Opinião

Online dispute resolution e o Direito do Consumidor

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23 de agosto de 2021, 6h03

Em entrevista concedida em 2017, o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, afirmou que, "a partir de um dado momento, quando percebemos que o Judiciário estava caminhando para um colapso, a conscientização da utilização de métodos extrajudiciais começou a ganhar corpo. Surgiu a ideia de que precisávamos encontrar outras formas de solução" [1]. E não poderia ser diferente: ainda que representando redução, o relatório "Justiça em Números", do Conselho Nacional de Justiça, destacou que 77 milhões de processos ainda aguardavam julgamento definitivo ao fim do ano de 2019.

No ordenamento jurídico brasileiro, muitas são as referências a essas soluções alternativas de conflitos: a Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996, com âmbito de aplicação ampliado pela Lei 13.129/2015); o Marco Legal da Mediação (Lei 13.140/2015); o Código de Processo Civil, que exalta a solução consensual de conflitos (Lei 13.105/2015); e, ainda a título exemplificativo, e mais recentemente, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, com previsão expressa para os comitês de resolução de disputas (Lei 14.133/2021).

Se o desenvolvimento desses meios alternativos de resolução de disputas representa verdadeiro avanço — afinal, a resolução de conflitos não ocorre apenas mediante a atuação do Poder Judiciário —, a tecnologia permite agora dar mais um passo adiante. Assim como permitiu a expansão do comércio eletrônico — especialmente durante a pandemia da Covid-19 — o e-commerce brasileiro vivenciou um aumento de 75% em 2020 [2] —, a tecnologia também já vem impactando a resolução de disputas.

Isso vem ocorrendo de diferentes formas: por exemplo, por meio da informatização do Poder Judiciário, com a tramitação eletrônica de processos judiciais e com a utilização de inteligência artificial nos tribunais. Mas a revolução tecnológica pode avançar ainda mais: a resolução de disputas online (online dispute resolution — ODR), se bem aplicada, é capaz de trazer ainda mais inovação e eficiência na solução de litígios.

No Brasil, e em especial no âmbito do Direito do Consumidor, um interessante exemplo de ODR é a plataforma digital consumidor.gov.br, lançada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, ainda em 2015. Nessa plataforma, a tecnologia permite que consumidores e empresas dialoguem, por meio de mensagens, de forma gratuita, a fim de solucionar o conflito antes mesmo que ele seja judicializado. Trata-se de mecanismo digital de fácil funcionamento: o consumidor poderá apresentar uma reclamação contra uma empresa cadastrada no sistema; a empresa terá até dez dias para analisar a reclamação e respondê-la. O consumidor, então, poderá atribuir uma nota ao atendimento, informando se a questão foi resolvida satisfatoriamente ou não. Como os dados são públicos, pode-se pesquisar índices de solução, índices de satisfação, índices de prazo médio de resposta por fornecedor, o que cria um sistema de monitoramento efetivo que incentiva a solução das demandas.

A Senacon, por sua vez, vem adotando diversas medidas para promover a utilização dessa ferramenta. Por meio da Portaria nº 12/2021 (que substituiu a portaria anterior, nº 15/2020, sobre o mesmo tema), a Senacon fixou a obrigatoriedade de cadastro junto ao consumidor.gov de determinadas empresas e desde que observados alguns requisitos.

A adoção de tal obrigatoriedade teve início em março de 2020 — no início da pandemia no Brasil —, quando a Portaria nº 15/2020, então publicada, visava a acelerar a resolução de conflitos consumeristas, em especial diante da situação sanitária vivenciada no país. Após, já em abril deste ano, a Senacon reforçou esse entendimento, aumentando o rol de empresas que passaram a ser obrigadas a se cadastrar na ferramenta — e ampliando, assim, a disponibilidade dos métodos autocompositivos de resolução de conflitos, com a utilização de tecnologias, no Direito do Consumidor.

Aliás, o próprio Poder Judiciário tem se demonstrado um aliado nesse sentido. Em 2019, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Senacon, em conjunto com o CNJ, lançou um projeto piloto de integração entre a plataforma consumidor.gov e o processo judicial eletrônico (PJe) — naquela época, inicialmente destinado a demandas consumeristas relativas ao segmento bancário.

O objetivo dessas medidas de solução alternativa de disputas é claro: permitir que reclamações de consumidores possam ser resolvidas de forma adequada, tempestiva e sem recorrer ao Poder Judiciário. Um obstáculo cultural ao seu desenvolvimento, no entanto, é o fato de que, no Brasil, muitas vezes ações judiciais são propostas sem que o demandante tenha contatado, previamente e por qualquer forma, o demandado.

