Licitações e Contratos

A Lei nº 14.133/2021 e as práticas anticompetitivas nas licitações

Autor

  • Jonas Lima

    é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

27 de agosto de 2021, 8h00

Como identificar práticas anticompetitivas no novo regime licitatório brasileiro? Para responder a essa pergunta é necessário verificar que a Nova Lei de Licitações trouxe diversas normas sobre competitividade nos certames públicos, entre elas:

Spacca
—  Artigo 5º: Aplicação do princípio da competitividade na aplicação da lei;

Artigo 6º, XXXV, "c": Projeto básico com identificação de serviços, materiais e equipamentos em obras, sem frustrar o caráter competitivo;

— Artigo 6º, XXXV, "d": Projeto básico com informações para estudo e definição de métodos construtivos, instalações provisórias e condições a obra, sem frustrar o caráter competitivo;

— Artigo 6º, XLII: Modalidade de diálogo competitivo, com determinadas interações reservadas, mas condicionada a critérios objetivos;

— Artigo 9º, I, "a": Vedação a cláusulas nos editais que comprometam, restrinjam ou frustrem o caráter competitivo do processo licitatório;

— Artigo 25, §2º: Utilização de mão de obra, materiais, tecnologias e matérias-primas do local da execução, conservação e operação do bem, serviço ou obra, se não prejudicar a competitividade;

— Artigo 47, §1º, III: Parcelamento, mas com o dever de buscar a ampliação da competição e de evitar a concentração de mercado;

 Artigo 178: Inclusão do artigo 337-F do Código Penal, o crime de frustração do caráter competitivo de licitação ("Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório…".); e

 Artigo 178: Inclusão do artigo 337-O do Código Penal, o crime de omissão grave de dado ou de informação por projetista ("Omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, em frustração ao caráter competitivo da licitação…, em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de interesse…".).

Ainda haverá necessidade de interpretação sistêmica em situações práticas do dia a dia, para não se incorrer em prejuízo à competitividade como, por exemplo:

— No direcionamento até em contratação direta, vedado pelo art. 74, §1º;

— Na unificação de contratos (fornecedor único, fechando oportunidade aos outros) que prejudique a ampliação da competição e cause concentração de mercado, vedada pelo artigo 40, §2º, III;

— Na má condução do diálogo competitivo, com a discriminação ou a revelação de informações de concorrentes, o que é vedado pelo artigo 32, §1º, III, e IV;

— Na prática de preços predatórios, meramente rotulados como inexequíveis, sob a ótica dos artigos 11, III, 59, III e §4º, quando há muito a mais a considerar, a depender de cada situação concreta; e

— No abuso de consórcios entre concorrentes, pela amplitude trazida com o artigo 15, invertendo-se a lógica anterior da necessidade, tornando agora a via sempre aberta, salvo restrição justificada, mas permitindo substituição de consorciado com contrato em execução.

Como visto, há práticas anticoncorrenciais que podem ser concretizadas pela Administração Pública, nos seus procedimentos internos, editais e atos seguintes e até contratações diretas, bem como pelos licitantes, em seus comportamentos de preços e outras práticas no mercado, como a eventual exclusividade que leve a direcionamento de vendas ou afastem outros canais de vendas de mesmos produtos ou delimitem contas específicas de governo para determinadas empresas.

Mas o postulado comum a todos vem do artigo 170, IV, da Constituição Federal, que estabelece a livre concorrência como um dos princípios gerais da ordem econômica no Brasil.

Na base desse sistema de preservação da ordem econômica, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) tem foco em comportamentos de concorrentes, contendo-se quanto ao lado da Administração, sob o argumento de que não pode controlar editais licitatórios em seu mérito administrativo, mas fazendo apontamentos para que editais evitem resultados de prejuízo à livre concorrência, divulgando diretrizes de combate ao conluio entre concorrentes em contratações públicas, aprovadas pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que gestores devem considerar para tornar os certames mais competitivos e menos suscetíveis a ilícitos concorrenciais.

Disso se conclui que gestores públicos e licitantes precisam considerar que não se pode aplicar de forma isolada as normas licitatórias quando se trata de combater práticas anticompetitivas.

E, na falta de certas conceituações na Lei nº 14.133/2021 sobre o que são práticas anticompetitivas, deve-se buscar elementos da Lei nº 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, da qual são relevantes os destaques abaixo:

"Artigo 36  Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I
limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II
dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III
aumentar arbitrariamente os lucros; e
IV
exercer de forma abusiva posição dominante.
(…)
§2º. Presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.
§3º. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:
I
acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma:
a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente;
b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços;
c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos;
d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública;
II
promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;
III
limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;
IV
criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;
V
impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;
(…)
VII 
– utilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços de terceiros;
(…)
IX
impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas e representantes preços de revenda, descontos, condições de pagamento, quantidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outras condições de comercialização relativos a negócios destes com terceiros;
X
discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços;
(…)
XII
dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relações comerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parte em submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais;
(…)
XV
vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo;

(…)".

A propósito, o último exemplo acima, por ser relativamente comum, chama bastante atenção, pois várias empresas licitantes possuem a prática de adotar preços predatórios nas licitações, de forma deliberada, para minar a subsistência de concorrentes, de modo que depois possam dominar mercado e impor preços como bem entenderem nas contratações públicas.

Em conclusão, nota-se que enquanto a Lei nº 14.133/2021 mais avança em detalhes na questão de competitividade nos procedimentos da Administração (restrições ainda na etapa de planejamento e cláusulas de editais com direcionamento, além de procedimentos como a concentração de todo um mercado em benefício de contratado único), e em menor quantidade de regras para concorrentes (como na parte criminal, que envolve conluio entre licitantes e outras situações que frustram a competitividade), ocorre o inverso na Lei nº 12.529/2011, que traz detalhes de infrações com ênfase no comportamento das empresas (propostas fictícias ou de cobertura, supressão de propostas, propostas rotativas entre concorrentes, divisão ou delimitação de mercado e outras).

Esse cenário precisa ficar bem claro porque o conjunto de práticas anticompetitivas é bem amplo, não se limitando à Administração e nem aos concorrentes, podendo envolver ambos em conjunto, sendo que os vários tipos de apurações de condutas podem se desdobrar em diferentes esferas, havendo um dever de todos de zelar por um ambiente concorrencial correto e justo.

E em todos os casos ficando sempre resguardada a apreciação judicial, que é garantia constitucional.

Autores

  • é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e sócio do escritório Jonas Lima Sociedade de Advocacia.

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