Opinião

A intersecção entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador

Autor

  • José Carlos Fernandes Junior

    é promotor de Justiça do MP-MG ex-coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG pós-graduado em Divisão de Poderes Ministério Público e Judicialização pelo Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional do MP-MG.

1 de dezembro de 2021, 17h07

Em função da reformulação impelida pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro deste ano, no sistema de responsabilização previsto pela Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), muitos temas vieram novamente à tona, demandando reflexão da doutrina especializada, dos órgãos de controle e, em breve, do Poder Judiciário. Uma dessas temáticas, ao lado da retroatividade da lei benéfica no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, é a repercussão da sentença penal absolutória no âmbito da ação civil pública por prática de improbidade administrativa.

Não é novidade que de uma mesma conduta humana podem decorrer efeitos jurídicos diversos, inclusive em setores distintos do universo jurídico. É o que propõe a assente a teoria da "independência das instâncias", abstração que avaliza a individualização das responsabilidades cível, penal e administrativa que simultaneamente derivam de um mesmo comportamento ilícito. Vários diplomas legislativos (como Código Penal, Código Civil, Código de Processo Penal e leis extravagantes, como o Estatuto do Servidor Público Federal) imprimem verdadeira imbricação, para fins de procedibilidade sancionatória, entre a esfera penal e as esferas cível e administrativa, determinando independência relativa (ou mitigada) dessas instâncias. É o que ressoa, por exemplo, os seguintes dispositivos: CC/02 (artigo 935), CPP (artigo 65), CPP (artigo 66), CPP (artigo 67) e Lei 8.112/1990 (artigos 125 e 126).

Sob essa ótica, a independência entre as instâncias não é absoluta, mas relativa — até porque o ordenamento jurídico é um sistema uno, com manifestações e potências aptas a regular os inúmeros aspectos da vida social (de modo que a segmentação do Direito em ramos tem mais fundamento didático e/ou organizacional do que estritamente jurídico). Justamente por essa razão, o julgamento de um ilícito na esfera penal (que, especialmente por força dos princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da proporcionalidade, é a última e mais severa expressão do Direito Sancionador) poderá repercutir, em determinadas condições, nas órbitas cível e administrativa.

Nesse sentido, por exemplo, o artigo 92 do Código Penal, que atribui à sentença criminal condenatória, sob dadas circunstâncias, o condão de ensejar a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela ou mesmo a inabilitação para dirigir veículo automotor.

Parece-nos ainda mais relevante o impacto provocado pela comunicação da sentença criminal absolutória no Direito Administrativo Sancionador (em que as hipóteses de absolvição criminal incidem com maior intensidade, haja vista a proximidade — não identidade — ontológica entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal).

A sentença penal absolutória é o pronunciamento declaratório que não impõe resultado punitivo ao final de processo criminal. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, já se admitia a absolvição criminal com fulcro nos incisos I e IV do artigo 386 do Código de Processo Penal (respectivamente, estar provada a inexistência do fato e estar provado que o réu não concorreu para a infração penal) para obstar o prosseguimento da ação por ato de improbidade administrativa (entre outros precedentes, vide o AgInt no Recurso Especial nº 1.761.220, relatado pela ministra Regina Helena Costa, sessão virtual de 5/10/2021 a 11/10/2021). No entanto, a mais recente alteração na Lei de Improbidade Administrativa, mais especificamente a inclusão, pela Lei nº 14.230/2021, do parágrafo quarto ao artigo 21, parece pretender ampliar (e, por consequência, atenuar com maior veemência) a independência relativa entre as instâncias penal e administrativa sancionador.

A par de mera interpretação literal, tem-se que todas as hipóteses de absolvição criminal, incluindo até mesmo não existir prova suficiente para a condenação ou não constituir o fato infração penal, são razões, segundo dispõe a Lei 14.230/2021, para obstar a propositura e o prosseguimento da ação civil pública por ato de improbidade administrativa.

Ao que tudo indica, Romeu Felipe Bacellar Filho [1] encampa a nova proposição, haja vista defender que a sentença criminal absolutória (desde que transitada em julgado) deve influir no processo sancionador administrativo, para, dessa forma, harmonizar-se com o princípio constitucional da não culpabilidade.

