Opinião

O condomínio edilício e sua capacidade de contrair direitos e obrigações

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26 de agosto de 2021, 18h10

Aqui se vai analisar o direito à reparação por dano moral à pessoa em relação ao condomínio edilício, acompanhando a rationale dos juízes em acórdãos proferidos no STJ, ainda que em voto vencido. Antes de tudo, faz-se necessário entender que a personalidade está ligada à capacidade de contrair direitos e obrigações. São conceitos intimamente ligados a capacidade e a personalidade. A capacidade pode ser dividida em capacidade de fato, conectada ao exercício da vida civil, e capacidade de direito, em que se adquire o gozo de direitos na ordem civil. Conjuntamente, elas formam a capacidade plena.

Direito a integridade física, moral e intelectual, a honra, a imagem, desde que nasce o indivíduo tem direito da personalidade, passando de absolutamente incapaz para plenamente capaz, após os 18 anos. A pessoa humana tem personalidade, pois é um sujeito de direito. Mesmo antes de nascer, antes de ser pessoa natural, o ser humano está tutelado pelo Estado.

O ordenamento jurídico identifica duas espécies de pessoa, a natural e a jurídica. Há características inerentes e direitos inerentes a cada uma. Os agrupamentos humanos que estabelecem interesses comuns conformando associações e sociedades, ou a conformação de um patrimônio comum de finalidade específica, como nas fundações, são pessoas jurídicas.

Uma característica essencial da personalidade é que ela tem direitos erga omnes, frente a todos, sendo inalienáveis, portanto, fundamentais no âmbito de capítulo específico da constituição mas igualmente podendo alguns serem considerados em correlação com os direitos humanos. Destaca-se o artigo 1, inciso III, da CF 88, em que a dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Ainda que eu não esteja reproduzindo nenhuma doutrina que assim se expresse, é de minha opinião que há valores primários, ou seja, valores propriamente constitucionais vinculados a uma dimensão mais substancial do Direito que independe da forma como a linguagem e o texto o expressam.

No contexto da proposição opinativa acima, a dignidade é valor constitucional primário, pois é irredutível a uma forma escrita e nele está a "base de todos os demais direitos relacionados à personalidade da pessoa natural" (Carnacchioni 2020, 185). Essencial é mencionar dois outros conjuntos legislativos, o título 2ª da Lei Maior, sobre direitos e garantias fundamentais, artigos 5 ao 11, espelhados na legislação ordinária, o Código Civil nos artigos 11 a 21, rol meramente exemplificativo. 

Tendo em conta o Direito positivado e a doutrina aplicada em juízo nos termos expostos nas aulas, temos que os direitos da personalidade podem ser extrapatrimoniais, indisponíveis, irrenunciáveis, intransmissíveis, impenhoráveis, imprescritíveis, vitalícios e ilimitados. Considerando os direitos de personalidade extrapatrimoniais, não se está a olvidar que o dano moral, nos termos da Súmula 402 do STJ, é o dano "pessoal": "O contrato de seguro por danos pessoais compreende os danos morais, salvo cláusula expressa de exclusão". Diga-se ainda que o dano moral não é uma decorrência da figura performática do "coitadinho", daquele que propositadamente, para obter vantagem sobre uma tutela em que está ausente o caráter patrimonial, faz cena de sentimental. Nesse sentido, a indenização por dano moral não depende necessariamente da manifestação de dor e sofrimento (Carnacchioni 2020, 197-198).

Assim posto nos perguntamos, pode um agrupamento como o condomínio ter personalidade jurídica? Se tiver personalidade jurídica, pode haver reparação por dano moral? A questão tem sido posta à prova no Judiciário brasileiro e as respostas não são tão simples quanto parece. O Código Civil dedicou detalhados artigos ao condomínio edilício, do 1.331 a 1.358 diferindo-o do condomínio comum, do artigo 1.314 a 1.330. Contudo, o artigo 44 do CC-2002 elenca as pessoas jurídicas de direito privado, excluso o condomínio edilício:

"São pessoas jurídicas de direito privado: I — as associações; II — as sociedades; III — as fundações; IV — as organizações religiosas; V — os partidos políticos; VI — as empresas individuais de responsabilidade limitada."

