordenada federal
Na Lei de Processo Administrativo da Bahia (Lei 12.209/2011), a conferência de serviços é modalidade de aceleração facultativa do processo administrativo convocada exclusivamente pelo chefe do Poder Executivo em assuntos que envolvam interesses intersetoriais (sem número predeterminado), a ser realizada sempre que possível em sessão única, mas que pode demandar decisão prévia de autoridade, por prazo a ser fixado pelo chefe do Poder Executivo.

A lei autoriza que, em questões urgentes, caso ocorra a demora ou a omissão na manifestação de órgão ou autoridade, o chefe do Poder Executivo poderá avocar a competência do órgão omisso, se este for órgão da Administração direta hierarquicamente vinculado.

Na legislação federal não é definida a autoridade de convocação da decisão coordenada. Exige-se que a questão multissetorial envolva ao menos "a participação obrigatória de 3 (três) ou mais setores, órgãos ou entidades", sendo ademais: a) justificável pela relevância da matéria; e b) se houver discordância que prejudique a celeridade do processo administrativo decisório. Por fim, exige-se que o processo guarde compatibilidade com "a natureza do objeto" e "a compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação pertinente".

Embora não afirme preferência por sessão única, a Lei 14.210/2021 define conferência de serviço como a "instância de natureza interinstitucional ou intersetorial que atua de forma compartilhada com a finalidade de simplificar o processo administrativo mediante participação concomitante de todas as autoridades e agentes decisórios e dos responsáveis pela instrução técnico-jurídica".

A norma federal admite que a decisão coordenada exija "reuniões", no plural, espaço físico ou virtual onde eventual dissenso na solução do objeto deve ser manifestado, de modo fundamentado, acompanhado de propostas de solução ou de informação sobre as alterações necessária para a resolução da questão. Recusa, porém, a possibilidade de convocação de decisões coordenadas em processos administrativos: a) de licitação; b) "relacionados ao poder sancionador"; ou c) "em que estejam envolvidas autoridades de Poderes distintos".

Essas limitações da Lei 12.209/2011 não deveriam existir como vedações a priori, uma vez que na prática tem sido frequente a cooperação estruturada entre autoridades de poderes diversos (vg, a cooperação interinstitucional prevista nos artigo 15 e 16 da Resolução CNJ 350, de 27/10/2020, coerente com os artigos 67 a 69 do CPC/2015) e a utilização de instrumentos de concertação em matéria sancionatória (vg., Acordo de Cooperação Técnica em Leniência Anticorrupção envolvendo TCU, AGU e CGU, de 6/8/2020) e em matéria de licitações e contratos (vg. acordos e transações administrativas interinstitucionais da AGU, Lei 9.469/1997; câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, Lei 13.140/2015).

Enquanto na legislação baiana a ata final lavra as providências e decisões com sentido unitário, na Lei 14.210/2021 a ata final relata a pauta e os fundamentos aduzidos pelos órgãos, "setores" e entidades (aduzidos na sessão ou complementados até a data da assinatura da ata); o registro das orientações, das diretrizes, das soluções ou das propostas de atos governamentais relativos ao objeto da convocação; posicionamento dos participantes para subsidiar futura atuação governamental em matéria idêntica ou similar; e a decisão de cada órgão ou entidade relativa à matéria sujeita à sua competência. Não exige, portanto, decisão unitária.

Dessas anotações sumárias resultam conclusões relevantes:

a) A decisão coordenada no plano federal não precisa ser decisória, podendo ser preliminar ou meramente instrutória de decisão de autoridade e, mesmo quando decisória, pode não resultar em decisão unitária, mas simplesmente sintetizar múltiplas decisões parciais;

b) Pode ser convocada por qualquer autoridade obrigada a decidir matéria multisetorial, com o objetivo de abreviar ou simplificar o processo administrativo, com vistas a colher manifestação concomitante dos diversos órgãos e entidades;

c) A legislação federal condiciona o método da decisão coordenada a diversos conceitos vagos ou plurissignificativos: "relevância da matéria", "discordância que prejudique a celeridade do processo administrativo decisório", "compatibilidade com a natureza do objeto", "compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação pertinente";

d) Estabelece vedações (ou restrição de aplicação) incoerentes com normas e acordos vigentes que estimulam a cooperação interinstitucional entre órgãos de diferentes poderes e a concertação administrativa em matéria sancionatória e em conflitos envolvendo matéria de licitações e contratos.

A Lei 14.210/2021 é imprecisa na definição da decisão coordenada como "instância". Esse termo sugere conceito de decisão coordenada como órgão colegial temporário, o que não deve ser aceito. Primeiro, porque órgãos (mesmo temporários) apenas podem ser criados por lei no Direito brasileiro (artigo 48, XI, CF); segundo, a decisão coordenada não altera, suprime ou modifica a responsabilidade originária de cada órgão, entidade ou autoridade envolvida (artigo 49-A, §4º, Lei 9784/1990); terceiro, a legislação federal não definiu o grau de vinculação dos órgãos e entidades convocados ao procedimento (v.g. direito de ausência, direito de oposição em face da independência administrativa, âmbito do poder de avocação da autoridade convocante, entre outros temas).

Decisão coordenada, acordos endoprocedimentais informais e convenções pré-processuais e processuais
A previsão legal da decisão coordenada não impede que órgãos e entidades públicas celebrem acordos entre si sem as formalidades e restrições estabelecidas na Lei federal nº 14.210/2021. A decisão coordenada é uma via processual facultativa e alternativa, que empresta dialeticidade, velocidade e concentração a procedimentos de manifestação sucessiva com maior potencial de conflitos entre órgãos e entidades ou de maior urgência, mas que igualmente podem ter a sua solução abreviada por acordos sem forma sacramental, expressos por atos formais motivados.

