Opinião

Aspectos tributários e regulatórios para os fundos de investimento da SAF

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18 de agosto de 2021, 19h27

A Lei nº 14.193/2021 (PL nº 5.516/2019), que possibilita aos clubes de futebol instituírem a chamada sociedade anônima do futebol (SAF), foi publicada no último dia 9, após rápida tramitação no Senado Federal e na Câmara dos Deputados.

Grande parte dos clubes vê a aprovação da proposta com bons olhos, sob a justificativa de que esse modelo trará ao futebol brasileiro uma gestão empresarial do esporte, além de se aproximar, em certa medida, da sistemática adotada pelos clubes das principais ligas europeias.

Em suma, a lei está fundamentada em três pilares principais: 1) a estrutura societária e a forma de financiamento da SAF; 2) as regras de transparência e governança a serem seguidas; e 3) o tratamento tributário específico a ser observado pelo "clube-empresa".

De nossa parte, não há dúvidas de que o projeto será um marco no futebol brasileiro, com impacto positivo a médio e longo prazo. Porém, há alguns aspectos tributários e regulatórios que merecem uma análise um pouco mais detida, tendo em vista suas repercussões práticas, sobretudo no que diz respeito à utilização dos fundos de investimento e à emissão das chamadas debêntures-fut. É o que nos propomos a fazer neste breve artigo.

Emissão de debêntures-fut para o financiamento da SAF
Por dispensarem a intermediação bancária, as debêntures são instrumentos de mercado bastante utilizados para captação de recursos, por isso a escolha do legislador por essa forma de financiamento das SAF (artigo 26 da lei). Por meio desses títulos de crédito privado de renda fixa, a sociedade anônima emite um título de dívida para determinados beneficiários, que passam a ter um direito de crédito contra a companhia, mediante uma escritura de emissão [1].

Ao adquirir as debêntures, o investidor não se torna sócio da companhia. O que se tem, na verdade, é um empréstimo de recursos, com a contrapartida de recebimento de juros periódicos e o pagamento do valor principal no vencimento do título, ou por meio de amortizações. É o que dispõe a Lei das SAs:

"Artigo 52  A companhia poderá emitir debêntures que conferirão aos seus titulares direito de crédito contra ela, nas condições constantes da escritura de emissão e, se houver, do certificado.
(…) 
§2o A escritura de debênture poderá assegurar ao debenturista a opção de escolher receber o pagamento do principal e acessórios, quando do vencimento, amortização ou resgate, em moeda ou em bens avaliados nos termos do artigo 8o"
(grifo dos autores).

Nesse ponto, a lei publicada não deixa claro se as debêntures-fut são apenas debêntures simples ou se podem ser conversíveis em ações (artigo 59, inciso V, da Lei 6.404), isto é, se após o vencimento do pagamento o debenturista (credor) poderá converter seu crédito em ações da SAF. Uma vez que não há vedação expressa e, havendo previsão no estatuto social, entendemos ser plenamente possível a estipulação de que todas as debêntures-fut emitidas sejam conversíveis em ações para os investidores.

Além disso, os incisos II e III do artigo 26 da lei estabelecem que o tempo de investimento não poderá ser inferior a dois anos, além de ser vedado ao investidor o resgate antecipado dos valores:

"Artigo 26  A Sociedade Anônima do Futebol poderá emitir debêntures, que serão denominadas "debêntures-fut", com as seguintes características:
(…)
II
 prazo igual ou superior a dois anos;
III  vedação à recompra da debênture-fut pela Sociedade Anônima do Futebol ou por parte a ela relacionada e à liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento, salvo na forma a ser regulamentada pela Comissão de Valores Mobiliários" (grifo dos autores).

A vedação à liquidação antecipada é uma das divergências com a Lei 6.404, que prevê expressamente a essa possibilidade em seu artigo 55.

Outro ponto que diverge do cenário convencional é a opção do legislador pela incidência da alíquota única de 15% sobre os rendimentos decorrentes da debênture-fut (artigo 26, §2º). Isso porque, como já mencionamos alhures, as debêntures são títulos de crédito privado de renda fixa cujos rendimentos se sujeitam às alíquotas regressivas de 22,5% a 15%, a depender do tempo de investimento (IN RFB nº 1.585/2015, artigo 46).

Como se vê, optou-se por afastar das debêntures-fut o regime geral de tributação sobre aplicações financeiras de renda fixa, atribuindo a esse investimento a mesma sistemática de tributação que recai sobre as debêntures de infraestrutura (IN RFB nº 1.585/2015, artigo 48), ou seja, alíquota zero para a pessoa física e alíquota de 15% para a pessoa jurídica.