Tal dispositivo, no entanto, parece-nos de difícil assimilação se o refletirmos na extensão da alteração promovida pelo legislador infraconstitucional. De pronto, importante destacar que embora se admita semelhança (e intersecção) entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador, isso não produz a conclusão de que há identidade entre essas esferas.

Ora, é comezinho que o ato de improbidade administrativa não configura necessariamente tipo penal (e os exemplos são inúmeros). Então como admitir que a absolvição criminal alicerçada em "não constituir o fato infração penal" (artigo 386, inciso III, do CPP) possa ser fator que impede o trâmite da ação civil pública por ato de improbidade administrativa?

Com muita propriedade, André Dias Fernandes pontua que:

"Nem sempre há total coincidência entre o ilícito penal e o administrativo, de modo que é perfeitamente possível que remanesça um ilícito administrativo puro (falta residual ou resíduo heterogêneo) após a absolvição do crime pela sentença penal, a possibilitar a punição do responsável na instância administrativa. Nessa linha, prevê a Súmula 18 do STF: 'Pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público'" [2].

Embora a abordagem retro destacada diga respeito especificamente aos efeitos da sentença criminal no processo administrativo, veste como uma luva para demonstrar a ineficácia do reconhecimento da atipicidade criminal de determinada conduta como fator suficiente para impedir o ajuizamento ou cessar a tramitação de uma determinada ação de improbidade administrativa.

Já quanto à insuficiência de provas para a condenação criminal (artigo 386, inciso VII, do CPP), poderão alguns sustentar que, se mesmo com a gama de recursos que o ordenamento confere exclusivamente para a instrução da persecução penal (a exemplo da interceptação telefônica e decreto de prisão temporária) não se obteve o necessário juízo de certeza para condenação, certamente não existirá fundamento idôneo que justifique o prosseguimento da ação civil pública por ato de improbidade administrativa.

Nada obstante, também sob esse enfoque, se faz imperioso pontuar que se a condenação penal é a mais gravosa dentre aquelas existentes no Direito brasileiro, as provas que a fundamentam devem ser mais robustas e significativas. Assim, a comprovação do mesmo fato, ainda que em menor densidade, pode culminar outros tipos de sanções — como as cíveis (a compensação de danos, por exemplo) e administrativa (como a demissão do servidor federal — aliás, nos termos do verbete sumular 651 do STJ, "compete à autoridade administrativa aplicar a servidor público a pena de demissão em razão da prática de improbidade administrativa, independentemente de prévia condenação, por autoridade judiciária, à perda da função pública").

À vista disso, o caráter fragmentário do Direito Penal impõe que o escrutínio judicial seja tão rigoroso quanto à envergadura das sanções por ele impostas. Justamente por isso a pretensão de o igualar a outras instâncias contraria a lógica do próprio sistema de responsabilização. Ora, o ius puniendi é a resposta ao desvalor do resultado ou de condutas antijurídicas, que podem ou não configurar ilícitos penais. Estender in totum a racionalidade do Direito Penal, então, pode inviabilizar a concreção da justiça e estimular a impunidade de ações intolerantes — como aquelas que vituperam o patrimônio público.

A lei penal tutela bens fundamentais de forma fragmentária e especialíssima, compatibilizando com outras normas que, com o mesmo objetivo, manifestam de forma amena o poder punitivo estatal.

Logo, ainda que seja possível (e até mesmo salutar, sob determinadas circunstâncias) comparar a repressão administrativa à penal, cabe ao intérprete ter em mente que se tratam de duas instâncias propositalmente diferentes, concebidas para punir, em grau e sob condições distintas, aquelas condutas que vulneram bens jurídicos fundamentais.

Diante desse panorama, é evidente que a reestruturação pretendida pelo legislador infraconstitucional (que pretende evidenciar a proximidade entre o Direito Penal e o Direito Administrativo e mitiga, com maior intensidade, a independência entre essas instâncias), ao argumento de impedir a acumulação de punição pelos mesmos fatos, homenageando princípios constitucionais como o da segurança jurídica, acaba por praticamente esvaziar o propósito da Lei de Improbidade Administrativa no que tange à imposição de penalidades pelos atos de improbidade administrativa. Senão, vejamos: não se pode punir atos de improbidade que não configuram infração penal (artigo 21, §4º, da LIA, c/c artigo 386, inciso III, do CPP), e, ainda que configurem, não se pode punir se não há prova no âmbito processual penal (artigo 21, §4º, da LIA, c/c artigo 386, incisos II e IV, do CPP).