Eventualmente, a decisão coordenada pode também ser procedimento acessório de convocação obrigatória, caso seja contemplada expressamente em negócios jurídicos pré-processuais ou processuais atípicos, estes últimos na forma do artigo 190 do Código de Processo Civil, perfeitamente aplicável ao processo administrativo [6].

A decisão coordenada é uma, mas não a única, forma de perseguir a coordenação administrativa, tendo em conta o caráter policêntrico da organização da Administração Pública contemporânea. Se inibir a desarticulação entre órgãos e entidades, problemas de conflitos de competência, superposições de competência, fragmentação de decisões, demora e evasão de responsabilidades, pode contribuir para a realização da eficiência organizativa, dimensão sempre negligenciada entre nós do princípio da eficiência.

A decisão coordenada é um instrumento de experimentação administrativa, facultativo, especial, ágil para algumas situações e desnecessariamente burocrático para outras. Pode ser um instrumento valioso para enfrentar problemas multidimensionais, comuns na contemporaneidade, que exigem cogestão de políticas públicas e articulação de múltiplos órgãos e entidades em rede. Tem sido recebida com otimismo [7], com poucas vozes dissonantes [8]. Pode reforçar a segurança jurídica e favorecer a transparência e racionalidade em processos administrativos complexos. Pressupõe, entretanto, cultura do diálogo, abertura para o entendimento interadministrativo, algo ainda relutante em vários órgãos, e certamente exigirá maior detalhamento na disciplina legal e regulamentar para a assegurar a sua eficácia e efetiva operacionalização.

 


[1] Sobre o tema escrevo desde 1998 (conferência sobre contrato de gestão no SBDP, em 14.09.1998), com incremento a partir de 2009: cf. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa, in: MODESTO, Paulo (org.) Nova Organização Administrativa, 1ª.Ed, Minas Gerais, Forum, 2009,p.113-169; 2ª.ed,p.115-174), disponível em https://www.academia.edu/45494341; MODESTO, Paulo. A Hora e a Vez das Relações Interorgânicas, in: Revista Colunistas, n. 296, 09/11/2016, https://bit.ly/rel-interorganicas ; idem, Silêncio Administrativo Positivo, Negativo e Translativo: a omissão estatal formal em tempos de crise. Revista Colunistas de Direito do Estado, 22/12/2016, em https://bit.ly/silencio-organizacaoadm.

[2] CASSESSE, Sabino. Las bases del derecho administrativo. Trad. Luis Ortega, INAP, 1994, p. 251.

[3] Para desenvolver o tema da concertação administrativa e das relações interadministrativas e interorgânicas, cf. LEITAO, Alexandra. Contratos Interadministrativos. Coimbra, Almedina, 2011; BITENCOURT NETO, Eurico. Concertação Administrativa Interorgânica. São Paulo: Almedina, 2017.

[4] A Comissão, sem remuneração, trabalhou por dezoito meses e realizou quinze encontros de discussão, com ampla autonomia. Foi instituída pelo Ministério do Planejamento (Portaria 426, de 6.12.2007, alterada pela Portaria 84, de 23.4.2008), com os seguintes integrantes: Almiro do Couto e Silva, Carlos Ari Sundfeld, Maria Coeli Simões Pires, Maria Sylvia Zanella di Pietro, Paulo Modesto, Sérgio de Andréa Ferreira. No âmbito da comissão, fui o responsável por sugerir a incorporação ao direito brasileiro (com as necessárias adaptações) do instituto da conferência de serviços, segundo modelo previsto no texto original da Lei 241/1990, da Itália. A sugestão foi aceita, debatida, alterada e incorporada ao anteprojeto apresentado, tendo no projeto caráter de módulo processual e organizativo alternativo. Para ler na íntegra o anteprojeto, cf. https://www.academia.edu/1055240.

[5] Na Itália, em disciplinas especiais, aplica-se a decisão coordenada (sob o nome de conferência de serviços) há mais de seis décadas. No entanto, a generalização do instituto ocorreu apenas com a consagração, na lei de processo administrativo italiana (Artigo 14 da Lei 7 de agosto de 1990, n. 241), da regulamentação geral do instituto. Depois dela o instituto sofreu modificações sucessivas, com destaque para o Decreto legislativo de 30 de junho de 2016, n. 127 e, recentemente, pelo Decreto-Lei n.º 76, de 16 de Julho de 2020, convertido com alterações na Lei n.º 120, de 11/09/2020. O modelo italiano também parece ter inspirado as “conferências procedimentais” previstas no Código de Processo Administrativo de Portugal (CPA, artigo 78, 79, 80 e 81).

[6] Sobre a aplicação da “negociação endoprocessual”, com as cautelas devidas, aos processos administrativos, cf. MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo. 5ª. ed, São Paulo: Malheiros, 2017, p. 90 e segs; BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Convenções Processuais e Poder Público. Tese doutorado, pp. 302e segs. UFBA/2016, Orientador: Fredie Souza Didier Jr.

[7] Cf. MOTTA, Fabrício. Decisão coordenada: a boa novidade. Conjur, 21/10/2021; MOREIRA, Egon Bockmann. Breves notas sobre a 'decisão coordenada'. Jota, 04/10/2021; TEIXEIRA JR, Flávio. Decisão coordenada: eficiência, integração administrativa e segurança jurídica. ConJur, 20/10/2021.

[8] Cf. SAAD, Amauri. As decisões coordenadas na Lei nº 14.210/2021. ConJur, 14/10/2021.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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