A participação de fundos de investimentos
Um dos pontos que mais se destaca na lei é a possibilidade de que a SAF seja constituída pela iniciativa exclusiva de um fundo de investimentos, conforme a disposição do artigo 2º:

"Artigo 2º — A Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída:
(…)
 III
 pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento",

Significa dizer, por exemplo, que um fundo de investimentos poderá constituir um clube de futebol, na forma de uma sociedade anônima, sob sua exclusiva gestão. Poderá, ainda, adquirir uma sociedade anônima do futebol ou mesmo ser dela sócio ou acionista. Casos da Inglaterra, Itália e Estados Unidos demonstram bem essa realidade.

Em 2013, o Abu Dhabi United Group constituiu o City Football Group (CFG), fundo criado para a aquisição do Manchester City FC e do New York City FC. Em 2019, o fundo de investimentos em tecnologia Silver Lake adquiriu 10% da participação do CFG por U$ 500 milhões.

Na Itália, o fundo de investimentos de private equity Elliott Management assumiu o controle integral do AC Milan em 2018, após investidores chineses (que adquiriram o clube em 2017) não terem cumprido com o pagamento de parte do empréstimo feito junto ao fundo.

Não é essa ainda a realidade brasileira. Os clubes nacionais não estão acostumados a uma gestão profissional e às maciças auditorias externas inerentes aos fundos de investimentos e, eventualmente, à própria abertura de capital em bolsa de valores. É nesse cenário que algumas observações importantes ganham espaço.

A primeira delas é a definição da natureza do fundo (fechado ou aberto) para a captação do investimento.

Os fundos abertos são aqueles nos quais se permite a entrada e saída de cotistas a qualquer tempo, por meio de aporte e resgate de cotas, respectivamente. Também se permite que o administrador do fundo promova o aumento da participação de cotistas por via de novos investimentos [2].

Nessa espécie de fundo, a distribuição de cotas independe de registro prévio na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o administrador pode suspender novas aplicações a qualquer momento, desde que a suspensão se aplique tanto aos novos investidores quanto aos atuais (artigos 18 e 19 da ICVM nº 555/2014).

Para proteger a composição patrimonial e os ativos da carteira, o administrador também pode declarar o fechamento do fundo para a realização de resgastes (artigo 39 da ICVM nº 555). Em regra, isso pode ocorrer em situações excepcionais decorrentes dos seguintes cenários: 1) se os ativos estiverem ilíquidos, inclusive por causa de pedidos de resgates incompatíveis com a liquidez do fundo; 2) se a iliquidez dos ativos influenciar na alteração do tratamento tributário do fundo ou dos cotistas. Evidentemente, essa é uma consequência tributária que deve ser levada em consideração.

Por sua vez, os fundos fechados são aqueles em que a entrada e saída de cotistas não é permitida após o período de captação de recursos pelo fundo, e as cotas só serão resgatadas ao término do prazo de duração. Além disso, nesse caso, não são admitidos novos investimentos. Contudo, isso não impede que o administrador abra novas rodadas de captação em períodos posteriores.

A ICVM nº 555 exige o prévio registro do fundo para a distribuição de cotas (artigo 20). Se essa distribuição for destinada ao público em geral, há necessidade de registro de oferta pública em mercado secundário (transações investidor-investidor).

Como vários dos clubes brasileiros estão ligados a investidores diretos, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, uma das formas de viabilidade de constituição do fundo fechado é a possibilidade de restringi-lo a investidores qualificados [3].

De qualquer forma, em termos de compliance e de performance, os fundos também apresentam a obrigatoriedade de que o administrador realize os chamados testes de estresse para garantia da liquidez, o que reforça ainda mais a solidez do mecanismo. É o que está disposto no artigo 91 da ICVM 555, que determina a obrigatoriedade de que o gestor e o administrador do fundo adotem formas de controle para o cumprimento de obrigações, inclusive com verificação da concentração ou dispersão das cotas e realização de "testes" que levem em consideração as movimentações do passivo, as obrigações, o volume das cotas e a liquidez dos ativos:

"Artigo 91  O administrador e o gestor devem, conjuntamente, adotar as políticas, procedimentos e controles internos necessários para que a liquidez da carteira do fundo seja compatível com:
(…)
 §2º O administrador deve submeter a carteira do fundo a testes de estresse periódicos com cenários que levem em consideração, no mínimo, as movimentações do passivo, a liquidez dos ativos, as obrigações e a cotização do fundo.

§3º A periodicidade de que trata o §2º deste artigo deve ser adequada às características do fundo, às variações históricas dos cenários eleitos para o teste, e às condições de mercado vigentes".

Os testes de estresse nada mais são, portanto, do que a realização de testes hipotéticos periódicos, considerando diferentes cenários e as condições de mercado. Como a dinâmica dos clubes de futebol sempre depende de inúmeras variáveis (fontes de receita, competições em disputa, adesão de torcedores aos programas de sócios etc.), essa é uma ferramenta de importância ímpar.