Disso surge uma importante discussão: é possível que o juiz suspenda, ou mesmo extinga o processo por falta de interesse de agir, quando inexistente tentativa prévia de solução consensual e extrajudicial do conflito por meio da plataforma consumidor.gov.br?

Trata-se de questão que envolve inúmeros temas (acesso à Justiça, condições da ação, interesse de agir, tutela tempestiva e adequada, métodos alternativos, documentação indispensável à propositura da ação, custos públicos envolvidos etc.) e que, por isso mesmo, ainda não foi pacificada.

Uma simples pesquisa jurisprudencial permitirá encontrar decisões em todos os sentidos. Há decisões destacando que o uso da plataforma é mera faculdade do demandante, sendo desnecessário dele exigir comprovação de prévia tentativa de resolução, sob pena de afronta ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição [3].

Aqui se defende, no entanto, que esse entendimento não deve prevalecer. Entende-se ser "inconcebível que o demandante procure o Judiciário antes mesmo de procurar o próprio demandado se lhe estão disponíveis canais comprovadamente muito mais eficientes e adequados"; é dizer, "se o demandante pode obter o bem da vida extrajudicialmente, de forma rápida, simples e sem custos (…), deverá fazê-lo (ou ao menos tentar fazê-lo), para que a máquina judiciária não seja movimentada à toa" [4].

Esse posicionamento também encontra respaldo em julgados de tribunais brasileiros, que destacam que não se pode depender única e exclusivamente da tutela jurisdicional para a solução de conflitos e que não há necessidade de intervenção judicial quando não demonstradas as providências extrajudiciais para solução da demanda. Nesse sentido, já se destacou que o uso de meio alternativo "se apresenta como instrumento necessário no contexto atual da busca de meios e formas de (des)judicializar questões de menor complexidade, e que não causam maior repercussão na estrutura do tecido social, reservando ao sistema de Justiça melhores e maiores condições para o enfrentamento daqueles litígios que necessitam sim, pela sua magnitude, a intervenção do aparato judicial" [5].

Isso não significa afastar o acesso à jurisdição, mas buscar a resolução adequada e tempestiva de conflitos. A utilização de ferramentas como o consumidor.gov.br otimiza tempo (do fornecedor e do consumidor), gastos (públicos e privados, já que a resolução do conflito previamente a sua judicialização é menos custosa para ambas as partes) e, ainda, permite desafogar o Poder Judiciário. Até porque, como se vê na prática forense, muitas vezes o fornecedor nem mesmo tem conhecimento do problema alegado pelo consumidor e, por isso mesmo, não teve a oportunidade de resolvê-lo — isto é, não há demonstração de pretensão resistida pelo fornecedor, de modo a justificar a intervenção do Poder Judiciário.

Evidentemente, trata-se de uma via de mão dupla: assim como o consumidor deve buscar resolver extrajudicialmente suas demandas, também o fornecedor deverá fortalecer seus canais de atendimento, de modo a viabilizar essa solução. As ferramentas estão disponíveis para que isso seja feito.

 


[1] Cadernos FGV Projetos — Solução de conflitos, ano 12, n. 30, abr.-mai. 2017, p. 15.

[2] https://www.consumidormoderno.com.br/2021/02/19/e-commerce-setor-cresceu-75-crise-coronavirus/. O levantamento ainda aponta que 20% a 30% das operações que migraram de lojas físicas para o meio digital durante a pandemia deverão assim permanecer: https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/aumento-ecommerce-permanente-coronavirus/.

[3] Exemplificativamente: TJMT, Recurso Inominado 1000996-28.2020.8.11.0024, T.R.U., Rel: Valmir Alaercio dos Santos, j. 04.12.2020; TJMS, Agravo de Instrumento 1407035-55.2019.8.12.0000, 3ª C. Cív., Rel: Vitor Luis de Oliveira Guibo, j. 24.07.2019; TJSC, Apelação Cível 0301464-03.2016.8.24.0027, 3ª C. de Direito Comercial, j. 21.05.2020.

[4] PARO, Giácomo; MARQUES, Ricardo Dalmaso; DUARTE, Ricardo Quass. On-line Dispute Resolution (ODR) e o interesse processual. In: WOLKART, Erik Navarro et al (orgs.). Direito, Processo e Tecnologia, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2020, p. 311.

[5] TJRS, Ap. Cív. 70083955641, 9ª C.C., Rel: Tasso Caubi Soares Delabary, j. 18.03.2020. Em sentido semelhante: TJSC, Agravo de Instrumento 5025702-19.2020.8.24.0000, 4ª C. de Direito Comercial, Rel: Janice Goulart Garcia Ubialli, j. 07.07.2020; TJRS, Recurso Inominado 71009717380, 2ª T.R.C., Rel: Roberto Behrensdorf Gomes da Silva, j. 25.11.2020.

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