Tome-se aqui a jurisprudência do STJ. Veja-se este primeiro acórdão, da 2ª Turma, Recurso Especial 1256912 AL 2011:

"Tributário. Condomínios edilícios. Personalidade jurídica para fins de adesão à programa de parcelamento. Refis. Possibilidade.
1. Cinge-se a controvérsia em saber se condomínio edilício é 
considerado pessoa jurídica para fins de adesão ao REFIS.
2. Consoante o art. 11 da Instrução Normativa RFB 568/2005, os condomínios estão obrigados a inscrever-se no CNPJ.  A seu turno, a Instrução Normativa RFB 971, de 13 de novembro de 2009, prevê, em seu art. 3º, § 4º, III, que os condomínios são considerados empresas — para fins de cumprimento de obrigações previdenciárias.
3. Se os condomínios são considerados pessoas jurídicas para fins tributários, não há como negar-lhes o direito de aderir ao programa de parcelamento instituído pela Receita Federal.
4. Embora o Código Civil de 2002 não atribua ao condomínio a forma de pessoa jurídica, a jurisprudência do STJ tem-lhe imputado referida personalidade jurídica, para fins tributários. Essa conclusão encontra apoio em ambas as Turmas de Direito Público: REsp 411832/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 18/10/2005, DJ 19/12/2005; REsp 1064455/SP, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª Turma, julgado em 19/08/2008, DJe 11/09/2008. Recurso especial improvido".

Pela decisão da 2ª Turma do STJ, o condomínio edilício se eleva à condição de ente com personalidade jurídica equiparável a uma empresa. É como se empresa fosse tendo por critério técnico-administrativo a inscrição no CNPJ, mas a expressão "para fins tributários" é posta como contorno de pragmatismo jurídico. O síndico é o titular da empresa? A Receita Federal avançou com suas normativas e criou o condomínio com personalidade jurídica, obtendo o reconhecimento de direito de controle tributário do agrupamento por via da decisão judicial.

Entretanto, não foi no mesmo sentido a decisão para o direito à indenização por dano moral quando o condomínio foi atingido na sua atribuída "personalidade" em agravo em recurso especial com acórdão da 3ª Turma em 2015, conforme sua ementa:

"AgInt no REsp 1521404 / PE
Agravo interno no recurso especial
2015/0061485-8
(…)
1. Os danos morais estão intrinsecamente ligados aos direitos da personalidade, mas neles não se esgotam, dizendo, pois, especialmente, com a esfera existencial do ser humano, com a sua dignidade.
2. A doutrina dominante reconhece que os condomínios edilícios não possuem personalidade jurídica, sendo, pois, entes despersonalizados; também chamados de entes formais, com a massa falida e o espólio.
3. Não havendo falar em personalidade jurídica, menos ainda se poderá dizer do maltrato a direitos voltados à personalidade e, especialmente, àqueles ligados à honra objetiva.
4. Agravo interno desprovido".

Veja-se que desta feita temos o sentido de pura escolha do fundamento no Código Civil, quando a doutrina pode facilmente oscilar em sentido contrário uma vez que a simples eleição de uma circunstância pragmática não é suficiente para uma sustentação doutrinária perene. O argumento essencial foi a comparação com a massa falida e o espólio.

Ainda colaciono extratos deste acórdão:

"AgInt no REsp 1812546 MG 2019
Agravo interno no recurso especial
2019/0127132-1
O  entendimento adotado pelo Tribunal de origem está em harmonia com a mais recente jurisprudência desta Corte Superior no sentido de que  os  condomínios não possuem personalidade jurídica própria, nem detém  legitimidade para demandar direitos dos condôminos em ação de indenização por danos morais. Precedentes.
Acórdão: A Quarta Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo interno, nos  termos  do  voto  da  Sra. Ministra Relatora.
(…)
Apelação cível — ação de indenização por danos materiais e morais — responsabilidade da construtora pelo fiel cumprimento das obrigações do condomínio — violação — defeito do serviço — danos materiais — obrigação de indenizar configurada — danos morais sofridos pelos condôminos — ilegitimidade ativa ad causam do condomínio para a propositura da ação — natureza personalíssima do dano extrapatrimonial. — A empresa construtora que assume contratualmente a responsabilidade pelo fiel cumprimento das obrigações do condomínio, mas negligencia a observância quanto ao pagamento de determinada fatura, expondo o patrimônio do condomínio aos riscos e prejuízos decorrentes do pagamento em atraso, responde pelos danos causados. — O condomínio é parte ilegítima para pleitear pedido de compensação por danos morais em nome dos condôminos. Precedente da 3ª Turma" (REsp 1.177.862/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/05/2011, DJe 01/08/2011).