Nesse ínterim, o princípio da proporcionalidade é meio idôneo tanto a delinear os contornos do jus puniendi como elemento diferenciador entre as diversas manifestações que assume.

Por consequência, é importante gizar a necessidade de que a nova configuração passe pelo prisma do princípio da proporcionalidade, que veda tanto o excesso de proibição como a proteção deficiente, vertentes por meio dos quais as ações do legislador são balizadas, respectivamente, pela proibição do excesso de intervenção como pela inércia (falta) de intervenção, que reflexivamente vulneram direitos e garantias fundamentais tornando-se, portanto, desproporcionais em sentido estrito.

Daí que nunca é demais relembrar a crítica oriunda do garantismo hiperbólico monocular de Douglas Fischer [3] que, sob a ótica deste esboço, permite concluir: os anseios de segurança e justiça da sociedade devem ser atendidos de forma justa e adequada também pelo Direito Administrativo Sancionador.

Dito isso, num contexto social em que tantos exemplos de despreparo, má gestão e corrupção corroem a credibilidade do sistema democrático e provocam a descrença no poder público, a proteção do patrimônio público como direito fundamental espelha a imprescindibilidade de resguardar os recursos cujo destino é a prestação dos serviços públicos que, por sua vez, têm o fim precípuo de garantir direitos fundamentais das mais diversas ordens.

Nesta linha, digno de realce o alerta de Ricardo de Barros Leonel a respeito da importância da hermenêutica:

"Enquanto tais disposições estejam em vigor, como fruto da atividade legislativa, devem ser observadas. Isso não impede o intérprete, entretanto, de realizar seu papel hermenêutico, procurando nos preceitos exegese compatível com a ordem constitucional" [4].

Logo, sem prejuízo da intersecção entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, a identidade dessa última seara punitiva, propositalmente dotada de contornos diferenciados em relação àquele, impõe a razoável exegese que compatibiliza a natureza dessa manifestação do poder punitivo estatal, direitos e garantias fundamentais e os diversos deveres igualmente encartados no Texto Maior. Nessa ordem de ideias e no que diz respeito às alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa, especialmente no que se refere aos impactos da sentença criminal absolutória no prosseguimento da ação de improbidade administrativa, a análise à luz da Constituição da República e do princípio da proporcionalidade revela que a comunicação de todos os fundamentos previstos no artigo 386 do Código de Processo Penal (que cuida das hipóteses de absolvição no processo-crime) para o fim de obstar o prosseguimento da ação de improbidade administrativa (quando a absolvição criminal for confirmada por decisão colegiada) desponta-se desarrazoada e incompatível com os legítimos anseios de segurança e justiça.

 

Referências bibliográficas
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. O Mensalão e a Propalada Independência das Instâncias. Revistas dos Tribunais. Vol. 933/2013. Jul/2013. P. 445-454.

FERNANDES, André Dias. As repercussões da sentença judicial no processo administrativo e o novel entendimento do STF alusivo à pena de prisão derivante de condenação criminal em segunda instância. Disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-Dir-Bras_v.19_n.8.22.pdf. Acesso em: 16 nov. 2021.

FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, nº 28, mar. 2009. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html. Acesso em: 04 nov. 2021.

LEONEL. Ricardo de Barros. Processo e procedimento na nova Lei de Improbidade Administrativa. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-26/ricardo-leonel-processo-procedimento-lei-improbidade. Acesso em: 28 nov. 2021.


[1] in O Mensalão e a Propalada Independência das Instâncias. Revistas dos Tribunais. Vol. 933/2013. Jul/2013. P. 445-454.

[2] in As repercussões da sentença judicial no processo administrativo e o novel entendimento do STF alusivo à pena de prisão derivante de condenação criminal em segunda instância. Disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-Dir-Bras_v.19_n.8.22.pdf. Acesso em 16 nov. 2021.

[3] in Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, nº 28, mar. 2009. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html. Acesso em: 04 nov. 2021.

[4] in Processo e procedimento na nova Lei de Improbidade Administrativa. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-26/ricardo-leonel-processo-procedimento-lei-improbidade. Acesso em: 28 nov. 2021.

Autores

  • é promotor de Justiça do MPMG, ex-coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG, pós-graduado em Divisão de Poderes, Ministério Público e Judicialização pelo Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional do MPMG.

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