Por fim, um dos pontos críticos na gestão e funcionamento dos fundos de investimento é a presença de possível conflito de interesses envolvendo os cotistas, o administrador e os prestadores de serviço do fundo.

O interesse maior a ser preservado do fundo é dos próprios cotistas, cujas deliberações serão tomadas em assembleia geral nas quais não podem votar, conforme o artigo 76 da ICVM 555: 1) o administrador e o gestor do fundo; 2) os diretores, sócios e funcionários do administrador ou do gestor; e 3) os prestadores de serviços do fundo ou mesmo os seus sócios, diretores ou funcionários.

Esse mecanismo é ampliado no §2º do mesmo artigo 76, vedando-se ao administrador, ao gestor e ao consultor o recebimento de qualquer remuneração, benefício ou vantagem, direta ou indireta, por meio de partes relacionadas que potencialmente possam prejudicar a independência e a isenção na tomada de decisão de investimento.

Ao aliar essa discussão às questões tributárias, a avaliação deve ser ainda mais criteriosa. O Processo Administrativo CVM nº 19957.000837/2021-11 exemplifica bem a importância da questão [4].

Em agosto de 2020, o FII Grand Plaz Shopping recebeu auto de infração de R$158 milhões lavrado pela RFB informando que o fundo deveria ser tributado como pessoa jurídica (artigo 2° da Lei n° 9.779/1999). O auto equivale a 15,3% do patrimônio líquido do fundo e apresenta como devedoras solidárias a administradora (Rio Bravo Investimentos) e a Cyrela Commercial Properties S.A (CCP), cotista titular de 61% das cotas de emissão.

Em dezembro do mesmo ano, realizou-se assembleia geral de cotistas, na qual os cotistas representantes de 72.98% das cotas aprovaram a proposta de cisão parcial apresentada pela administradora. Nesse ínterim, a administradora não contabilizou os votos proferidos pela CCP, sob o argumento de que, naquele momento, o cotista possuía conflito de interesses com o fundo, nos termos do artigo 24, §1º, da ICVM 472/2008, além do fato de que a CCP prestava serviços de administração para empresa que desenvolve atividades no shopping objeto de investimento do fundo.

No julgamento do recurso apresentado ao colegiado da CVM, a existência de conflito de interesse foi afastada com fundamento nas seguintes racionais:

a) O princípio majoritário assegura ao titular da maioria das cotas o poder de controle sobre os fundos de investimento; nesse sentido, o voto do relator consignou que "eventuais impedimentos, restrições e limitações ao exercício do direito de voto possuem natureza excepcional, devendo ser interpretados restritivamente e com extrema parcimônia";

b) Inexistência de impedimento prévio ao exercício do direito de voto pelo artigo 24, §1º, inciso VI, da ICVM nº 472/2008; os instrumentos jurídicos e regulatórios cabíveis devem ser verificados caso se constate, a posteriori, que o voto foi proferido pelo cotista em conflito de interesse com o fundo;

c) Em relação ao auto de infração, o regulamento do fundo possui capítulo específico sobre o tratamento tributário daquele investimento, alertando aos cotistas sobre o risco de que a RFB adotasse a referida postura frente ao Fundo, o que de fato se materializou.

Estabelecendo paralelo com os fundos de investimento ligados às SAF, é possível que, em algum momento, um dos cotistas (ou a própria administradora) levante a existência de interesses conflitantes entre outros cotistas e o fundo. Porém, a existência desse quadro deverá ser apurada com base em motivos razoáveis e, eventualmente, em momento posterior à deliberação da assembleia geral sobre a qual se apontou a existência do conflito.

Todas essas razões demonstram os cuidados e as complexidades a serem enfrentadas pelas sociedades anônimas do futebol na adoção de um novo modelo de gestão, no intuito de abandonar a forma associativa e migrar para a modalidade empresária.

Ademais, caso o processo de mudança esteja acompanhado da adoção ou criação de fundos de investimento e emissão de valores mobiliários para financiamento (como as debêntures-fut), os planejamentos tributário, societário e regulatório devem merecer especial cuidado, tendo em vista as implicações práticas para esse tipo de mercado.

Não temos dúvidas de que esses aspectos serão determinantes para o sucesso ou a ruína dos clubes de futebol no mercado de capitais.


[1] CVM. Mercado de valores mobiliários brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Comissão de Valores Mobiliários, 2019, pp. 73 e 74.

[2] CVM. Idem, p. 96.

[3] Pela ICVM nº 539/2013, as pessoas naturais ou jurídicas que possuam investimentos financeiros superiores a R$1.000.000,00 e atestem essa condição por escrito podem ser consideradas investidores qualificados.

[4] CVM, Processo Administrativo CVM nº 19957.000837/2021-11. Reg. Col. nº 2189/2021. Disponível em: http://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/2021/20210525/2189_21_VotoDAR.pdf

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