"Agravo interno. Recurso especial. Processual civil. Decisão de admissibilidade. Omissão no julgado. Inexistência. Acórdão em harmonia com a jurisprudência do STJ. Precedentes. 1. O acórdão recorrido enfrentou coerentemente as questões postas a julgamento, mediante clara e suficiente fundamentação, de modo que não merece reparo algum. 2. O entendimento adotado pelo Tribunal de origem está em harmonia com a mais recente jurisprudência desta Corte Superior no sentido de que os condomínios não possuem personalidade jurídica própria, nem detém legitimidade para demandar direitos dos condôminos em ação de indenização por danos morais. Precedentes. 3. Agravo interno a que se nega provimento".

Mais além, é importante mencionar este voto de vistas dado no Recurso Especial 1486478 PR 2014:

"REsp 1486478 / PR
Recurso especial
2014/0258449-3
Ementa:
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade,  negar  provimento  ao  recurso especial, nos termos do voto  do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva,  Marco  Aurélio  Bellizze,  Moura  Ribeiro  e  João Otávio de Noronha (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator".

Destaca-se o voto de vistas em que argumenta quanto à comparação com a massa falida e o espólio:

"Voto o senhor ministro Marco Aurélio Bellizze: Após ouvir atento o voto do Eminente relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, alinho-me a ele em relação ao desfecho alcançado, no sentido de negar provimento ao recurso especial; todavia, a premissa traçada não corresponde, ao menos por ora, à minha compreensão sobre a matéria.
Importante particularidade que o distingue da massa falida e do espólio, e talvez a mais marcante, é que no condomínio edilício há affectio societatis (permanência, se não pérpetua, ao menos duradoura), diferentemente do que ocorre com aqueles entes formais, nos quais se revela o caráter transitório, sendo a comunhão de interesses temporária, tornando despiciendo conferir a tais situações jurídicas uma proteção mais abrangente".

E ainda este agravo regimental no agravo em recurso especial de 2013:

"AgRg no AREsp 189780 SP 2013
Agravo regimental no agravo em recurso especial
2012/0121243-3
T2 — 2ª Turma
Ementa
II. Embora o condomínio não possua personalidade jurídica, deve-lhe ser assegurado o tratamento conferido à pessoa jurídica, no que diz respeito à possibilidade de condenação em danos morais, sendo-lhe aplicável a Súmula 227 desta Corte, in verbis: 'A pessoa jurídica pode sofrer dano moral'.
III. O acórdão recorrido encontra-se em consonância com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que a pessoa jurídica pode sofrer dano moral — no caso, o Condomínio —, desde que demonstrada ofensa à sua honra objetiva".

A razão de julgar, neste acórdão, estendeu o direito à reparação por dano moral ao condomínio.

De um lado, aquela corte superior vem construindo uma tendência em decidir pragmaticamente em favor do Estado afirmando a personalidade jurídica do condomínio edilício para fins tributários. De outro, as turmas do STJ usam como fundamento o direito objetivo e emprega lógica contraditória ao despersonalizar o condomínio em se tratando de direitos e obrigações extrapatrimoniais em direito subjetivo.

Mediante a introdução de uma compreensão mais ajustada do que seja precedente em direito de common law, aquilo que o STJ considera hoje como tal ao grafar "precedente" nas decisões anteriores das turmas, poderá ensejar no futuro uma discussão de fato verticalizada sobre um determinado caso. Na lógica do precedente, não é suficiente que se afirme uma tendência majoritária de decisões anteriores, ao contrário, o precedente é o estabelecimento da inovação e não o acúmulo de decisões similares, o que conceitua tão somente jurisprudência, e não precedente.

Na forma como a rationale é operada hoje, não há de fato uma compreensão jurídica completa, mas o preenchimento pragmático da lacuna do legislador que conferiu o silêncio sobre a personalidade do condomínio na lista das pessoas jurídicas de direito privado no artigo 44 do CC 2002. A discussão doutrinária poderia e poderá vir a evidenciar essa assimetria na razão de decidir uma vez que os juízos não traduzem convencimento uniforme nas convicções de fundamentação.

 

Referência Bibliográfica [1]
Carnacchioni, Daniel (2020). Manual de Direito Civil-Volume Único, 3rd edition, Editora Juspodium, Salvador.

 


[1] Exclusivamente para a referência bibliográfica uma vez que a legislação está devidamente mencionada no corpo do texto e não se aplicam a ela os direitos autorais, sendo fontes de informação, ou seja, fontes do conhecimento geral obrigatório ao estudante de Direito.

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